Distanciamento social? Isolamento? Vivemos em sociedade desde os primórdios e especialistas em ciência do comportamento humano afirmam que é inerente ao ser humano a interação social, ou seja, a convivência com o outro.
No entanto, para que essa convivência se concretize, é necessário haver um ordenamento para gerar a ordem em sociedade, o que é exteriorizado por regras e princípios.
Princípios são postulados que determinam padrões de conduta orientando determinado assunto. Em outras palavras, são alicerces, ensejando fundamentos éticos que iluminam as relações entre os seres humanos.
Hodiernamente, está em voga o princípio da boa-fé, mas o que vem a ser a famigerada boa-fé.
No atual cenário, vivido em decorrência da pandemia anunciada, vislumbra-se a exsurgência de postulados essenciais a uma sociedade civilizada.
O princípio da boa-fé é uma norma de conduta, o qual está estruturado nos direitos fundamentais, quais sejam, a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal e a solidariedade, todos previstos na Constituição Federal de 1988.
O princípio da confiança decorrente, também, da boa-fé é o cerne do debate diante da pandemia do COVID-19.
A confiança refere-se à conduta que o cidadão pratica em conformidade com as regras já estabelecidas do ordenamento jurídico posto e da sociedade, sendo que se presume que as demais pessoas também sigam as mesmas regras para, então, haver uma harmonização voltada ao bem comum de todos e, consequentemente, à pacificação social.
Ocorre que, vivendo o presente, se conectando às redes sociais, aos telejornais ou até mesmo abrindo a janela de casa verifica-se que o cidadão está recalcitrante em compreender os postulados da confiança.
Contextualizando, no momento, a palavra da vez é distanciamento social com o objetivo de atenuar os efeitos da pandemia no país. Isso porque todos os especialistas na área estão alertando de que com essa conduta é possível evitar o contágio rápido do vírus e, assim, impedir ou mitigar um colapso. Todavia, para que isso ocorra é necessária a confiança no outro, a confiança em toda a população.
Essa confiança decorre da solidariedade, objetivo fundamental elencado na Carta Magna em seu artigo 3º[1]. Soma-se a isso a dignidade da pessoa humana que a todos é assegurada como direito fundamental.
Não obstante, esses direitos serem bem lembrados por todos em sua eficácia vertical – entre Estado e particular-, será que estão sendo cumpridos também em sua eficácia horizontal, ou seja, entre particulares?
Há possibilidade de efetiva confiança na sociedade? Há confiança no outro quanto ao bem-estar da coletividade? Há o cumprimento do princípio da solidariedade para preservar a sua dignidade humana e a do próximo? Questionamentos incontáveis nesse período de insegurança.
Trazendo à baila, ainda, o princípio constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88), o qual se refere, em sua dimensão formal, ao respeito aos procedimentos aplicáveis ao sistema vigente, surge outra indagação: está sendo cumprido o sistema em vigor, o cidadão está em observância com as normas? Está-se acostumado a falar da inobservância das normas legais, postas, mas aqui vamos além, hoje não se trata somente em analisar as normas legais, mas também as normas de convivência, o princípio da confiança, o princípio da solidariedade com o próximo, ou seja, com toda a sociedade.
No campo do direito penal há a Teoria do direito penal do inimigo de Günther Jacobs, a qual preconiza que o sujeito que desrespeita às normas é inimigo da sociedade, pois quebrou o contrato social denominado por Jean –Jacques Rosseau. Portanto, continua o filósofo, esse sujeito não merece ser tratado como cidadão, não possuindo os mesmos direitos e garantias de um cidadão que cumpriu o contrato social. Nesse sentido, há a flexibilização de direitos e garantias fundamentais, conforme elucidado pela terceira velocidade do direito penal de Jesus – María Silva Sánchez.
O cidadão, hoje, passa a ser o protagonista da solução do problema, com o seu livre arbítrio, a necessidade de comprometimento e a responsabilidade acerca dos resultados que virão surtir efeitos em toda a sociedade.
Isso pode ser traduzido pelo princípio da cooperação, ou seja, pelo paradigma cooperativo, também, adotado no ordenamento jurídico, trazendo como decorrência os deveres de assistência e auxílio. Pressupõe uma conduta de lealdade por parte de todos aqueles que participam do processo.
Assim, pode-se inferir que pelo princípio cooperativo o destino ou o desfecho será o resultado decorrente de uma gestão compartilhada do processo que está ocorrendo, isto é, uma gestão na qual todos os atores da sociedade devem visar o bem comum, prestigiando os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana, solidariedade, devido processo legal, boa-fé e confiança.
Destarte, não se pode olvidar que está nas mãos do cidadão a possibilidade da “virada do jogo” ou será necessário a aplicação do que Thomas Hobbes intitulou como Leviatã?
Notas
[1] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;