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A concretização do princípio da individualização da pena:

a interpretação evolutiva da lei de crimes hediondos

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08/03/2006 às 00:00
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5 A Jurisdição constitucional e a concretização dos direitos fundamentais

5.1 Prolegômenos

Para a professora Christine Peter, a concretização de determinado direito fundamental é o meio pelo qual se revela possível conceituar e estabelecer o âmbito de proteção deste conteúdo fundamental, na medida em que se expõe diante de um caso concreto um conflito para ser solucionado. [74]

Com efeito, para se proteger determinados direitos fundamentais, é preciso ter em mente o conceito de âmbito de proteção, o qual diz respeito à parcela de realidade contemplada na norma que o legislador constituinte houve por bem proteger no rol previsto no texto constitucional. [75]

Gilmar Mendes nos ensina que "muitas vezes, a definição do âmbito de proteção somente há de ser obtida em confronto com eventual restrição desse direito". [76] É o que exatamente está ocorrendo com o âmbito de proteção do princípio da individualização da pena: desde a edição da Lei n. 8.072, em 1990, até o presente ano, a Suprema Corte discute, de caso em caso concreto, a incidência desse princípio em face das disposições legais e, de certa forma, começa a desvendar alguns aspectos relevantes da aplicação dessa norma.

Nesse sentido, o debate acerca da interpretação evolutiva dos crimes hediondos traz em discussão uma colisão dos núcleos essenciais de direitos fundamentais, em que não existirá uma revogação de direitos fundamentais, mas sim uma exegese de qual deles prevalecerá em um determinado caso concreto.

Nesse contexto, os valores constitucionais da segurança pública, presentes nos dispositivos da Lei dos Crimes Hediondos, provocam uma colisão de valores fundamentais em sentido amplo [77], em razão de envolver o núcleo essencial dos princípios da individualização da pena (CF, art. 5º, XLVI), da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), da liberdade provisória (CF, art. 5º, LXVI) sem fiança, da presunção de inocência sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (CF, art. 5º, LVII) do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput), com o conteúdo material presente na restrição constitucional de caráter penal (CF, art. 5º, XLIII), que fundamentou a edição da legislação infraconstitucional acerca dos crimes hediondos.

Nesse aspecto, o professor português José Carlos Vieira de Andrade [78] assevera que os espaços de colisão e de conflito de direitos fundamentais estão, na maior parte dos casos, regulamentados por normas ordinárias. Assim sendo, em se tratando de conflitos propriamente ditos ou de restrições de direitos, quando não for possível a solução de restrição da norma de direito fundamental pelo legislador infraconstitucional, nos ensina Christine Peter que "a solução do conflito encontra-se na interpretação do caso concreto a cargo da jurisdição constitucional, a qual deverá atuar com fundamento em um juízo de ponderação entre bens e valores". [79]

5.2 A contribuição dos princípios norteadores da interpretação constitucional

Os princípios norteadores da interpretação constitucional não são princípios, mas métodos para fomentar o alcance de sentido do intérpre à luz dos dispositivos constitucionais.

Nesse contexto, os dispositivos normativos – que no caso são a Constituição e a Lei de Crimes Hediondos – devem ser iluminados pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), e compreendidos com o auxílio dos princípios norteadores da interpretação constitucional, os quais constituem meios para a concretização dos direitos e garantias fundamentais.

Nessa perspectiva, o princípio da unidade da Constituição assevera que todo o direito constitucional deve ser interpretado de forma a evitar contradições entre suas normas, havendo a necessidade de não se considerar uma norma isoladamente, mas sempre na totalidade do contexto em que está inserida. A seu turno, a força normativa da Constituição implica não só cumprir seus mandamentos, mas extrair a máxima eficácia possível em cada problema concreto a solucionar, possibilitando a atualização normativa dos seus dispositivos, a fim de garantir a sua eficácia e permanência, preservando-se, com o princípio do efeito integrador, a unidade política da Constituição, pois de acordo com o princípio da máxima efetividade, as normas constitucionais devem gozar da máxima plenitude possível, em concordância prática com a harmonização de seus preceitos, sendo concretamente vivida pelos membros da coletividade. [80]

Com efeito, a decisão proferida pelo STF permitindo a progressão de regime dos crimes hediondos coaduna-se com o conteúdo do princípio da exatidão funcional, o qual é explicado pela professora Christine Peter:

"O princípio da exatidão funcional diz que quando a Constituição regula de uma determinada maneira as tarefas dos titulares de funções estatais o órgão interpretador deve ater-se ao âmbito das funções que lhe são destinadas. Assim sendo, esse órgão não deve modificar a repartição das funções por meio da maneira e do resultado de sua interpretação.

Também chamado de princípio da justeza, o princípio da conformidade funcional significa que o órgão (ou órgãos) encarregado(s) da interpretação-concretização da lei constitucional não pode(m) chegar a um resultado que subverta ou pertube o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido." [81]

Dentro desse contexto, a Corte Constitucional agiu dentro de sua competência estabelecida na Constuição – a de seu guardião (CF, art. 102, caput) e a de garantidor dos direitos fundamentais (CF, Preâmbulo) – protegendo do arbítrio e da grande emoção do legislador ordinário determinados direitos e princípios fundamentais que são essenciais para reeducar o preso e reestabelecer o equilíbrio social.

Nesse sentido, a decisão do HC n. 82.959 acerca do direito fundamental a individualização da pena revelou (em seu resultado de 06 votos a 05) as opções da Corte sobre o seu conteúdo, fundamentando com clareza todos os componentes levantados no momento da interpretação-concretização do direito fundamental a individualização da pena, evidenciando-se os tópicos interpretativos, a fim de controlar a legitimidade da racionalidade da argumentação utilizada pelos Ministros do STF. [82]

Assim sendo, toda a sociedade precisa se empenhar para informar ao Supremo Tribunal Federal as suas concepções e interpretações acerca dos direitos fundamentais, seja pelos doutrinadores, seja pela mídia [83], em que deve-se aproximar a realidade do texto constitucional, por meio da opinião consciente de cidadãos que se empenhem em participar da sociedade aberta [84] de intérpretes da Constituição. [85]

Portanto, os princípios norteadores da interpretação constitucional são ferramentas essenciais para se estabelecer um ponto de ligação entre os direitos fundamentais e a legislação infraconstitucional, tendo em vista que, dentro da perspectiva apresentada pela pós-modernidade [86], em que a Constituição retorna ao centro do ordenamento jurídico, é necessário possuir uma hermenêutica e uma argumentação (constitucionais) sofisticadas (adquiridas pelo estudo desses métodos auxiliares de interpretação constitucional), a fim de construir uma teoria geral dos direitos fundamentais para resguardar o cidadão.


6 Considerações finais

Após mais de uma década e meia de vigência do § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/90, a sociedade e as funções de Poder do Estado iniciam um debate sobre o regime de progressão de pena em matéria de crimes hediondos. Digo "iniciam" porque a decisão do HC n. 82.959 não é o fim, tão pouco o começo, mas apenas uma etapa do processo que se iniciou com os fatos que motivaram o projeto de lei que resultou na Lei dos Crimes Hediondos.

Não obstante, outros pontos da Lei n. 8.072/90 ainda precisam ser enfrentados, como a afronta ao direito fundamental à liberdade provisória sem fiança e à competência do Presidente da República em conceder o instituto do indulto.

Com efeito, mediante uma análise doutrinária e uma comparação entre leading cases (os primeiros HCs após a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos e os votos do HC n. 82.959), é de se observar uma evolução no sentido que se dá aos direitos fundamentais. Atualmente, a Corte Constitucional está mais preocupada em resguardar os direitos e as garantias fundamentais previstos na Constituição, tanto os de ordem material, como aqueles de natureza processual. Nesse contexto, os crimes hediondos são apenas um dos diversos "casos difíceis" que o Supremo tem a enfrentar pela frente.

Nessa perspectiva, a atuação dos demais intérpretes torna-se fundamental, pois a Corte se encontra inserida no contexto da pós-modernidade, em um momento de atualização e, dessa forma, a sociedade aberta tem que se pronunciar e emitir sua opinião, seja utilizando dos recursos da mídia, seja por meio dos estudiosos, seja pela via institucional (em especial pelo instituto do amicus curiae), dentro, portanto, de uma proposta hermenêutica constitucionalmente adequada para o texto da Constituição de 1988.


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Sobre o autor
André Pires Gontijo

bacharelando em Direito pelo UniCEUB, pesquisador do CNPq

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONTIJO, André Pires. A concretização do princípio da individualização da pena:: a interpretação evolutiva da lei de crimes hediondos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 980, 8 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8072. Acesso em: 19 abr. 2024.

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