6. "Teoria tripartite da transgressão disciplinar"
Sustentada não só a viabilidade de reconhecimento de elementos integrantes do ilícito disciplinar, mas também a necessidade de instalação de um Direito Sancionador da Culpa, cumpre questionar qual a fórmula a ser seguida pela autoridade disciplinar para não punir o seu subordinado – evitando injustiças – com base nos postulados supra.
Partindo de derradeira análise da culpabilidade – apenas com o escopo de exaltar aquilo que se considera essencial discutir – deve-se entender que a ausência de elemento subjetivo, ou a existência de elemento subjetivo diverso daquele suscitado pelo tipo transgressional, impede a imposição de sanção disciplinar, sob pena de se instalar uma responsabilidade disciplinar objetiva, agredindo, pois, o princípio constitucional da culpabilidade.
Entretanto, pode-se evitar a responsabilização disciplinar ainda quando do início da análise do ilícito, por exclusão de seus elementos. Em outros termos, a ausência de ação típica disciplinar (positiva ou negativa), de antijuridicidade ou de culpabilidade, inviabilizam o sancionamento do agente, por simples declaração, obviamente motivada, de inexistência de ilícito administrativo disciplinar militar.
Poder-se-ia, por exemplo, sustentar a existência de causas justificantes supralegais, trazendo ao problema a equação necessária para a não responsabilização disciplinar.
Outra alternativa seria a defesa de que a culpabilidade integra o conceito estrutural da transgressão disciplinar – e aqui reside o ponto mais polêmico e, em conseqüência, mais palpitante do tema – favorecendo, destarte, a elaboração de uma "teoria tripartida" dessa espécie de ilícito.
Nesse diapasão, transgressão disciplinar seria definida como conduta típica (caracterizada por uma "tipicidade mitigada"), antijurídica (não simétrica ao Direito Penal, vez que a "lei disciplinar" poderia enumerar como causas de justificação não só as excludentes de antijuridicidade reconhecidas no Direito Penal, mas também aquelas afetas à exclusão de culpabilidade) e, por fim, culpável.
Como culpável deve-se compreender o fato reprovável no grupo em questão – inclusive levando-se em consideração os usos e costumes daquele grupo, fator preponderante e até mesmo verdadeira fonte normativa nas instituições militares. Obviamente, deveriam estar presentes os elementos positivos da culpabilidade (teoria normativa pura), ou seja, imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
A sedimentação de citada teoria propiciaria um deslinde adequado às questões disciplinares afetas à culpabilidade, como os exemplos supracitados, permitindo que a autoridade disciplinar, em vez de reconhecer a existência de uma causa supralegal que impeça a imposição de sanção, ficando assim sujeita a interpretações desfavoráveis que a imputariam a inobservância da legalidade (podendo gerar, inclusive, efeitos inerentes à lei "anti-improbidade" [34]), simplesmente declare, por decisão fundamentada, a inexistência de ilícito disciplinar.
7. Conclusão
Há que se ratificar o escopo principal deste trabalho, afastando-se, como já dito, a visão de que se pretende estagnar a repressão transgressional, depondo contra o princípio da eficiência e, por conseqüência, fomentando uma Administração Pública "amadora", sem o comprometimento inerente à sua existência: o atendimento dos anseios e rogos coletivos.
O que se pretende, de fato, é propiciar a estabilidade nas relações disciplinares afetas aos servidores públicos, neste caso especificamente direcionada aos militares dos Estados, fomentando a segurança jurídica dessas relações. Quer-se ainda, que o novel princípio da eficiência não tenha leitura tosca, desmedida, segundo a qual os fins justificam os meios, fomentando dessa forma, com a devida permissão para parafrasear o caríssimo Professor Osvaldo Duek [35], uma "responsabilidade disciplinar flutuante", à busca de alguém a ser punido.
De forma paralela, mas não menos importante, busca-se uma alternativa para evitar o cometimento de impropriedades – injustiças, em verdade – em que uma absolvição por reconhecida excludente de culpabilidade possa não obstar, por exemplo, a exclusão de um militar, a despeito da verificação de que qualquer um, até mesmo a autoridade disciplinar julgadora, teria comportamento idêntico nas circunstâncias fáticas apresentadas.
Urge, pois, a necessidade de maior dedicação à "Teoria Geral do Ilícito Disciplinar", razão pela qual espera-se que este trabalho inicie a combustão em discussões variadas, não só favoráveis aos argumentos expostos, mas principalmente dotadas de construtivas críticas.
Vultus animi janua est!
Notas
01Direito Administrativo Disciplinar. São Paulo: Edipro, 2002.
02"O Direito Administrativo Disciplinar está, portanto, com objeto próprio, com normas específicas, com campo delimitado, porém, não distante da sistemática da Administração Pública, que, embora não o deferindo ao Poder Judiciário, consagra-lhe normas e princípios que este adota, quer algumas de natureza civil e muitas e muitas outras de natureza penal e processual penal." Ob. cit. p. 62.
03 "De nossos estudos e de certa experiência adquirida na fruição das atividades administrativas disciplinares, firmamos convicção de que a corrente penalista é a que está com a melhor doutrina, eis que se o Direito administrativo disciplinar possui mesmo alguma afinidade, esta define-se perfeitamente com a identidade do direito de punir e este somente se encontra em duas esferas: na criminal e na administrativa." Ob. cit. p. 74.
04Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
05 ARAÚJO, Edmir Netto. O Ilícito Administrativo e Seu Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 236.
06 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2001. p. 91.
07 Fábio Medina Osório postula em sua obra, mais precisamente em nota aposta à p. 64, que a natureza administrativa de uma sanção não está afeta à autoridade que a impõe, podendo existir, pois, sanções administrativas impostas pelo Poder Judiciário, a exemplo daquelas sanções de cunho administrativo trazidas pela Lei 8429/92, que definiu os atos de improbidade administrativa. Por essa razão, preferiu-se aqui dizer "sanção administrativa imposta pela Administração", reduzindo-se, pois, o objeto estudado.
08 Vide art. 14 da Lei Complementar Estadual 893, de 09 de março de 2001.
09 Vide art. 86 e 87 da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993.
10Direito Administrativo Moderno. São Paulo: revista dos Tribunais, 2001. p. 138.
11 BITENCOURT, Cezar Roberto e CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 21.
12 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2003. p. 99.
13 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ob. Cit. p. 101.
14 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 127.
15 Baseado na bipartição de Wilhelm Sauer, Miguel Reale Júnior desfruta dessa posição, sacramentando, em suma, após responder à indagação proposta – "Toda ação típica é antijuriídica?" – que ao ocorrer uma causa de justificação não há adequação típica (Teoria do Delito. São Paulo:RT, 2000. p 56).
16 ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: RT, 2002. p. 457-9.
17Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 216.
18 Ob. cit. p. 302-3.
19 MIRABETE, Julio Fabbrini. Ob. cit. p. 196.
20 TEOTÔNIO, Luis Augusto Freire. Culpabilidade – Concepções e Modernas Tendências Internacionais e Nacionais. Campinas: Minelli, 2002. p. 21.
21 Ob. cit. p. 515.
22 Deve-se lembrar que a transgressão disciplinar militar, pelo comando dado pelo inciso LXI, do art. 5º, da Constituição Federal, somente pode surgir por lei, não mais por Decreto do Chefe do Poder Executivo. Obviamente, pela teoria da recepção, os diplomas disciplinares anteriores à nova ordem constitucional, se não eram fruto de lei, como tal foram recepcionados naquilo que não confrontou a Lei Maior, sob o aspecto material. A esse respeito, vide primordial raciocínio exposto por José Eduardo de Souza Pimentel, em artigo intitulado Regulamento Disciplinar não Pode ser Alterado por Decreto, in Revista Direito Militar nº 7 – setembro/outubro de 1997.
23 Lei Estadual 11.817, de 24 de julho de 2000.
24 Vide artigo 13 do Código Disciplinar dos Militares do Estado de Pernambuco.
25 Lei Federal 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
26 Artigos 116 e 117 da referida lei.
27"Em fins do século XVIII, a doutrina alemã cunhou a expressão Tadbestand, equivalente à latina corpus delicti, concebendo o delito com todos os seus elementos e pressupostos de punibilidade." BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 192.
28 Lei Complementar 893, de 09 de março de 2001.
29 Ob. cit. p. 314-5.
30 Convém lembrar que as dirimentes putativas, no Código Penal, estão topograficamente inseridas no dispositivo que trata do erro sobre elemento constitutivo do tipo, porém, a doutrina, de forma praticamente uníssona, reconhece a existência de erro de proibição, porquanto incidiu o erro sobre a ilicitude do fato.
31 BITENCOURT, Cezar Roberto e CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 429.
32 Ob. cit. p. 688-9.
33 Vide art. 33 da Lei Complementar 893/01.
34 Lei 8429, de 02 de junho de 1992.
35 O termo "responsabilidade penal flutuante" é marcante nas lições, em sala de aula, do Professor Oswaldo Henrique Duek Marques, pessoa de notável conhecimento jurídico, de quem tive a honra de ser aluno na Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, durante o ano de 2003.