3. O RELEVANTE INTERESSE COLETIVO NA ATIVIDADE EMPRESARIAL DO ESTADO
A exploração de atividades econômicas enquanto instrumento do Estado como potente realizador do interesse coletivo, sendo esta a razão fundamental na legitimação da constituição de empresa estatal, não haveria justificação para o Estado explorar atividade econômica quando via de regra, tal campo é próprio da livre iniciativa. É necessária confrontação a partir dos liames jurídico-constitucionais, que ainda versam imprecisos no Art. 173, da Constituição Federal, como relevante interesse coletivo e se tal interesse poderia pressupor ainda do princípio da supremacia do interesse público.
COMPARATO (1990, p. 270) argumenta que “caberia uma lei em si com abrangência nacional definir as hipóteses de relevante interesse coletivo e de motivo de segurança nacional” em contraste ao que positiva o diploma constitucional. Eis que o relevante interesse coletivo é conceito fundamental no condão nascituro de determinada exploração de atividade econômica por meio de empresas estatais. Ainda que haja finalidade persecutória no objetivo societário, antes ainda tal finalidade deverá buscar consonância na vontade geral e do interesse comum, que é ainda um conceito jurídico indeterminado, conforme também anota JUSTEN FILHO (2014, p. 115)
[...] por ser um conceito indeterminado, a aplicação do conceito de interesse público pode ser desvirtuada diante dos casos em que o exercente do poder se refugia no princípio da supremacia do interesse público, e por isso é estritamente necessário que se prossiga na tentativa de determinar o conceito de interesse público, sob pena de utilização equivocada do referido princípio.
Neste ínterim depreende-se que todo interesse coletivo tem por característica a transindividualidade e não apenas sob a égide de uma única forma ou ser, mas a um grupo que congregue entre si, portanto a titularidade do interesse coletivo. Em consequência disto, encontramos em PINTO JUNIOR (2009, p.240), amplo levante de observações cabíveis no melhor entendimento da relevância do interesse coletivo na legitimação da exploração estatal de atividades econômicas
O interesse público é entendido como a reunião de interesses particulares dos cidadãos, e não como algo transcendente que espelha o interesse abstrato da nação. Daí porque a oferta de utilities [4] pode ficar a cargo do mercado, não sendo uma obrigação inerente ao Estado. Em outras palavras, não se trata de atividade titularizada exclusivamente pelo Estado, mas sujeita à livre iniciativa.
Ainda que obscura a exata conceituação que procuramos esclarecer firmados em ombros de gigantes do universo jurídico. Temos como consoante que nas palavras de SALOMÃO FILHO (2008, p.17)
Não é fácil conceituar o interesse público, notadamente aquele relativo à função empresarial do Estado. Alguns doutrinadores enxergam o interesse público como o somatório dos interesses individuais homogêneos, sem admitir, entretanto, que possa ter autonomia própria. A distinção mais importante nesse particular é entre o interesse da coletividade e o interesse estatal, já que ambos podem ser incluídos na categoria mais ampla de interesse público.
Não obstante BANDEIRA DE MELLO (1998, p.57) que o interesse público deve transigir também que na forma do que já ementado em epígrafe, o pressuposto do interesse coletivo transcendente do interesse individual
O interesse público incorporado na empresa estatal (sob forma de sociedade unipessoal ou com participação de capitais privados) não se confunde com o interesse patrimonial do Estado.
[...]
O interesse público, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da sociedade (entificada juridicamente no Estado).
DI PIETRO (2005, p.39), afirma
[...] o princípio da supremacia do interesse público não coloca em risco os direitos fundamentais do homem, posto que o interesse público se desenvolveu no Estado Social de Direito para proteger os vários interesses das várias camadas sociais.
O mister racional da constituição legal de empresas estatais, fito que sem tal motivação tais empresas estatais se distanciariam das suas finalidades precípuas e tal objetivação pode ser encontrada no diploma infraconstitucional da Lei 6.404/76 das Sociedades Anônimas
Art. 238. A pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (artigos 116 e 117), mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação.
No mesmo sentido FOLENA DE OLIVEIRA (1997, p.297)
[...] o papel do Estado é o de provedor do interesse geral, devendo ser direcionado à vontade coletiva, seja na ordem política/institucional ou na ordem econômica. Assim, o Estado agiu, quando convocado, para atuar como empresário na ordem econômica.
Tal materialidade da vontade coletiva é inevitavelmente mais observada em momentos adstritos enquadrados nos contextos socioeconômicos de crises ou de intensificação da própria atuação estatal e acabam submetendo o Estado a uma aproximação definitiva em tal exploração de atividade econômica por meio de suas empresas públicas ou sociedades de economia mista ou outras espécies de empreendimentos estatais. Transversalmente é do economista KEYNES (2014, p.285) que denota-se a conformação da Constituição Econômica brasileira sobre a atuação do Estado em razão do interesse coletivo em face da atenuação dos contornos imediatos na atuação do Estado como instrumentador de políticas de equalização.
SMITH (2017, p.217) acaba por trazer um gradiente adicional
[...] nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir seus próprios objetivos, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quanto (um Governo) tenciona realmente promovê-lo individualmente.
BERCOVICI (2011, p.266) atenua de forma objetiva o cerne da atuação do Estado na exploração de atividades econômicas dizendo “Estado é consequência de decisões políticas, não de alguma determinação constitucional expressa, porém em razão de ser o próprio Estado, constitutivo e constituído, pela sociedade e pela destinação do bem público.”
BARROSO (2013, p.312) observa o seguinte
Note-se que, no particular, tal atribuição foi deferida, primeiramente, ao legislador ordinário, o qual sempre se reconheceu uma certa amplitude de julgamento quanto à conveniência e oportunidade da atividade econômica pública. O certo é que a fluidez de tais termos projetam-nos no campo dos conceitos jurídicos indeterminados, a serem delineados em cada caso concreto. Não comportam eles, por via de consequência, definição linear genérica que lhes confira a mesma identidade.
É inevitável também olvidar sobre a quem o relevante interesse coletivo versaria, partindo do pressuposto do bem público como talvez, justificado na doutrina, como principal conceito homogeneizador do relevante interesse coletivo ou, versaria àqueles que se utilizam das atividades empresariais do Estado para seus próprios interesses, que possam supostamente ser coletivistas, porém a um determinado coletivo político.
4. UMA ABORDAGEM SOBRE AS EMPRESAS ESTATAIS NA CONTEMPORANEIDADE
Para SHAPIRO e MARINHO (2018, p.1424) o racional modelo legal possível para as empresas estatais é dicotômico, pois a despeito do rol taxativo no dispositivo constitucional, o casuísmo brasileiro há de se tratar um perigo real, pois a Constituição brasileira de 1988 guarda disponibilidade para eventuais desvios de finalidade.
No caso das estatais há inconsistências de modelo, na medida em que ainda é movediça uma definição operativa de como conjugar os interesses lucrativos com as finalidades políticas, potencialmente deficitárias. Além disso, há uma posição ambivalente do Estado que é de difícil enquadramento. A um só tempo, os gestores do Estado detêm dois interesses que são potencialmente conflitantes: (i) o interesse financeiro, de também obter dividendos com sua posição de controlador e (ii) o interesse político, de fazer cumprir seu mandato de políticas setoriais.
O hibridismo da atividade de exploração de atividades econômicas pelo Estado brasileiro contemporâneo aparentemente reformou discricionariamente seu papel conforme BUCCI (1997, p.90) discorre sobre tal mudança paradigmática
A introdução da ideia de política pública no direito administrativo e constitucional decorre da mudança paradigmática sobre o papel do Estado, cuja atuação antes de dava pelo princípio da legalidade estrita (government by law) e hoje se dá pela adoção de ações coordenadas para atingir os fins últimos a que se destina, uma nítida postura proativa (government by policies)
Para HADDAD (2010) tal quimera contemporânea nas empresas estatais surgira ainda na década de 80 principalmente quando deu-se destarte ao agravamento das atividades empresariais estatais e suas finalidades passaram a ser questionadas juridicamente, em que os indivíduos passaram a jurisdicionar o acesso aos serviços, pretensamente prestados por esta empresa estatal.
Renovamos nossas reflexões sobre as empresas estatais a partir dos princípios da Carta Política de 1988, que trouxeram fundamentais diplomas necessários para o País, ainda que exacerbando o papel do Estado ante ao composto social – seja dos indivíduos, seja da sociedade, fundando assim uma nova relação desta tríplice formação: o Estado versus indivíduos versus sociedade. É portanto, o Estado a conformação política, jurídica e social para a relação do bem público, a partir dos indivíduos em sociedade.
Considerando o panorama jurídico atual, o Estado, mediante suas normas, exige da empresa a atuação voltada aos objetivos sociais, de modo a efetivar a função social. Como afirma COMPARATO (2005, p.296), no que tange a função social
A instituição do Estado social impôs, no entanto, duas consequências jurídicas da maior importância para a organização das empresas. De um lado, o exercício da atividade empresarial já não se funda na propriedade dos meios de produção, mas na qualidade dos objetivos visados pelo agente; sendo que a ordem jurídica assina aos particulares e, especialmente, aos empresários, a realização obrigatória de objetivos sociais, definidos na Constituição.
O Estado se apropria de responsabilidades extrínsecas quando da sua atuação como explorador de atividades econômicas – seja o de cumprir a função social, seja o de constituir o relevante interesse coletivo – que, conceitualmente podemos depreender que a atividade empresarial do Estado deve ser orientada de modo a atender ao relevante interesse coletivo que justifica tal exploração, como um dever público e não um privilégio público.
Todo empreendimento empresarial reger-se-á, em regra, pela Eficiência de Pareto[5], que conforme SEM (1993, p.351), em tradução livre “nada mais interessa aos objetivos de mercado a partir dos seus agentes do que a própria eficiência, mais que objetivo é propósito, para com os indivíduos e destes para com a sociedade, e desta, para com o Estado de bem estar social”, isto é, a eficiência é parte intrínseca da atividade econômica, para que dela decorram os benefícios da sua função social, como já citados em epígrafe.
Trazendo para a realidade brasileira pós-Constituição de 1988, tem o Estado que cumprir suas atividades com eficiência, para tanto e em relação às empresas estatais, tal eficiência é princípio intrínseco e que portanto, a prejudicialidade ao interesse coletivo incorrerá em pleno descumprimento objetivo constitucional, portanto inconstitucional. Eventual obliteração do fator eficiência fere diretamente o relevante interesse coletivo. TREBILOCK (2014, p. 166) identifica com lucidez a questão da ineficiência das empresas estatais
Apontam-se duas ordens de fatores para potencial ineficiência dessas empresas estatais. Em primeiro lugar, figuram as causas relacionadas à propriedade estatal: as indicações de gestores são políticas; não há incentivos para o monitoramento de suas atividades pelos cidadãos, como os há no que se refere aos acionistas de empresas privadas; é difícil avaliar seu desempenho, pois, ao lado dos objetivos econômicos, elas têm fins não econômicos. Em segundo lugar, ficam as causas relacionadas à falta de competição, pois as estatais, em geral, atuam em situação de monopólio natural ou em setores oligopolizados.
Há muito se discute a função das empresas estatais em face da propriedade do Estado. Nos últimos anos, as empresas estatais federais, preponderantemente, passaram a figurar em escândalos de corrupção e malversação de dinheiro público bem como aclarar para o debate público sobre as prementes desvinculação das finalidades das empresas estatais que interessam a sociedade. Em 2013, foi sancionada a Lei 12.846, a chamada Lei Anticorrupção, que pune empresas, incluindo as empresas estatais, por atos de corrupção contra a administração pública.
Neste debate podemos enfatizar duas searas, que podemos indicar como seara minimalista e seara maximalista, que observam uma possível regeneração das finalidades das empresas estatais tendo ambas no seu centro observar o relevante interesse coletivo.
No âmbito minimalista, o Estado brasileiro opta por atualizar sua legislação a partir da Lei 13303/2016 que busca traçar inovações no mundo jurídico e objetiva trazer impactos para com a sociedade destinatária dos benefícios das empresas estatais, tem-se, portanto, inovações nos âmbitos legal e jurídico, quando o legislador procurou por meios próprios do poder legiferante mitigar a desvirtuação das finalidades das empresas estatais, em uma seara minimalista, dada a amplitude de ação das empresas estatais em suas diversas espécies em atividades no País bem como o Estado ainda toma para si a responsabilidade de implementar novos ditames de governança nas mesmas, ainda em que pese tais razões positivadas deveriam ser de sempre pressupostos para a justificação para suas criações. Para ZYMLER (2017, p.15)
[...] fixação de padrões de transparência (da Lei 13303/2016), como a necessidade de se divulgar informações relativas a atividades desenvolvidas, estrutura de controle, fatores de risco, dados econômico-financeiros, comentários dos administradores sobre o desempenho, políticas e práticas de governança corporativa e descrição da composição e da remuneração da administração; com fundamental clareza a que se objetiva o múnus do relevante interesse coletivo pelo qual se constitui a empresa controlada pelo Estado brasileiro.
O interesse coletivo nunca haverá de ser alcançado senão houver respeito aos princípios constitucionais e mais que isso, ter plena e inflexível sua exigência pelos que gerem empresas estatais, que versam TOURINHO e VIANNA (1993, p. 30) sobre a responsabilidade do Estado brasileiro para com suas estatais
Por conta deste posicionamento, o Estado Brasileiro descuidou-se de responsabilidades essenciais como, por exemplo, a saúde, a educação e a segurança públicas. Está criada a dívida social especialmente assumida perante as camadas menos favorecidas da população brasileira, quais atribuídas o relevante interesse coletivo que amparam a autorização legal para constituição das empresas estatais.
A seara maximalista amplia a asserção para o domínio público, nacional e internacional, sobre pressupostos para equilíbrio das contas públicas, enxugamento da máquina pública e novos marcos desenvolvimentistas trazidos pelo Consenso de Washington em 1990, do qual o Brasil foi signatário integralmente e que fora introduzido no diploma legal brasileira pela Lei 8.031/90, criando o Programa Nacional de Desestatização e posteriormente substituída pela Lei 9.491/97, portanto em debate de menor escala na esfera política, em maior escala na sociedade, estão os alguns fundamentos retrazidos novamente do passado, quanto das políticas de desestatização introduzidas pela legislação e do regime jurídico pelas quais o Estado poderá reduzir seu próprio tamanho, mas especificamente neste caso, desfazer-se de ativos empresariais que já não auferem objetividade na justificação legal do relevante interesse coletivo, inclusive diante da crise do próprio Estado e esclarece MOREIRA NETO (2005) que “o Estado deve deixar a sua face empresarial falida para adquirir o fôlego indispensável à sua nova feição, intervindo na economia apenas como regulador de mercado, alocador de recursos, parceiro e fomentador econômico.”
Destarte do exposto, é possível encontrar uma região fronteiriça entre ciências que ultrapassam a simples racionalidade para chegar-se a um consenso, que dificultosos e complexos, quais sejam o Direito, a Economia e a Política. Para LUHMANN (1993) que esclarece
O subsistema jurídico direciona mensagens em código de linguagem jurídica para o sistema social. O sistema social direciona mensagens em código social para o sistema jurídico. O subsistema econômico comunica-se com o subsistema jurídico, que se comunica com o subsistema político.
E, portanto, tem-se claro que a seara maximalista inclui amplo espectro de debate e reflexão nos campos possíveis para um caminho ainda distópico, quando se avalia que para a positivação dos pressupostos legais para a desestatização de determinados setores do Estado (mas principalmente para com as empresas estatais) antes passará pelo poder político do Executivo e do Legislativo para que daí surjam no mundo jurídico, para que diante gerem efeitos no mundo econômico brasileiro.