Este ensaio vem baseado em um profundo incomodo do ponto de vista processual, quando analisado especificamente sobre a problemática que sempre foi a prisão. Ela – a prisão – por toda a história, vem baseada em mais um fundamento, utilizado pelos seres humanos para justificar a proliferação de um ódio primitivo, contido dentro de cada um que existe neste plano material.
Desde os primórdios, passando por toda a existência da terra, é possível detectar, em toda a comunidade mundial, alguma forma de punir determinados sujeitos que violam as determinações impostas a uma comunidade, suas leis, a ideologia e as crenças em determinadas épocas. São reflexos que passam por vários códigos, que avança no tempo e no espaço de várias gerações que aqui passaram ou, que aqui continuam.
Passou por inúmeros livros, doutrinas, e tem tatuada sua marca, inclusive, na própria Bíblia Sagrada, cravando na história, talvez, um dos maiores julgamentos e a fragilidade de um procedimento mal conduzido, e o reflexo de uma pena.
Isso começa na tenra idade. Nas próprias punições dos pais para com os filhos, não raras vezes havendo o isolamento como punição. São reflexos de uma cultura punitiva que fora imposta há muito, evoluindo de geração em geração. Sem diálogo, e tendo como confinamento e punição a primeira etapa de qualquer sanção.
Tal provocação, cabe destacar desde já, que definitivamente não se pretende ao final, concluir pela utopia da descriminalização ou despenalização, como preceitua alguns intérpretes, mas, conduzir à visão de alternativa ao colapso das cadeias.
O que se pretende, é acima de tudo, elevar a questionamentos no sentido de que a prisão, no estado de coisa inconstitucional que se encontra, conforme consignado pelo Suprema Corte Brasileira1, evidencia um sistema traumático, falido e desumano, cotidianamente observado em alguns países, sobretudo, no próprio Brasil.
É uma falência com atributos de crueldade o que tem sido visto, especialmente no fato de que tudo que a prisão busca para a lapidação do infrator, na proposta de melhoria ou evolução enquanto rejeito social, na maioria dos pontos vê-se fracasso.
Fracasso na ressocialização, fracasso no ambiente, fracasso no impedimento ou diminuição dos delitos, fracasso na contenção da criminalidade frente a sociedade, fracasso no estabelecimento e sem o mínimo necessário para a efetiva prestação de serviço dos funcionários do Estado que lá trabalham, seja pelo salário, ou mesmo, pelo ambiente hostil do recinto. Ou seja: temos fracassado como seres humanos no que diz respeito à prisão.
É fácil perceber esse cenário, quando se nota que a criminalidade avança de forma contínua, sobretudo daqueles que deixam o recinto do cárcere, existindo, por assim dizer, um ciclo vicioso entre o criminoso, a ausência de ressocialização, a sociedade e a criminalidade. Todo esse reflexo é exposto ao holofote das guerras que existem na prisão entre seus próprios protagonistas lá confinados, da decadência humana lá existente, dos confrontos, das mortes expostas sem nenhum pudor nas telas das televisões, na voz que ecoa dos rádios, da manchete que não causa mais tanto espanto compartilhada no feed da rede social que acomoda a frieza da tela do celular.
Persiste o sentimento de impotência, e o questionamento do porquê não existe outro método, do porquê não se resolve tal problemática, do porquê é pauta apenas nos momentos de implosão, quando na verdade tal realidade é contínua a cada amanhecer nas masmorras de cada confinamento.
Definitivamente, para não haver qualquer confusão hermenêutica, frisa-se, uma vez mais, não se pretende com o questionamento aqui ventilado que seja interpretado no sentido de abrir as portas das prisões, como entende alguns, com o fito de propagar um episódio caótico para a sociedade com libertações em massa de criminosos. Pelo contrário.
Prisão sempre foi um método para afastar os mais perigosos, aquela periculosidade elevada, transtornados, aqueles definitivamente impossíveis de conviverem em sociedade de forma pacífica.
A problemática surge na sua banalização. E por essa mesma razão que, há uma curva acentuada de presos provisórios atualmente no Brasil2, cárceres extremamente lotados, sem espaço digno sequer para idosos.3
Raríssimas vezes, há uma deflagração de uma operação sem prisões, sobretudo em tempos modernos de holofotes e plateias, de coletivas de imprensas, de PowerPoint. O que veio para ser segundo plano, especialmente com as alterações legislativas4, tem sido o primeiro, como se fosse requisito obrigatório traçado pelo código de processo penal.
O preâmbulo é necessário, não apenas para provocações preliminares do que será o ponto central, mas também, para entender, que em tempos caóticos humanitários sujeitos a confinamento obrigatório, as nossas próprias paredes da residência também podem ser uma custódia, uma prisão, sujeito as mesmas alucinações, transtornos, angustias, medo, ansiedade. Tudo isso com o conforto (ou não) que cada lar possui.
É o primeiro ponto, embora não parecesse, de como os tempos de crise podem ser necessários para repensar os atos da raça humana, uma auto compreensão, especialmente a prisão em seu atual modelo, a pena privativa de liberdade para todo e qualquer delito, refletidos e traçados para aspectos alternativos, como é a domiciliar.
Na aurora do ano de 2020, surge a pandemia do COVID-19, causando pânico e desespero em toda a população mundial, povos se reinventando na necessidade de conter o alastramento do temido vírus. Inúmeras mortes, em todos os cantos do planeta. Episódio perturbador, pairando uma gama de incertezas, por motivos desde econômicos, até a mais singela relação humana: o contato.
O cenário caótico, transmitido, publicado e orientando à população, dentre tantas outras instruções, há um único e talvez, simples pedido. Confinamento.
Apenas ficar em casa, evitando visitas, bares, festas, trabalho, ou seja, relações que são inerentes ao convívio numa sociedade. Em síntese, uma fatídica e forçosa reclusão.
Nesse ritmo de alta necessidade do confinamento, não é difícil verificar a dificuldade de inúmeras pessoas em permanecer dentro de casa, por vários motivos. Descartados os motivos de necessidade plena, ou seja, trabalhos essenciais, há aqueles que possuem a condição para se manterem reclusas dentro dos seus próprios lares, junto à família, com o mais alto conforto (ou não), tendo acesso a incontáveis tipos de tecnologia e com tantos prazeres à disposição. Tudo isso, frisa-se, entre às paredes do seu próprio lar.
Esse aspecto e cenário tem validade nos primeiros dias, mas costumam causar impacto negativo com o passar do tempo, conforme ilustrado pela Professora de Psicologia de Harward Medical School, na reportagem do último domingo no Fantástico, alertando que “o cérebro começa a funcionar da parte emocional, e para de funcionar da parte racional.” 5
Especialmente porque os seres humanos, por natureza e essência, não nasceram para ficar paralisados, confinados por muito tempo, causando, a partir de então, um reflexo altamente negativo e perturbador. Isso, ainda no que tange aos limites do seu próprio lar, com um convívio que se estende tão somente à família, e as condições – as vezes – favoráveis que cada um possui entre os muros.
No cenário do vírus COVID-19, batizado de coronavírus, não foi diferente. Não tem sido difícil notar um ou outro circulando pelas ruas. O ócio começa a tomar conta do corpo e mente da pessoa.
Tomando tal paralelo do contexto atual, é possível que cada um sinta, ainda que perfunctoriamente, mesmo aqueles que nunca adentraram num cárcere, que ainda assim é possível entender o quão caótico pode ser conviver com pessoas nunca vistas antes, indiferentes, de todo tipo e natureza, seguimentos, confinadas em massa, num ambiente altamente hostil e desumano. O que esperar? Somente o caos.
Esse olhar, em tempos de crise humana que o mundo atravessa, certamente é possível fazer um comparativo entre a prisão como se costuma ver no atual modelo, e a prisão domiciliar como modelo alternativo, podendo (e devendo) ser utilizado com muito mais frequência que os termos atuais consignados em lei.6
Cenários caóticos no mundo, em vários contextos, em toda a parte da história da raça humana, foram essenciais para repensar vários pontos, aperfeiçoamento e mudanças pragmáticas a respeito de um ângulo de vista.
Na atualidade, no colapso e crise (seja da raça humana por conta do coronavírus ou do caos nos cárceres) nada mais importante do que rever – mais uma vez – a essência da prisão e seus desdobramentos como aspecto alternativo, não tomando a preventiva como se fosse a única medida à disposição.
Pode ser que o atual cenário de confinamento, de pessoas que o direito penal ainda não bateu à porta, mas que estão sujeitas à visita, sirva para repensar alguns métodos.
A comunidade, não apenas jurídica, está tendo a oportunidade de perceber e se atentar para as singularidades do que pode ser uma prisão, da tortura mental, e de como é ter sua residência como cárcere – mesmo com todas as benesses a seu favor. E este é o ponto central.
Se ao final dessa provocação, a resposta ainda assim for pela manutenção do cárcere – nos moldes atuais – certamente há um conflito interno da raça humana que precisamos enfrentar rapidamente, não pelo fato de manter as prisões da forma como se encontra, mas do ódio e vingança enrustido em cada homem e mulher. O que seria mais grave ainda, por fatores não apenas humanitários e empáticos, mas de gravidade mundial e existencial, na certeza de haver um enorme desalinho neste plano material.
A problemática, é quando o direito penal toca a campainha do vizinho querido, do amigo, do parente, ou de quem está dentro da sua própria casa. Por erro, injustiça, engano, ou por embasamento plausível... serão vários os motivos para impugnar o cárcere do ente querido.
Não se trata de uma discussão meramente humana, com sofismas, embora importante, mas de compreensão profunda de uma análise cada vez mais dinâmica e crescente que tem sido os presídios e a superlotação, na sua real necessidade de repensar a sua existência para todos que ali eventualmente estejam encarcerados, quando na verdade, seria destinado para pessoas altamente perigosas, o que nem sempre tem sido observado.
Há crimes, como a maioria dos delitos econômicos, que bem observados, que realçaria uma nova visão para deixar de serem penalizados com pena privativa de liberdade, passando para outros tipos de pena, podendo ter como punição tantas outras, como a própria recuperação dos bens e dinheiro, com o pagamento de multas dentro da proporção, com a indenização, etc, punições tão rígidas – e eficazes – quanto.
É preciso repensar a reprimenda penal, para não usarmos do direito penal com artifícios vingativos. É necessário repensar a evolução humana em todos os sentidos, de maneira que, a única pena que restará, será aquela a ser cumprida pela própria sociedade, com um colapso de prisões que crescem assustadoramente.
A civilidade, exige de todos, em diversos cenários, em várias ciências e matérias. Com o colapso que constantemente tem ocorrido perante as relações humanas, atualmente, os primeiros a enfrentarem os dramas tem sido os profissionais da medicina, talvez num futuro não muito distante, será o direito penal, que tem dado sintomas de catástrofe.
Essa provocação remete ao querido Machado de Assis, na obra “O espelho”, onde já dizia que “cada criatura humana traz duas almas consigo; uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de fora pra dentro...” 7
Não é um presídio propriamente dito, não tem aspectos semelhantes, sendo apenas pessoas dentro de suas próprias residências, por ato emanado do Governo em razão do COVID-19, mas ainda assim, tem lembranças de confinamento, resquícios de prisão, reflexos do que ela é capaz de provocar. É a oportunidade que a comunidade jurídica está tendo de olhar de dentro pra fora, e entender o sentimento do que é estar preso, mesmo com as benesses à disposição no interior de cada lar, aliado as angustias da sensação de sentir-se preso.
Uma vez mais parafraseando o poeta Machado de Assis, na mesma teoria; ele alerta que “é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma”, e nem pode ser, pois indica que “quem perde uma das metades, perde naturalmente a metade da existência.”
É preciso pensar, repensar, alertar e, sobretudo sentir e extrair da condição humana que tem sido os enfrentamentos atuais. Tem chegado a hora de rever o direito penal em suas vertentes, onde está o erro, o processo como forma de ser e existir, sob pena – na literalidade da palavra – de perder a outra metade, que é a sobriedade, a compreensão, o estudo, a ciência como forma de sobrevivência que nos trouxe a evolução social e civilizada, não dando espaço para a barbaridade e a crueldade, como indica o direito penal subterrâneo, sem qualquer generalização.
Daí como o modelo das prisões domiciliares deve ser melhor utilizado, expandindo seus horizontes, com uma dose crítica de cada caso, na convicção de que, como temos visto e sentido atualmente nos confinamentos dos nossos lares em razão do COVID-19, resta a certeza de que um exílio domiciliar não é tão brando de suportar assim como se parece. Tem nuances de um cárcere tão negativos psicologicamente quanto, mas que, traduz uma alternativa viável para o enfrentamento da superlotação. Caso contrário, as próximas páginas de catástrofes a serem escritas, serão das prisões, refletidas na sociedade.
Um dia, essa mesma ressocialização falida das prisões atuais, não vão servir para comportar toda comunidade humana.
Notas
1 ADPF 347 MC/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 9.9.2015. (ADPF 347). Disponível em <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4783560>. Acesso em 23.03.2020.
2 Superlotação. Disponível em <https://www.brasildefato.com.br/2019/07/18/812-mil-presos-apenas-23-municipios-tem-populacao-maior-que-as-prisoes-brasileiras> acesso em 23.03.2020.
3 Pesquisa feita pelo DEPEN no ano de 2019. Disponível em <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/03/22/falta-de-celas-para-idosos-e-unidades-sem-consultorios-como-as-penitenciarias-estao-se-preparando-para-a-chegada-do-coronavirus.ghtml> acesso em 23.03.2020.
4 BRASIL. Lei nº 12.403 de 04 de maio de 2011, disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12403.htm> acesso em 23.03.2020.
5 Reportagem exibida pelo programa Fantástico. Disponível em <https://globoplay.globo.com/v/8421663/programa/> acesso em 23.03.2020.
6 BRASIL. Código de Processo Penal. Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12403.htm> acesso em 23.03.2020.
7 Antologia de contos realistas – São Paulo: Lazuli Editora: Companhia Editora Nacional, 2012. Conto O Espelo: Esboço de uma nova teoria da alma humana, DE ASSIS, Machado. pág. 291/292.