A recente proliferação dos contratos de seguro de automóvel tem gerado algumas relevantes questões processuais, como por exemplo a da competência territorial para julgar ação regressiva de reparação de danos proposta por companhia seguradora.
A regra geral é a prevista no art. 94 do CPC, segundo o qual as ações pessoais devem ser propostas no foro do domicílio do Réu. No caso específico de danos oriundos de acidente de veículos, todavia, dispõe excepcionalmente o parágrafo único do art. 100 do CPC:
"Art. 100. (...)
Parágrafo único. Nas ações de reparação de dano sofrido em
razão de delito ou acidente de veículos, será competente o foro do domicílio do autor
ou do local do fato."
Ao exercer seu legítimo direito de regresso contra o responsável pelos danos (súmula 188 do STF), costumeiramente a companhia seguradora propõe a ação regressiva no foro do local onde mantém sua sede, aproveitando-se assim da exceção supracitada por ter-se sub-rogado nos direitos e ações do segurado, conforme previsão do art. 988 do Código Civil. Entretanto, não nos parece, data venia, que a prerrogativa do parágrafo único do art. 100 do CPC seja passível de transferência por sub-rogação.
ESPECIFICIDADE DA PRERROGATIVA
Toda forma de exceção deriva de um motivo específico que lhe justifica a elaboração e lhe dá suporte na aplicabilidade.
No caso do parágrafo único do art. 100 do CPC, o foro excepcional ali previsto foi estabelecido em benefício personalíssimo da vítima do abalroamento automobilístico - geralmente o Autor da ação -, com a finalidade precípua de poupar-lhe mais desagrados do que já sofrera. Além do dano material e quiçá moral, não seria justo - pensou o legislador de 1973 que o vitimado necessitasse arcar ainda, dentre outras, com despesas de deslocamento ao domicílio do Réu para satisfação do seu direito. Celso Agrícola Barbi, in "Comentários ao Código de Processo Civil", afirma:
"Dada a grande extensão territorial do país, veículos pertencentes a pessoa residente em um local causam dano em acidente ocorrido em outro, a centenas ou milhares de quilômetros. A regra geral do foro do domicílio do Réu não era capaz de atender às necessidades surgidas dessa nova fonte de demandas, porque a vítima tinha de ajuizar sua ação em distantes comarcas, longe do seu domicílio e do local do fato." (Ed. Forense, 1975, pp. 458/459)
Daí a intransmissibilidade da prerrogativa de foro à companhia seguradora: os danos e peculiares desagrados foram por outrem sofridos, cabendo à sub-rogada suportar apenas no campo financeiro, o que a torna uma credora comum submetida à generalidade do art. 94 do Código de Processo Civil. Como afirmou no STJ o Min. Barros Monteiro, "O disposto no art. 100, parágrafo único, do CPC, constitui norma de natureza excepcional, pelo que há de ser interpretado restritivamente. A ação de regresso é movida pela seguradora com base no pagamento feito ao segurado e no direito que, em conseqüência, se sub-rogou - e não na qualidade de vítima do dano resultante do acidente de veículos." (REsp nº 19.767/92 - 4ª Turma Unânime - DJ 07/02/94).
Não bastasse, e considerando-se que cada uma das filiais da pessoa jurídica enseja um diferente domicílio (art. 35, § 3º do CC), tem-se que estender à seguradora o foro privilegiado implicaria em dotá-la de boas chances de inviabilizar qualquer defesa da parte acionada. Ao acolher a Exceção de Incompetência nº 16.651/96, patrocinada pelo articulista, bem asseverou o Juiz José de Aquino Perpétuo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
"Quis o legislador facilitar à vítima de acidente de trânsito que, se tivesse que se submeter à regra geral do art. 94 do CPC, seria duplamente sacrificada e, por vezes, ficaria obstaculizada de invocar a tutela jurisdicional, o que, em derradeira análise, seria a inocuidade do princípio constitucional da inevitabilidade e acessibilidade da jurisdição. (...) Imaginemos, ao contrário, a hipótese de poder a seguradora propor a ação, valendo-se do parágrafo único do art. 100, no foro da Capital do Acre contra o Réu residente em Taguatinga-DF, postulando, sob pena de confesso, seu depoimento pessoal."
Confirmando a supracitada Decisão, assentou brilhantemente a 2ª Turma Cível do Egrégio TJDF:
"COMPETÊNCIA. ACIDENTE DE VEÍCULO. AÇÃO REGRESSIVA. SEGURADORA. (...) A regra estabelecida no parágrafo único do artigo 100 do Código de Processo Civil foi criada estritamente em favor da vítima de delito ou acidente de veículo, não se aplicando aos casos de sub-rogação ou ação regressiva da Seguradora, para os quais prevalece a regra geral do foro do domicílio do réu, disposta no artigo 94 do mesmo diploma processual." (AgI 6.801/96 - Rel. Des. Hermenegildo Gonçalves - Unânime - DJ 05/02/97)
Por fim, vale ressaltar que a Jurisprudência do Colendo STJ tem se firmado, gradativamente, pela pertinência da tese ora defendida, considerando intransmissível, por sub-rogação, a faculdade prevista no parágrafo único do art. 100 do CPC. Confira-se:
"CIVIL. ACIDENTE DE VEÍCULOS. FORO PRIVILEGIADO. A excepcionalidade de foro da vítima de acidente (CPC, art. 100, parágrafo único) é concedido em homenagem à sua situação personalíssima, e, por isso mesmo, não é passível de transmissão à sub-rogada. (...)" (REsp nº 35.500/93 - Rel. Min. Cláudio Santos - 3ª Turma - Unânime - DJ 13/09/93)
"COMPETÊNCIA. ACIDENTE DE VEÍCULOS. SUB-ROGAÇÃO. O foro excepcional, assegurado à vítima do acidente (CPC art. 100, parágrafo único), em homenagem à sua situação pessoal, constitui prerrogativa processual que não se transmite ao que se sub-roga no direito de receber indenização." (REsp nº 17.794/92 - Rel. Min. Nilson Naves - DJ 13/10/92)
CONCLUSÃO
Conclui-se, do exposto, que efetivamente é vedado à companhia seguradora arvorar-se em sub-rogada de uma prerrogativa inserida num contexto específico e com destinatário certo, razão pela qual o foro competente para a ação regressiva de reparação de danos oriundos de acidente de veículos é o do domicílio do Réu, nos termos do art. 94 do CPC. Ao estabelecer a possibilidade de propositura da ação reparatória no domicílio do Autor, agiu o legislador pietates causae - face à suposta situação de penúria do que foi diretamente lesado -, não sendo este o caso das companhias seguradoras, cujo direito ostentado é decorrente de mera e corriqueira sub-rogação creditícia.