Resumo: Esse ensaio se propõe a estudar o papel do poder judiciário para garantir o direito fundamental à saúde do militar temporário do Exército Brasileiro licenciado, isto é, excluído e devolvido à sociedade civil, com incapacidade laboral. Para tanto, será realizada uma pesquisa bibliográfica por uma abordagem jurídico-dogmática no intuito de identificar o regime jurídico aplicável ao militar temporário, os critérios para ingresso e manutenção no serviço ativo, bem como verificar quais são as condutas que a administração pública militar deve adotar no momento do licenciamento, analisando-as através de uma interpretação neconstitucionalista. Por fim, por meio da pesquisa descritiva através da observação e análise das decisões dos tribunais, verifica-se qual o papel do judiciário na efetivação do direito fundamental à saúde do militar temporário licenciado com incapacidade laboral.
1 INTRODUÇÃO
Todos os anos milhares de jovens com 18 anos de idade ou recém-formados em cursos de medicina, odontologia, farmacêutica etc., ingressam no serviço militar obrigatório ou voluntário do Exército Brasileiro na forma de militar temporário, tendo vínculo inicial de um ano, podendo ser renovado, anualmente, até o máximo de oito.
Esses militares temporários, que é o cerne desse estudo, possuem um regime jurídico diferenciado, eis que seu ingresso pode ser de maneira compulsória e como o próprio nome já diz, não guarda nenhum vínculo de estabilidade.
Ao cabo de cada ano de serviço ativo esses servidores da pátria podem ser licenciados e excluídos das fileiras do Exército, pelo que terá de passar previamente por uma inspeção de saúde, no intuito de atestar que possui a mesma condição de saúde que ingressou. No entanto, nem sempre isso acontece, fazendo com que militares que depositaram toda a sua energia para servir a pátria, sejam licenciados, sem possuir o tratamento de saúde até a efetiva recuperação.
Este trabalho divide-se em três partes para primeiro examinar o regime jurídico do militar temporário e formas de ingresso, em segundo o licenciamento de militares temporários do Exército Brasileiro com incapacidades laborais e; por fim, o papel do Poder Judiciário na garantia do direito fundamental à saúde dos militares temporários do Exército licenciados com incapacidade laboral.
2 REGIME JURÍDICO DO MILITAR TEMPORÁRIO DO EXÉRCITO BRASILEIRO E FORMAS DE INGRESSO
O Exército Brasileiro, juntamente com a Marinha e Aeronáutica, constituem as Forças Armadas, sendo instituição nacional permanente e regular, organizada com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e, possui atribuições bem definidas no art. 142, da Constituição Federal de 1988, quais sejam: defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem.
Para o cumprimento dos mandamentos constitucionais o Exército Brasileiro é constituído por servidores denominados militares (Silva, 2013, p. 26), “formando uma categoria especial de servidores da Pátria e se encontram na ativa ou na inatividade” [1] (Abreu, 2010, p. 241).
Os militares da ativa são subdivididos em duas diferentes categorias após o advento da Constituição de 1988, quais sejam: efetivos e temporários, dentre o universo de efetivos teremos os estabilizados e os não estabilizados[2] (KAYAT, 2014, p. 21).
“Os militares efetivos são aqueles que ingressaram nas Forças Armadas através de concurso público para provimento de cargo efetivo”. Já os militares temporários ingressam por meio diverso do concurso público, ou seja, são os prestadores do serviço militar obrigatório ou inicial[3], os que optaram pela prorrogação deste serviço, através do engajamento e reengajamento[4][5], e os cidadãos e reservistas convocados em situações excepcionais (reserva mobilizável em casos de guerra, etc), todos sempre por prazo determinado[6] (Kayat, 2014, p. 21).
Portanto, pode-se chegar ao conjunto de militares temporários por exclusão, isto é, são aqueles que não pertencem à categoria dos militares estáveis (militares efetivos e as praças com estabilidade) (Silva, 2013, p. 34).
Antes de estudar os requisitos para o militar temporário ingressar no Exército e como se desenvolve a sua manutenção no serviço ativo, mister se faz verificar que a legislação aplicável a essa categoria é a Lei 4.375/64, Lei do Serviço Militar[7], enquanto que, o Estatuto dos Militares se aplica aos militares efetivos[8] e apenas aos temporários da categoria alunos de órgão de formação da reserva.
Embora tenham sido elaborados durante o regime militar, amparadas na ordem constitucional então vigente (Silva, 2013), esses principais diplomas legais disciplinadores do regime jurídico dos militares mantiveram a sua vigência, especialmente o Estatuto dos Militares, que exerce um papel fundamental e central. Contudo, tais normas foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, somente não se admitindo a referida recepção em relação aos dispositivos que não estivessem compatíveis aos seus comandos normativos (Perin, 2006).
Identificado a legislação aplicável, resta-nos detectar de que forma os militares temporários ingressam no serviço ativo do Exército Brasileiro.
Anualmente vários jovens aos 18 anos de idade ingressam no serviço militar do Exército, por meio do serviço obrigatório ou inicial, constituindo-se em militares temporários por encontrarem um alicerce de carreira e subsistência, bem como pelo prazer de fazer parte de uma Instituição nacional e permanente com missões nobres. Conforme lição do ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello, os cidadãos recrutados para o serviço militar obrigatório exercem um verdadeiro munus público[9].
Para tanto, a Lei do Serviço Militar, regulada pelo Decreto 57.654/66, determina no art. 39 que os militares temporários (convocados ou voluntários) para o ingresso nas Forças Armadas, passarão por análises sob os aspectos físico, cultural, psicológico e moral (Nunes, 2016).
Isto é, para se tornar um militar temporário e prestar o serviço militar, os conscritos serão submetidos à inspeção de saúde, sendo classificados em quatro grupos, a saber: a) grupo “A”, quando satisfizerem os requisitos regulamentares, possuindo boas condições de robustez física (Apto “A”); b) grupo “B-1”, se, incapazes temporariamente, puderem ser recuperados em curto prazo (Incapaz B-1); c) grupo “B-2”, quando, incapazes temporariamente puder ser recuperado, porém sua recuperação exija um prazo longo e as lesões, defeitos ou doenças, de que foram ou sejam portadores, desaconselhem sua incorporação ou matrícula (Incapaz B-2); d) grupo “C”, quando forem incapazes definitivamente, i.e., irrecuperáveis, por apresentarem lesão, doença ou defeito físico considerados incuráveis e incompatíveis com o serviço militar (Incapaz C)” (Abreu, 2010, pp. 189, 190).
Tais inspeções de saúde, reguladas pelo Decreto 60.822/67, são realizadas em quatro etapas, quais sejam: "Triagem", "Geral", "Suplementar" e "Complementar". Tudo no intuito de selecionar os conscritos capazes de exercer o serviço militar e detectar aqueles que possuam alguma lesão ou doença pré-existente, podendo para tanto, ainda ser-lhe solicitado exames específicos.
Após lograr êxito nas etapas de seleção que ainda envolve entrevistas, teste de aptidão física, teste de conhecimentos gerais, o militar incorporado ou matriculado ingressará no serviço militar inicial do Exército Brasileiro que terá a duração normal de 12 (doze) meses. Mas, ao concluírem o tempo de serviço a que estiverem obrigados poderão, desde que o requeiram[10], ser concedida prorrogação desse tempo, uma ou mais vezes, como engajados[11] ou reengajados[12], segundo as conveniências da Força Armada interessada (Abreu, 2010, p. 197) - a Força Armada em estudo é o Exército Brasileiro - eis que trata de ato discricionário[13].
Vale dizer que, com os engajamentos e reengajamentos, caso o militar complete 10 (dez) ou mais anos de tempo de efetivo serviço, adquirirá a estabilidade, nos termos do artigo 50, inciso IV, alínea a da Lei 6.880/80 (Silva, 2013, p. 33). Ou seja, antes de completar 10 anos de efetivo serviço será considerado temporário, podendo, como visto ser licenciado antes do prazo por conveniência do serviço público.
Apesar de poder ficar no máximo oito anos no serviço ativo[14], o seu vínculo é renovado anualmente e, para tanto deve satisfazer critérios objetivos de saúde, aspectos físico, cultural, psicológico e moral, bem como critérios subjetivos ao ter que atender ao juízo discricionário do administrador público militar.
Vejamos, portanto que o militar temporário está sob um regime jurídico precário, em que cada Força Armada, à luz do princípio da discricionariedade administrativa, estabelece os requisitos e os parâmetros a serem observados, a fim de que haja um melhor preparo e emprego desse universo de militares, inclusive com vistas à formação de um contingente de militares da reserva não remunerada aptos e preparados para uma possível mobilização, deve ser encarada sob um ângulo totalmente distinto daquele que envolve um militar ou servidor de carreira, dado que esses estão submetidos a regimes jurídicos bastante distintos no que se refere às prerrogativas e garantias (Perin, 2006, p. 6).
Sucede-se que, no ínterim entre o ingresso às fileiras do Exército até o término do seu vínculo, o militar temporário do Exército está submetido a atividades anuais como instruções individuais básicas, instruções de capacitação técnica, atividades físicas diárias, bem como serviço de guarda da Organização Militar, que podem submetê-los a acidentes ou doenças que resultem em incapacidade laboral.
Assim, malgrado dispor de um regime jurídico precário, é inequívoco que estando o cidadão prestando um serviço público ao Estado, na forma de militar temporário do Exército, o mínimo que se espera é a preocupação de devolvê-lo à sociedade civil, no ato de licenciamento por término de serviço, na mesma condição plena de saúde que se encontrava no momento do ingresso às fileiras do Exército Brasileiro.
3 LICENCIAMENTO DE MILITARES TEMPORÁRIOS DO EXÉRCITO BRASILEIRO COM INCAPACIDADES LABORAIS.
Como vimos alhures, os militares temporários do Exército Brasileiro têm um regime jurídico precário, eis que o seu vínculo é inicialmente por apenas 12 (doze) meses e ao final, caso requeiram (agora de forma voluntária), poderão ser engajados e permanecer na Força por mais 01 (um) ano, chegando no máximo a 08 anos de efetivo serviço, isto porque caso cheguem a 10 (anos) de serviço, passam a gozar de estabilidade. Sendo possível que no exercício do serviço sofra doença ou acidente que o torne incapaz laboral, no entanto, resta saber se no momento do licenciamento, com a consequente devolução do cidadão à sociedade civil, há a preocupação do Estado em reconduzi-lo no mesmo estado de saúde que ingressou.
Segundo Abreu, o licenciamento “é o ato de exclusão do serviço ativo aplicado aos oficiais da reserva convocados, aos guardas-marinhas, aspirantes a oficial e às praças” (Abreu, 2010, p. 486). Recortando os destinatários desse conceito para o presente estudo que visa somente o Exército Brasileiro, o licenciamento aplica-se aos oficiais da reserva convocados, o aspirante a oficial e às praças que são os convocadas para o serviço militar obrigatório.
Silva, afirma que o licenciamento está disciplinado nos artigos 121 a 123 do Título IV, Capítulo II, da Lei 6.880/80, que versa sobre as formas de exclusão do serviço ativo das Forças Armadas e o consequente desligamento da organização a que estiver vinculado o militar. “Em regra, pode-se dizer que o licenciamento atinge os militares temporários” e que é “uma forma de exclusão do serviço ativo na qual o militar, em regra, não tem direito a qualquer remuneração”. A única exceção à regra de que não recebe remuneração é a prevista do artigo 1º da lei 7.963/89, onde infere-se que o oficial ou a praça, licenciado ex officio por término de prorrogação de tempo de serviço, fará jus à compensação pecuniária equivalente a 1 (uma) remuneração mensal por ano de efetivo serviço militar prestado (Silva, 2013, p. 35). Frise-se, não se aplica ao ano do serviço militar obrigatório (Silva, 2013, p. 36).
Avançando ao estudo do licenciamento, verifica-se que é um ato administrativo militar típico e, pela natureza de ato administrativo “cria, modifica ou extingue situação jurídica em relação ao servidor militar ou aos próprios órgãos dela integrantes” (Abreu, 2010, p. 85 e 86).
O ato de licenciar pode ser classificado quanto à liberdade da administração pública decidir em vinculado ou discricionário. Licenciamento de forma vinculada é o licenciamento ex officio por término do tempo de serviço, quando não for mais possível sua prorrogação, por meio de engajamento ou reengajamento; a demissão ou o licenciamento ex officio, respectivamente, do oficial ou da praça que tome posse em cargo ou emprego público civil permanente (art. 142, § 3.º, II, da CF/1988, c/c art. 117 e 122 da Lei 6.880/1980). Já o que está sujeito ao juízo de discricionariedade é o licenciamento por conveniência do serviço. Além do que, como vimos, o engajamento ou reengajamento também está sujeito a este juízo subjetivo de conveniência e oportunidade.
Deveras, por ser um ato administrativo complexo, ainda pode ser subdividido em licenciamento a pedido ou voluntário e ex officio que é o cerne do nosso estudo.
O licenciamento a pedido ou voluntário é um direito do “oficial da reserva convocado, após prestação do serviço ativo durante seis meses, e à praça com estabilidade assegurada, e à engajada ou reengajada, desde que conte, no mínimo, com a metade do tempo de serviço a que se obrigou”(Abreu, 2010, p. 486). Já o licenciamento ex officio será efetivado por conclusão de tempo de serviço ou de estágio, por conveniência do serviço, a bem da disciplina, por posse em cargo ou emprego público civil permanente (Abreu, 2010, p. 486).
Nesse diapasão, embora o licenciamento seja uma das formas de passagem do militar temporário à inatividade, é necessário que o militar temporário ao término do tempo de serviço a que está obrigado (seja os 12 meses do serviço militar obrigatório ou o ano em que exerce o serviço de forma voluntária engajado ou reengajado), seja submetido a uma inspeção de saúde, com o intuito de verificar se está apto e nas melhores condições de ser devolvido à sociedade.
Com efeito, Abreu nos ensina que:
A praça que, ao término do tempo de serviço, se encontrar baixada em enfermaria ou hospital, será submetida à inspeção de saúde para fins de licenciamento ex officio, se não for o caso de reforma. Mesmo depois de licenciada, desincorporada, desligada ou reformada, continuará em tratamento, até a alta hospitalar, por restabelecimento ou a pedido (Abreu, 2010, p. 197).
Ou seja, caso seja constatada incapacidade laboral no militar temporário nas inspeções de saúde com fins de licenciamento, o Exército Brasileiro deve manter o tratamento de saúde até a efetiva cura. Para tanto, vejamos que o disposto no art. 50, VI, e, do Estatuto dos Militares prevê que é direito dos militares “a assistência médico-hospitalar para si e seus dependentes, assim entendida como o conjunto de atividades relacionadas com a prevenção, conservação ou recuperação da saúde, abrangendo serviços profissionais médicos, farmacêuticos e odontológicos, bem como o fornecimento, a aplicação de meios e os cuidados e demais atos médicos e paramédicos necessários”.
Isto é, caso no momento da inspeção de saúde para fins de licenciamento por término do serviço (ex officio) ou por conveniência e oportunidade, seja constatada incapacidade laboral, deve o mesmo permanecer nas fileiras da Organização Militar que está vinculado, na condição de agregado para fins de tratamento de saúde e adido para fins de alterações e remuneração – tendo em vista que o encostamento é uma dissimulação do abandono[15] - para receber o tratamento de saúde adequado até a efetiva recuperação.
De mais a mais, apesar da Portaria nº 749/Cmt Ex de 17 de setembro de 2012, que alterou o Regulamento Interno dos Serviços Gerais, disponha que o amparo ao militar se dá pela agregação e adição nos casos de acidente em serviço e o encostamento nos casos de acidente ou doença sem relação de causa e efeito com o serviço, o STJ[16] e os Tribunais Regionais Federais[17] possuem o entendimento no sentido de que, uma vez submetido a rigorosos exames de aptidão física para ingresso e manutenção no serviço ativo, é desnecessária para o amparo do militar acometido por doença ou acidente, a demonstração do nexo causal entre a moléstia contraída pelo militar e o serviço prestado na caserna, bastando para tanto apenas que a doença ou lesão tenha sua eclosão durante o serviço militar prestado, tendo em vista que há presunção do liame causal entre a moléstia e o serviço militar.
Contudo, devido a experiências empíricas e o grande volume de ações judiciais buscando a reintegração, verifica-se que muitas vezes isso não acontece e, por conseguinte, militares temporários são licenciados com incapacidade laboral que o impede de se inserir no mercado de trabalho e perseguir a subsistência própria e da família. Sugere-se que tal procedimento aparentemente ilegal seja uma precaução para não manter custeando a remuneração e tratamento de saúde de um servidor que não pode contribuir nas atividades diárias das Organizações Militares, bem como correr o risco de ver esse servidor chegar a 10 anos de serviço e adquirir estabilidade.
Assim, uma vez devidamente comprovado que o militar temporário possui incapacidade laboral e a própria administração pública o licencie, não proporcione o seu tratamento até a efetiva cura, não resta alternativa à estes servidores da pátria, senão socorrer-se do Poder Judiciário, por meio de uma interpretação neconstitucionalista, para perseguir o direito à saúde por meio da reintegração e consequente passagem a situação de adido e agregado para fins de tratamento de saúde, remuneração e alterações.