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O regime dos precatórios

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8. DESCUMPRIMENTO DE PRECATÓRIOS

Prescreve a Constituição da República que cabe intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal para prover a execução de ordem ou decisão judicial (CF, art. 34, VI). O Texto Constitucional prevê também intervenção do Estado em seus Municípios quando o Tribunal de Justiça der provimento a representação para prover a execução de ordem judicial ou de decisão judicial (CF, art. 35, IV).

O Supremo Tribunal firmou entendimento no sentido de que somente a hipótese de preterição no direito de precedência autoriza o seqüestro de recursos públicos, a ela não se equiparando as situações de não-inclusão da despesa no orçamento, de vencimento do prazo para quitação ou qualquer outra espécie de pagamento inidôneo, casos em que ficaria configurado o descumprimento de ordem judicial, sujeitando o infrator à intervenção federal ou estadual, conforme o caso [23]. Também decidiu a Corte Excelsa que o descumprimento voluntário e intencional de decisão transitada em julgado configura pressuposto indispensável ao acolhimento do pedido de intervenção; somente a ausência de voluntariedade ao não pagar precatórios, consubstanciada na insuficiência de recursos para satisfazer os créditos contra a Fazenda Pública no prazo previsto no § 1º do artigo 100 da Constituição da República, não legitima a medida drástica de subtrair temporariamente a autonomia do ente público, mormente quando, apesar da exaustão do Erário, o devedor vem sendo zeloso, na medida do possível, com suas obrigações derivadas de provimentos judiciais [24].

Os precatórios não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites de endividamento dos entes da Federação, impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, art. 30, § 7º).


9. SEQÜESTRO DE QUANTIA PARA SATISFAÇÃO DO DÉBITO

Estabelece a Carta Política de 1988, artigo 100, § 2º, in fine, que compete ao Presidente do Tribunal que pronunciar a decisão exeqüenda autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito. No mesmo sentido, preceitua o Código de Processo Civil que, se o credor for preterido no seu direito de preferência, o Presidente do Tribunal, que expediu a ordem, poderá, depois de ouvido o Chefe do Ministério Público, ordenar o seqüestro da quantia necessária para satisfação do débito (art. 731).

O termo exclusivamente, que consta nesse dispositivo constitucional, tem recebido interpretação taxativa da Suprema Corte, que não tem admitido qualquer outra razão que justifique o seqüestro em tela. Essa discussão veio à baila naquele Tribunal após a edição da Emenda Constitucional nº 30/00. É que essa Emenda acrescentou o artigo 78, § 4º, ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispondo que o Presidente do Tribunal competente deverá, vencido o prazo ou em caso de omissão no orçamento, ou preterição ao direito de precedência, a requerimento do credor, requisitar ou determinar o seqüestro de recursos financeiros da entidade executada, suficientes à satisfação da prestação. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.662-7, aquela Corte assentou que a referida Emenda não introduziu nova modalidade de seqüestro de verbas públicas para a satisfação de precatórios concernentes a débitos alimentares, permanecendo inalterada a regra imposta pelo artigo 100, § 2º, da Carta Federal, que o autoriza somente para o caso de preterição do direito de precedência do credor [25].

Entendeu o Supremo Tribunal que não é possível equiparar – a despeito da superveniência dos termos do artigo 78, § 4º, do ADCT – a não-inclusão no orçamento da verba necessária à satisfação de precatórios judiciais e o pagamento a menor, sem a devida atualização ou fora do prazo legal, à preterição do direito de precedência, dado que somente no caso de inobservância da ordem cronológica de apresentação do ofício requisitório é possível a decretação do seqüestro, após a oitiva do Ministério Público [26]. Segundo essa interpretação, não ocorreu substancial modificação na redação do texto primitivo do artigo 100 da Carta de 1988, no que se refere às hipóteses de seqüestro de verbas públicas, com a publicação da Emenda Constitucional nº 30/00. Ou ainda, essa Emenda manteve o seqüestro exclusivamente para o caso de preterição do credor. Nessa oportunidade, prevaleceu o argumento aduzido pelo Ministro Moreira Alves de que se aplica o texto permanente da Carta Federal a todo e qualquer caso, exceto àqueles previstos nas disposições transitórias; o ADCT, por outro lado, só diz respeito ao que está na transitoriedade, não podendo ser conjugado ao texto permanente [27].

De fato, o artigo 78, § 4º, do ADCT – até pela sua natureza de disposição transitória – não alterou o artigo 100, § 2º, da Constituição Federal, mas, inegavelmente, prevê regra temporária que disciplina seqüestro de recursos financeiros do ente executado para satisfação de prestação de precatório parcelado. Acontece que o seqüestro de que trata o artigo 100, § 2º, da Constituição é diverso do previsto no artigo 78, § 4º, do ADCT. Eis as diferenças. O primeiro aplica-se em qualquer tipo de precatório (comum ou alimentício), com pagamento parcelado ou não, e ocorre mediante o seqüestro de recursos já em poder do Judiciário, em face da entidade executada ter encaminhado o recurso financeiro para pagar determinado beneficiário com quebra da ordem de pagamento; o segundo incide somente no caso de precatório comum que foi objeto de parcelamento e sucede quando sobrevém atraso no pagamento, omissão no orçamento ou preterição ao direito de preferência e se efetiva com o seqüestro de recursos em poder da entidade executada.

Com efeito, o regime de parcelamento de precatórios disciplinado pela Emenda Constitucional nº 30/00, que não alcança os alimentícios, nem as requisições de pequeno valor, oferece, para os credores de precatórios comuns parcelados, uma contrapartida em face do desfavor da divisão do pagamento em até dez prestações anuais, qual seja, a possibilidade de seqüestro de numerário em poder do ente devedor para garantir o pagamento de prestação em mora. Dessa maneira, está o ente devedor que parcelar precatório, na forma prevista no artigo 78 do ADCT, obrigado a incluir no orçamento, a cada ano, até a quitação, dotação suficiente à satisfação dos precatórios parcelados, sob pena de seqüestro dos dinheiros, em poder da entidade devedora, necessários à quitação das parcelas vencidas e não pagas.

Essa questão está sendo discutida no Plenário do Supremo Tribunal nos autos da Reclamação nº 2607. Na ação, a entidade devedora contesta o seqüestro de verbas dos cofres municipais para o pagamento de precatórios - que foi determinado a partir de autorização do Tribunal de Justiça estadual, sob o argumento de que os recursos para o pagamento da dívida não estavam previstos no orçamento municipal –, alegando que a determinação judicial implica quebra da ordem cronológica. A parte interessada pede que seja garantido o seqüestro de quantia suficiente à satisfação das parcelas vencidas e não pagas, referentes aos exercícios de 2001, 2002, 2003 e 2004, que corresponde a 4/10 do precatório. No julgamento, iniciado em 09/02/2006, o Ministro Carlos Ayres de Britto, Relator da matéria, votou pela improcedência da ação; o Ministro Eros Grau pediu vista, suspendendo o julgamento da ação [28].

Ressalte-se, por derradeiro, que o seqüestro tem natureza de ato puramente administrativo; não se trata de ato jurisdicional, visto que objetiva satisfazer direitos de terceiros já reconhecidos pela Justiça em sentença transitada em julgado. O juiz da execução não é o Presidente do Tribunal, e sim o que emite o precatório. A atividade jurisdicional termina com a expedição do precatório; essa é a função executória. Tal compreensão tem alcance prático; é ela que impede o Presidente do Tribunal de reexaminar o cálculo do precatório, valendo-se de parâmetros diversos daqueles utilizados na sentença exeqüenda.


10. PAGAMENTO DE OBRIGAÇÕES DE PEQUENO VALOR

O regime dos precatórios, previsto no caput do artigo 100 da Constituição Federal, não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de pequeno valor que a Fazenda Federal, Estadual, Distrital ou Municipal deva fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado (CF, art. 100, § 3º), possibilitando o pagamento imediato de tais dívidas [29].

A Emenda Constitucional nº 30/00, que introduziu o § 3º no artigo 100 do Texto Constitucional, inovou ao distinguir os débitos judiciais em duas espécies: precatórios e requisições de pequeno valor (conhecidas como RPVs), permitindo que lei específica defina o que deve ser considerado pequeno valor. Para o fim de pagamento das RPVs, a lei poderá fixar valores distintos, segundo as diferentes capacidades das entidades de direito público (CF, art. 100, § 5º).

Por seu turno, preceitua o artigo 87 do ADCT que, para efeito de pagamento das RPVs e do que estabelece o artigo 78 do ADCT, serão considerados de pequeno valor, até que se dê a publicação oficial das respectivas leis definidoras pelos entes da Federação, os débitos ou obrigações consignados em precatório judiciário, que tenham valor igual ou inferior a: a) 40 salários-mínimos, perante a Fazenda dos Estados e do Distrito Federal; b) 30 salários-mínimos, perante a Fazenda dos Municípios. Entretanto, se a quantia executada ultrapassar o valor da RPV, é facultado à parte exeqüente a renúncia do crédito do valor excedente, para que possa optar pelo pagamento do saldo sem o precatório, da forma prevista no § 3º do artigo 100 da Constituição Federal (§ único do art. 87 do ADCT) [30].

Na esfera federal, a Lei nº 10.259/01, com vigência a partir de janeiro de 2002, além de instituir os juizados especiais federais (art. 3º, caput), com competência para processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de 60 salários-mínimos, define o limite dos débitos considerados de pequeno valor, fixando-o, também, em 60 salários-mínimos por beneficiário (art. 17, § 1º).

O caput do artigo 86 do ADCT, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 37/02, estabeleceu que não se aplica a regra de parcelamento do artigo 78 do ADCT aos débitos da Fazenda Pública, oriundos de sentenças transitadas em julgado, que preencham, cumulativamente, as seguintes condições: a) ter sido objeto de emissão de precatórios judiciários; b) ter sido definidos como de pequeno valor; c) estar, total ou parcialmente, pendentes de pagamento na data da publicação dessa Emenda. O § 1º dispôs que esses débitos serão pagos na ordem cronológica de apresentação dos precatórios, com precedência sobre os de maior valor; o § 2º determinou que tais débitos, se ainda não tiverem sido objeto de pagamento parcial, nos termos do artigo 78 do ADCT, poderão ser pagos em duas parcelas anuais, se assim dispuser a lei. Os débitos de natureza alimentícia, que se enquadrem nas regras do dispositivo transitório em tela, terão precedência para pagamento sobre todos os demais (§ 3º).


11. FRACIONAMENTO DO VALOR DA EXECUÇÃO

A Emenda Constitucional nº 37/02 fez constar na Lei Maior, artigo 100, § 4º, a proibição de expedição de precatório complementar ou suplementar de valor pago, bem como de fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução, de modo que parte do pagamento se faça por meio de precatório e parte por meio de requisição de pequeno valor (RPV).

Não é demais ressaltar que fracionamento do valor da execução não se confunde com parcelamento do pagamento de precatórios. Uma coisa é dividir o valor da execução a fim de que seu pagamento se faça por meio de duas ou mais RPVs, ou parte por intermédio de precatório e parte por RPV(CF, art. 100, § 4º); outra coisa é liquidar um precatório em prestações anuais, iguais e sucessivas (ADCT, art. 78). No primeiro caso, o valor da execução é, totalmente ou parcialmente, indevidamente pago pelo regime de RPV; no segundo caso, todo o pagamento é feito pelo regime de precatório.


12. RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL COMPETENTE PARA O PAGAMENTO DO PRECATÓRIO

Cabe ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito [31], e autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito (CF, art. 100, §2º). Desse modo, é essa autoridade que tem a função de expedir os alvarás para pagamento dos precatórios na medida em que o Poder Executivo for liberando os recursos financeiros (disponibilizando o numerário).

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O Presidente do Tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatório incorrerá em crime de responsabilidade [32], [33] (CF, art.100, § 6º). O Superior Tribunal de Justiça [34] já decidiu que, no caso de expedição de ordens de pagamento de precatório com quebra da ordem cronológica de entrada no Tribunal, o Presidente responderá pelo crime de prevaricação (CP, art. 319) e pelo crime de responsabilidade anunciado no artigo 100, § 5º, da Constituição Federal, o que sujeita seu autor às sanções constantes no artigo 2º da Lei nº 1.079/50 [35].


13. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início do novo milênio, um grave problema aflige a Administração Pública brasileira: o sistema de pagamento de precatórios entrou em colapso, não conseguindo dar vazão à enxurrada de requisições de pagamento contra a Fazenda Pública, em face de decisões transitadas em julgado. Em conseqüência, o modelo de pagamento de precatórios estabelecido na Constituição Federal está na berlinda. Se não é possível acabar com o sistema, propostas alternativas já estão sendo formuladas para resolver o problema [36].

Realmente, o Estado brasileiro está atascado em precatórios pendentes de pagamento. Levantamento feito pelo Supremo Tribunal Federal revela que os Municípios acumulam dívidas dessa natureza que somam R$ 20 bilhões, enquanto os Estados-Membros devem cerca de R$ 42 bilhões [37]. Em conseqüência, até agosto de 2001, tramitavam naquela Corte cerca de três mil processos com pedido de intervenção pelo descumprimento de precatórios, dos quais aproximadamente dois mil e quinhentos se referiam ao Estado de São Paulo [38]. Naquela época, o Estado de Goiás estava pagando os precatórios alimentícios de 1980 [39]. Mas qual o motivo dessa situação? Será mesmo o regime jurídico do artigo 100 da Carta Magna ruim? Ou serão outras as razões desse imbróglio?

Em verdade, problema de tamanha magnitude não pode ser atribuído a uma única causa; são vários os fatores que atuam produzindo esse resultado. Existem razões de ordem estrutural e de conjuntura. Não se pode negar que a efetivação do Estado Democrático de Direito no País impulsionou o cidadão a buscar na Justiça a reparação de danos contra seus direitos, em face da responsabilidade objetiva do Estado. Outra realidade é que, em muitos casos, talvez a maioria, Estado e cidadãos são apenas vítimas das trapalhadas dos governantes. São demandas oriundas da desordenada Previdência Oficial, de planos econômicos mirabolantes, de relações mal resolvidas com o funcionalismo público, da pífia política agrária. Por outro lado, não se sabe se por puro descompromisso ou falta de perspectiva de solução para o problema, os orçamentos públicos não estão prevendo dotações proporcionais às necessidades para pagamento de precatórios.

O certo é que o chamamento do Estado pela Justiça para pagar determinado valor em decorrência de condenação transitada em julgado, que deveria ser algo raro e valioso, passou a ser corriqueiro e banal. Nesse diapasão, não haverá fórmula mágica que resolva o problema, enquanto não se reverter essa cultura do agente público brasileiro.

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Sobre o autor
José de Ribamar Caldas Furtado

conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão, mestre em Direito pela UFPE, professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário da UFMA, instrutor da Escola do Ministério Público do Maranhão

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURTADO, José Ribamar Caldas. O regime dos precatórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 981, 9 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8079. Acesso em: 24 nov. 2024.

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