A fim de melhor discutir o tema em questão, indispensável se faz antes estabelecer algumas definições indispensáveis ao entendimento do assunto. Assim devemos inicialmente definir o que a doutrina entende por Coisa Julgada e Causa Petendi.
Couture define Coisa Julgada como a autoridade e eficácia de uma sentença judicial quando não existem contra ela meios de impugnações que permitam modificá-la. Assim sendo, dois são os elementos componentes da Coisa Julgada que devem ser estudados a fim de se chegar à compreensão desta definição: autoridade e eficácia.
Autoridade da coisa julgada é qualidade, atributo próprio da sentença que emana de um órgão jurisdicional quando adquiriu caráter definitivo.
No que concerne à Coisa Julgada como medida de eficácia, é ela estudada em seus três atributos, que compreendem: a inimpugnabilidade, a imutabilidade e a coercibilidade.
A coisa julgada é inimpugnável, quando a lei impede todo ataque ulterior tendente a obter a revisão da mesma matéria, o que se consegue via argüição da exceção de Coisa Julgada.
A imodificabilidade de uma sentença consiste em que, em nenhum caso, de ofício ou por petição da parte, outra autoridade poderá alterar os termos de uma sentença passada em coisa julgada.
Quanto às espécies de imutabilidade da coisa julgada, estas se referem a situações onde este atributo de imutabilidade é ou não absoluto. Vejamos. Quando uma sentença não pode mais ser objeto de recurso algum, mas admite modificação posterior, em nova demanda, de seu conteúdo, está-se diante do fenômeno da coisa julgada formal. Quando imutável via recurso, dentro do mesmo processo, mas também imutável por qualquer outro procedimento posterior, se diz que existe a coisa julgada material.
O atributo da coercibilidade consiste na eventualidade de execução forçada. Porém, essa conseqüência não significa que toda sentença de condenação se execute, mas sim que toda sentença de condenação é suscetível de execução se o credor a pedir.
O instituto da Coisa Julgada existe em decorrência de uma exigência política e não propriamente jurídica de se obter uma decisão que ponha fim a um conflito de interesses, objetivando assim a estabilidade das relações jurídicas no seio da sociedade.
Buscamos em seguida obter uma definição do que seja Causa Petendi, conceito este não tão pacífico na doutrina mundial como o de Coisa Julgada.
Duas são as teorias que buscam definir o que seja Causa Petendi: a teoria da substanciação e a teoria da individualização.
A teoria da substanciação define Causa Petendi como o fato ou complexo de fatos aptos a suportarem a pretensão do autor, ou que assim sejam por ele considerados. Desta forma a mudança destes fatos, ainda que permaneçam inalterados o petitum e o direito alegado pelo autor, sempre importará em mudança da ação. A sentença que é pronunciada tendo por fundamento dados fatos torna improponível outra ação entre as mesmas partes e fundamentada nestes mesmos fatos. Isto ocorre independentemente de o autor visar com esta segunda ação obter outra conseqüência jurídica ou nova relação jurídica ou estado de direito. Desta forma, o nomem juris atribuído pelo autor à demanda não tem importância, pois vigem, ao extremo, os princípios jura novit curia e da mihi factum , dabo tibi jus.
Defini Causa Petendi, a teoria da individualização, como sendo a relação ou estado jurídico afirmado pelo autor em apoio à sua pretensão. Sendo assim, desde que permaneça inalterada a relação jurídica afirmada pelo autor, a alteração dos fatos apontados como constitutivos do direito não importa na mudança da Causa Petendi. Desta forma, a sentença proferida que tenha por base uma dada relação jurídica, se estende a todos os fatos que servem ou serviriam de fundamento à pretensão do autor. Por esta teoria é improponível qualquer outra demanda sobre a mesma relação jurídica, mesmo que fundada em outros fatos, na ação anterior não alegados.
Nosso Direito Processual exige que da petição inicial constem a indicação dos fatos constitutivos do direito e os fundamentos jurídicos do pedido, tendo adotado uma posição equilibrada entre as correntes acima descritas.
Tendo discorrido brevemente sobre os dois institutos que compõe o tema abordado, é hora de enfrentar o desafio de correlacioná-los.
A sentença se compõe de três partes que são distintas entre si: relatório, fundamentação e dispositivo. Destas três, a parte que efetivamente transita em julgado é o dispositivo, posto ser nele que o juiz decide o pedido do autor, proferindo um comando que deve ser atendido por ambas as partes. São alcançados, desta forma, pela coisa julgada material, o pedido formulado pelo autor na inicial e o dispositivo da sentença proferida.
Isto ocorre pois, decidindo a demanda, a sentença acolhe ou rejeita o pedido do autor, que é o objeto da ação, delimitando ele a resposta jurisdicional. Assim, o pedido delimita a resposta contida na sentença, e sobre ele recai a coisa julgada.
Da fundamentação da sentença constam os motivos de fato e de direito que fundamentam a pretensão do autor, tendo o juiz de analisá-los e decidir-lhes a veracidade a fim de concluir no dispositivo acerca do pedido do autor
Estes fundamentos de fato e de direito contidos na petição inicial compõem a Causa Petendi, e a ela corresponde na sentença a fundamentação. Tanto a fundamentação da sentença, que embasa o dispositivo dela, quanto a Causa Petendi constante da inicial, não transitam em julgado, de forma que não são atingidos pela coisa julgada material.
Porém, a Causa Petendi, apesar de não fazer coisa julgada, é um dos elementos identificadores da ação, de forma que, em sendo uma segunda ação proposta, e tendo ela elementos constitutivos iguais a uma anteriormente decidida, não poderá ela tornar a ser novamente decidida por força da autoridade da coisa julgada.
A Causa Petendi não se encontra dentro dos limites objetivos da coisa julgada, mas serve de elemento identificador da repetição de demandas. Isto porque uma demanda será idêntica a outra quando, além das mesmas partes e mesmo pedido, contiver por fundamento a mesma causa de pedir.
Os fundamentos fáticos, que decorrem da Causa Petendi contida na inicial, são utilizados amplamente para aclarar passagens do dispositivo da sentença, posto comporem um antecedente lógico da decisão contida nela. Isto porém não quer dizer que também eles transitem em julgado.
Pode-se exemplificar o acima alegado pelo seguinte caso: A propõe contra B uma ação que objetiva cobrar-lhe determinado valor em dinheiro, em decorrência de uma obrigação cambial. Dentre os muitos argumentos constantes tanto da inicial quanto da defesa, decide o juiz pela improcedência do pedido do autor, por entender serem todas as obrigações cambiarias subscritas pelo demandado oriundas de causas ilícitas. A premissa de que todas as obrigações cambiarias do demandado são de origem ilícita não faz coisa julgada frente a outra demanda, que o mesmo credor possa interpor contra o mesmo devedor para cobrança de outra obrigação cambiaria, distinta da que foi objeto do processo anterior.
Outro exemplo seria o pedido de divórcio cuja Causa Petendi seja a ocorrência de adultério. Sendo julgado improcedente o pedido do autor pela não ocorrência do alegado adultério, nada impede que seja proposta nova ação com as mesmas partes e o mesmo pedido (divórcio), mas cuja Causa Petendi seja diversa, p. ex., por abandono do lar conjugal.
Sob o mesmo objeto e sob o mesmo nomem juris podem existir mais de um direito a ser exercitado, tornando-se, por vezes, necessário levantar quais os elementos que distinguem um direito do outro.
Esta questão se faz relevante na medida em que a alteração, no curso da demanda, da causa petendi, ou seja, da fundamentação fática da ação, pode levar a alteração do próprio direito subjetivo afirmado pela parte no início da demanda. Sendo a causa petendi distinta para direitos distintos que se encontrem sob o mesmo nomem juirs, então a sua mudança no curso do processo pode implicar na alteração do próprio objeto da demanda, deixando a ação proposta inicialmente de ser aquela afinal decidida pelo juiz na sentença.
É sabido que se a alteração dos fundamentos da ação implicar na alteração da própria identidade dela, faz-se necessária a anuência da parte contrária para que ocorra. E mais, tal alteração apenas poderá ocorrer antes do saneamento do processo, mas nunca após ele. Isto ocorre porque após o saneamento o juiz fica adstrito ao dever de decidir a lide nos termos em que foi proposta.
Concluindo, a causa petendi não integra os limites objetivos da coisa julgada, porém, sendo um elemento identificador da ação, é importante para se determinar até que ponto o dispositivo da sentença, este sim abrangido pelo fenômeno da coisa julgada, está de acordo com o direito substantivo visado pelo autor no início da demanda. Sua alteração após o saneamento do processo implicará em nulidade da sentença que decidir o feito sob fundamento diverso do inicialmente alegado, posto estar o juiz, após o saneamento, adstrito aos termos em que foi a ação inicialmente proposta.
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. B. Aires, Depalma, 1973
MESQUITA, José I. B. O Conteúdo da "Causa Petendi". RT 564/41.
MESQUITA, José I. B. A "Causa Petendi" nas ações reivindicatórias – in Revista de Direito Processual Civil, São Paulo, Vol VI, p. 183.
TUCCI, José R. C. A "Causa Petendi" no Processo Civil. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1993, ps 9 a 20; 178 a 180; 182 a 198.