Artigo Destaque dos editores

Reconhecimento: luta ou política?

Notas sobre a busca por reconhecimento de minorias no Estado Democrático de Direito

Exibindo página 3 de 3
18/03/2006 às 00:00
Leia nesta página:

II.4 – Identidade Constitucional

Michel Rosenfeld (1995) estabelece uma interessante relação entre a dialética hegeliana do senhor e do escravo e o processo de formação da identidade constitucional, a qual é concebida por ele como uma ausência, como um projeto inacabado que precisa ser a todo o momento reconstruído, mas nunca deve se fechar. Isso porque a identidade constitucional enfrenta uma série de obstáculos contra sua definição absoluta: ela é propensa a se alterar com o tempo; a identidade constitucional se encontra mergulhada em outras identidades relevantes, como as nacionais, étnicas e culturais; é preciso estabelecer um entrelaçamento entre a identidade do passado, a do presente e a do futuro e mesmo sopesar como cada uma dessas definições vincula as gerações vindouras; sempre há a possibilidade da identidade constitucional ser reinterpretada e reconstruída; há um sem número de interpretações possíveis do que seja a Constituição; e, até que ponto emendas constitucionais redefinem a identidade constitucional.

Por isso, aqui, o processo é aberto (não há uma síntese). Para Rosenfeld (1995, p. 1.056), o sujeito constitucional é sempre carente de reconstrução, mas esta reconstrução nunca pode ser definitiva; ele se desenvolve numa ausência a fim de possibilitar que outras identidades possam sempre se determinar na sociedade pluralista atual. Para Rosenfeld, citando Preuss, "a ordem constitucional requer a imposição de limites à ampla e difusa identidade comunitária pré-política da nação" (1995, p. 1.049). A identidade constitucional compete com outras identidades relevantes, opondo-se a elas, mas não num nível de abstração que a torne inútil. Ela deve se opor às outras identidades, mas deve incorporá-las parcialmente para que seu sentido torne-se determinado ou determinável. A questão-chave é como ela pode se afastar de outras identidades ao mesmo tempo que incorpora elementos da mesma para que possa ser viável no ambiente sócio-político.

A relação do sujeito constitucional com os outros selves (as tradições vigentes até o aporte do rompimento por uma nova ordem constitucional) é o cerne da tese que Rosenfeld defende. O sujeito constitucional, pelo poder constituinte, aparentemente molda uma nova ordem política à sua própria imagem, numa posição de domínio que descarta as tradições até então vigentes. Mas não há como fazer desaparecer essas tradições; aliás, no mais das vezes, elas são incorporadas sob outras formas. "A imposição irrestrita da vontade revolucionária não conduz ao constitucionalismo, mas ao reinado do Terror" (ROSENFELD, 1995, p. 1.060).

Em Hegel, o desejo do sujeito, não satisfeito com objetos, volta-se para o outro. O sujeito é uma carência em dois sentidos: primeiro, ele precisa dos objetos, sendo assim, incompleto; segundo, o sujeito ainda não reconhecido pelo outro é uma carência no sentido de nada ser senão a negação dos objetos. Então, quando se separa do objeto é que o sujeito surge como consciência da carência e da incompletude. Assim, ele se volta para o outro em busca de reconhecimento. "O desejo do sujeito, portanto, impulsiona o eu (self) a buscar o outro" (ROSENFELD, 1995, p. 1.057). A simples alteração de foco é, contudo, insuficiente; é preciso que tanto o eu como o outro se reconheçam mutuamente.

Na teoria psicanalítica, com Lacan, a sujeição ao outro é reelaborada. Segundo ele, "a compreensão inicial da criança da identidade como sujeito envolve um duplo processo de alienação e de sujeição ao outro". A criança deve abandonar o mundo dos objetos e entrar na ordem simbólica da linguagem. Esse é um código que aliena, já que imposto de fora; outra alienação será a da imposição do seu nome por seus pais, também necessária à formação da identidade (ROSENFELD, 1995, p. 1.059).

Utilizando-se do instrumental da negação, da metáfora e da metonímia, bem como da interação entres estes instrumentais através da sobredeterminação, Rosenfeld buscará fundamentar sua tese.

"A negação, a metáfora e a metonímia combinam-se para selecionar, descartar e organizar os elementos pertinentes com vistas a produzir um discurso constitucional no e pelo qual o sujeito constitucional possa fundar a sua identidade. A negação é crucial na medida em que o sujeito constitucional só pode emergir como (um "eu") distinto através da exclusão e da renúncia. A metáfora ou condensação, por outro lado, que atua mediante o procedimento de se destacar as semelhanças em detrimento das diferenças, exerce um papel unificador chave, ao produzir identidades parciais em torno das quais a identidade constitucional possa transitar. A metonímia ou deslocamento, finalmente, com a sua ênfase na contiguidade e no contexto, é essencial para evitar que o sujeito constitucional se fixe em identidades que permaneçam tão condensadas e abstratas ao ponto de aplainar as diferenças que devem ser levadas em conta se a identidade constitucional deve verdadeiramente envolver tanto o "eu" (self) quanto o outro."

Num estágio inicial, a identidade é puramente negativa, pois apenas determina o que o sujeito não é. Posteriormente, o sujeito nega que ele seja simplesmente a ausência. Num terceiro estágio (negação da negação), ele assume sua própria identidade positiva. No discurso de formação da identidade constitucional, num primeiro estágio o sujeito constitucional nega que seja um mero produto das identidades culturais, históricas, étnicas etc. Num segundo estágio, ele desenvolve uma identidade positiva, recorrendo às identidades descartadas; aqui, há um processo de subsunção dessas tradições à perspectiva do segundo estágio. No terceiro estágio, o sujeito nega que a assunção de uma identidade envolva a perda da subjetividade; aqui ele pode moldá-la por sua própria vontade e não segundo elementos externos. Já a metáfora destaca as similitudes em detrimento das diferenças. Ela funciona com referência a um código, atuando num eixo paradigmático. Pode se dar tanto através da substituição ou da combinação. A metonímia, de seu turno, destaca as diferenças em prejuízo das semelhanças. Ela atua com referência a um contexto; seu eixo é o sintagmático (sucessividades/horizontal) e se destaca por promover relações de contigüidade. Em resumo, a negação, pela renúncia, repressão e determinação, assume o papel principal na determinação de identidade constitucional, com a metáfora e a metonímia fornecendo conteúdo através da identidade e da diferença. A negação cria um vazio a ser preenchido por significações equivalentes pela metáfora e significações contíguas pela metonímia. Devem ser estabelecidas coordenadas ao longo dos eixos paradigmático e sintagmático.

Todo esse instrumental só se adequa ao paradigma do Estado democrático de direito na medida em que Rosenfeld admite em sua tese o papel emancipatório do direito. Essas ferramentas são utilizadas na medida em que o outro, em que os destinatários, participem da dicção feita pelas instituições do que seja o direito.

Para compreender como a negação, a metáfora e a metonímia se combinam para remoldar os materiais hauridos da herança sócio-cultural (sociocultural heritage) da forma política (polity) em uma identidade constitucional, é necessário que primeiramente consideremos, ainda que rapidamente, o papel do Direito Constitucional em uma ordem jurídica democrática. O Direito, mesmo em uma democracia, desvela-se sob a neblina como uma intrusão alienante do outro sobre o self. O Direito é, e é imensamente experienciado como, coercitivo, a submissão aos seus ditames pode ser comparada à adoração do limites herdados pelo superego. Não obstante a promulgação democrática de uma lei e independentemente do apoio que se dê a tal lei, a aplicação dessa lei impõe constrangimentos externos a todos os que se encontrem sob o seu âmbito de incidência.(...)

Em última instância, tanto o self que o Direito Constitucional promove a emancipação e a auto-afirmação, quanto o outro que busca a auto-afirmação através da lei aprovada pela maioria devem ser incluídos no sujeito constitucional. Assim, além de ser coercitiva como a lei, a Constituição é, a um só tempo, coercitiva e emancipatória: ela obriga, se impõe coercitivamente, a todos os que sob ela venham a se encontrar enquanto membros do corpo legislativo soberano; e, na medida em que eles se tornem obrigados a obedecer os ditames das leis corretamente promulgadas, ela contribui para a emancipação dos membros desse mesmo corpo. Desse modo é que negação, metáfora e metonímia devem se combinar para moldar a substância segregado pela herança sócio-cultural da forma política (polity) relevante de sorte a construir uma identidade constitucional adequada ao papel a um só tempo coercitivo e emancipatório do Direito Constitucional. (ROSENFELD, 1995, p. 1.094/1.095)

O direito é coercitivo e emancipatório ao mesmo tempo. Ele é alienante; é o outro exercendo uma intrusão sobre o self. Mas ao mesmo tempo em que ele se impõe coercitivamente, ele deve deixar espaço para que os destinatários obedeçam às suas normas por respeito. Deve haver um espaço para a emancipação.


III – Conclusões

O paradigma do Estado democrático de direito traz à tona novas interpretações e anseios sobre o papel do direito nos processos de legitimação das ações políticas. Não somente as relações dos indivíduos entre si e com relação ao Estado tornam-se um problema: é preciso que o aparato estatal seja também legítimo no que concerne às relações com os agrupamentos de sujeitos de direito vinculados por quaisquer que sejam as formas de compartilhamento de vidas em comum.

Mas para que o Estado não incorra em ações que careçam de legitimidade como já ocorreu nos paradigmas liberal e de bem-estar, é preciso que haja um equilíbrio entre a total abstenção geradora de diferenças e a intervenção por demais comprometedora da emancipação desses grupos.

A formação da identidade, tanto do indivíduo quanto do grupo, passa pela aquisição e incorporação de significativos e pelo seu menosprezo. Assim, cabe a cada um deles, segundo seus horizontes, verificar quais significativos manter e perpetuar não só a partir de si, mas entre as tradições compartilhadas por aqueles que com eles convivem. Ou seja, não há nesses casos uma atitude solipsista, mas muito pelo contrário, é justamente nas relações que eles mantêm uns com os outros que essas experiências vão se dar.

Se o outro se torna tão importante na modernidade para a formação do self, não menos importante é que tais experiências ocorram a partir dos próprios grupos e indivíduos que irão dividir e trocar esses significativos. Ou seja, há uma perspectiva interna que deve ser vislumbrada por todos eles; não pode ocorrer a imposição externa dos valores que eles deveriam escolher para si próprios.

Assim, é que a neutralidade do direito com relação a essas concepções do bem deve se apresentar. O Estado não pode se utilizar de seu aparato para subsidiar esta ou aquela concepção de bem. É por isso que a identidade constitucional deve ser uma ausência, um vazio que se dimensiona num processo contínuo de permitir o surgimento desta ou daquela concepção.

Não é preciso que inventemos novas fórmulas do direito para lidarmos com tais questões. Basta que possamos conceber o Estado como o encontro ou a realização do mínimo que precisamos para conviver numa sociedade pluralista: direitos humanos e soberania popular. Lidamos o tempo todo com o risco de que esta ou aquela concepção ética seja a prevalecente: mas isto não desabona a tese de que não se pode eleger essa concepção como a melhor para todos. Nesse ponto, a tradição kantiana lida muito bem com as distinções necessárias entre o bom e justo na pós-modernidade; de outro lado, a tradição hegeliana alerta para o fato de que não se pode deixar nunca perder-se a dimensão do outro.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Num Estado democrático de direito em que a emancipação torna-se um dos pontos basilares para a constituição de uma participação política democrática e para a efetivação do princípio do discurso, só se pode responder a questão que dá título a este trabalho de uma forma: trata-se de luta por reconhecimento, não política. O reconhecimento deve se dar nas condições que os destinatários do direito definem. Deve haver uma eqüiprimordialidade entre autonomia pública e privada, entre soberania popular e direitos humanos. Direitos não são impostos de fora; são constructos daqueles que os usufruem.


Referências Bibliográficas

CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. P. 272. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

HABERMAS, Jürgen. A Constelação Pós-Nacional: ensaios políticos. Trad. Márcio Selligman-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.

__________________. A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito. In: A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002.

__________________. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A dialética do senhor e do escravo: a parábola do processo de humanização enquanto processo de libertação. In: Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993.

ROSENFELD, Michel. The Identity of the Constitutional Subject. Cardozo Law Review. Janeiro de 1995. Tradução para fins acadêmicos de Menelick de Carvalho Neto.

TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. In: Argumentos Filosóficos. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 2000.

VAZ, Henrique C. de Lima. Nota histórica sobre o problema filosófico do "outro". Ontologia e História. São Paulo: Loyola, 2001.


NOTAS

01 A noção de paradigma empregada aqui é a de Thomas Kühn, da qual se apropria Habermas: "Os paradigmas do direito permitem diagnosticar a situação e servem de guias para a ação. Eles iluminam o horizonte de determinada sociedade, tendo em vista a realização do sistema de direitos. Nesta medida, sua função primordial consiste em abrir portas para o mundo. Paradigmas abrem perspectivas de interpretação nas quais é possível referir os princípios do Estado de direito ao contexto da sociedade como um todo" (HABERMAS, 1997, p. 181).

02 Referência à "Fenomenologia do espírito", do próprio Hegel.

03 Em verdade, a proposta habermasiana, denominada procedimentalista, é uma alternativa às propostas liberal e comunitarista. "Através de um diálogo com liberais e comunitários, Habermas constrói o seu modelo procedimental de interpretação constitucional, resgatando, mas também recusando, compromissos fixados tanto por Dworkin, quanto por Ackerman. Com efeito, o modelo hermenêutico proposto por Habermas pretende compatibilizar o processo político deliberativo, tão caro para os comunitários, com uma interpretação constitucional que considera, como desejam os liberais, o sentido deontológico das normas jurídicas" (CITTADINO, 2000, p. 203). Podemos enumerar as seguintes características da proposta habermasiana: visão procedimental da democracia constitucional; patriotismo constitucional, ou seja, compromisso com as instituições do Estado de direito e da democracia radical (desvinculados de concepções éticas); princípios universalistas do Estado democrático de direito; identidade política pós-convencional, ou seja, uma nação de cidadãos; e, ênfase nos procedimentos que asseguram uma formação democrática da opinião e da vontade.

04 No Canadá, o controle de constitucionalidade é marcado pela presença peculiar da chamada notwithstanding clause, instituto que permite que leis aprovadas tanto pelo Parlamento quanto por Assembléias provinciais fiquem imunes durante um certo tempo à declaração de inconstitucionalidade pela Suprema Corte. Foi o caso de algumas leis da província de Quebec que obrigavam pais francófonos a matricular seus filhos em escolas de língua francesa; o uso da língua francesa em empresas com mais de 50 empregados; e, as impeditivas de uso de idiomas diferentes do francês em documentos comerciais. Taylor defende a restrição de direitos fundamentais em prol da manutenção de uma cultura (CITTADINO, 2000, p. 196).

05 Klaus Günther e Jürgen Habermas apropriam-se da concepção principiológica da teoria de Kohlberg acerca dos estágios de desenvolvimento moral para inseri-la no direito. Segundo Kohlberg, o desenvolvimento moral da criança compreende três estágios: pré-convencional, convencional e pós-convencional. "No nível pré-convencional o indivíduo não chega a compreender que as regras e valores se baseiam em tal acordo, e as reificam. No nível pós-convencional, os indivíduos percebem que estes acordos, por seu turno, baseiam-se em princípios que, inclusive, podem fundamentar a alteração destes acordos. O nível pós-convencional, que aqui nos interessa de modo mais direto, é dividido em dois estágios: o estágio 5 (nível do contrato social ou da utilidade e dos direitos individuais) e o estágio 6 (nível dos princípios éticos universais). O que difere ambos estágios é que o estágio 5 tende a ver tais princípios como intrínsecos à sociedade e a conceber um escalonamento rígido e prévio entre estes princípios. Já o estágio 6 reconhece que estes princípios podem ser postulados (ou reivindicados) universalmente, mas que não existe um escalonamento rígido e prévio entre os mesmos (...)" (GALUPPO, 2002, p. 192/193).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Emílio Peluso Neder Meyer

Professor Adjunto de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG (Graduação e Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Membro do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEYER, Emílio Peluso Neder. Reconhecimento: luta ou política?: Notas sobre a busca por reconhecimento de minorias no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 990, 18 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8124. Acesso em: 5 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos