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Teoremas de transição do Estado Social.

Ciência política e controle social no estado regulador

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26/03/2006 às 00:00
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3. Ruptura e "Evitação": Estabilidade e reificação no Estado Social.

Na análise crítica que se faz do capitalismo, na tradição marxista, é corrente a percepção de um modelo geral de crises. Segundo tal modelo, à medida em que a tecnologia avança, a produtividade alcança patamares cada vez maiores. A produção, por sua vez, necessita cada vez menos de trabalhadores assalariados o que, por sua vez, deprime a remuneração do trabalho. Isso tudo, aliado a uma contínua pauperização da mão de obra por meio do acréscimo de lucratividade em forma de mais valia, acentua a acumulação do capital, forçando uma gradativa diminuição da massa salarial. O consumo vê-se restringido e, por outro lado, ocorre forçosamente, uma queda dos lucros e um excesso da produção [36], o que só alimenta o estado crescente de crise do sistema econômico [37].

Esse fenômeno foi realmente verificável na história das sociedades contemporâneas. Associada a ele esteve uma progressiva degradação das condições materiais de vida de amplos setores da população. A liberdade (econômica) acentuada no sistema de trocas, baseada no paradigma da propriedade privada, que era um valor da metafísica iluminista, assim como era um imperativo técnico do modo de produção capitalista, fazia com que grande parte das populações estivesse desamparada como possuidora somente de sua força de trabalho.

O agravamento dessas condições ocasionava, inexoravelmente, um desestímulo crescente para a cooperação com a associação política. A relação custo da cooperação/custo da ausência do produto da cooperação, nos termos de um modelo da Escolha Racional, passava a tender a um evidente desequilíbrio em prol da abstenção de participação na produção de bens públicos [38].

Ora, se o único bem público que se tinha a oferecer, naquelas condições, para os trabalhadores-"cidadãos", era a segurança do Estado de Direito. E se, em troca da sua cooperação, graças à acumulação das riquezas, via-se apenas a precarização das condições de vida; como se pensar em não se tornarem desertores dos acordos tácitos que contribuíam para estabilidade do Estado e das instituições [39]? Como cooperar com um agente que não lhe oferece bem-estar suficiente para justificar a sua não ruptura após ter-se tomado consciência da própria condição e da possibilidade de não cooperação?

Marx não estava enganado, portanto, ao analisar a realidade sócio-econômica do século XIX e identificar uma reunião de condições no sentido de uma ruptura com o programa do Iluminismo e uma radical derrocada das idéias liberais de Contrato Social e Estado de Direito [40]. A oposição de classes, assim como as condições de produção, deixavam claro para o filósofo que aquela situação não prosperaria, sobretudo onde as economias nacionais tivessem visto, com mais vigor, desenvolver-se o sistema de produção centrado na propriedade privada e na troca de equivalentes.

O problema desta análise, contudo, em relação à sua verificação nas sociedades centrais do capitalismo, talvez estivesse justamente numa subestimação do poder da racionalização que se havia imposto no rastro da Modernidade e do capitalismo. O advento do crescente avanço tecnológico permitia às economias ricas, já em meados do século XX, um novo marco na relação com o trabalho assalariado e, por outro lado, fazia possível a implementação, mesmo que forçada, de rigoroso programa de estímulos seletivos à cooperação (o que viriam a ser considerados os direitos sociais).

Criava-se, assim, um sistema coerente e eficiente de evitação [41] de crises capaz, em verdade, de, até mesmo, garantir ganhos concretos nas condições de vida da população.

Marx encarava o trabalho como algo ligado, essencialmente, à submissão física [42]. Apesar de já ter visto e poder prever, razoavelmente, a tendência à mecanização, para ele, as máquinas não eram produtoras de valor. Eram simplesmente, em si, trabalho morto, acumulado, e passavam para os produtos o valor que já em si continham [43]. A opressão do trabalhador estava na sua transformação em apêndice da produção. A alienação do seu trabalho e o seu esforço físico degradante eram, como contradição, a origem explosiva da transformação da sociedade. No trabalho, segundo Marx, o proletário "se nega, não desenvolve as energias físicas e mentais, mas se esgota fisicamente e arruína o espírito" [44]. A produção de valor-de-troca, que provia sua sobrevivência miserável, era aquela mesma que alargava, por meio da acumulação de capital e da sua submissão cada vez mais completa a um objeto que não lhe pertencia (o próprio produto do seu trabalho), sua contínua pauperização e escravização. Esse quadro de opressão ao trabalhador só é, portanto, capaz de fazer recrudescer um movimento de indignação e um impulso à transformação revolucionária.

O acentuado grau de mecanização da indústria, porém, desde o pós-guerra, pareceu não mais exigir a existência daquele trabalho que destrói fisicamente os homens. Podemos dizer, em verdade, que é pouco produtivo, aliás, no atual nível de industrialização, produzir industrialmente utilizando somente o trabalhador braçal. A mecanização transformou o esgotamento físico numa exigência, cada vez mais apurada, de preparação técnica e "inteligência", no dizer de Marcuse. Dá-se agora um esgotamento mental do operário. As empresas se assemelharam, cada vez mais, à grande organização burocrática estatal. Tendência que, na verdade, é o resultado das novas formas de organização produzidas pela mecanização da própria racionalidade produtiva [45].

A burocratização de que acima falamos, aliás, radicaliza-se na economia privada. Há cada vez mais níveis hierárquicos e níveis de administração nas empresas. Categorias de trabalho em que não há mais nenhum desgaste físico são crescentemente comuns. As fábricas e empresas em geral se enchem de autômatos e semi-autômatos burocratas. E a produtividade é determinada, cada vez mais, pelo nível da mecanização administrada [46] e capacitação técnica. É a organização, a logística, a informática, a racionalidade pós-taylorista que faz obter ganhos maiores ou menores.

Aquela condição sub-humana de trabalho, então, já não é mais observada. Declina, em verdade, a mão de obra estritamente operária. Há já condições mais saudáveis de trabalho. A burocratização e a racionalização da nova grande empresa capitalista faz desaparecer aquela que era, ao mesmo tempo, a desgraça e a libertação do proletariado. Tudo isto une-se, inextricavelmente, àqueles estímulos específicos à cooperação, como podemos chamar os direitos sociais, e a toda uma estrutura voltada para o bem-estar, gerida pela administração política.

O sistema de evitação de crises descrito por Marcuse é capaz de fornecer-nos ricos elementos de análise para a compreensão do capitalismo industrial avançado e parcialidades do capitalismo periférico. Segundo um teorema descritivo do Estado Social nos termos da racionalidade técnica deste teórico da Escola de Frankfurt, o resultado é que "a decepção e o ódio são privados de seu inimigo objetivo" [47], perde-se qualquer motivação concreta, que exsurja da imanência de uma sociedade contraditória, para realizar uma transformação consciente das estruturas de poder como propunha, v.g., a tradição marxista. A Revolução Social, como Revolução Política, torna-se uma necessidade que pode ser evitada. A exploração não é mais visível. Ela é já da natureza de uma organização dispersa e racionalizada, não sendo tão cruel como outrora. Como afirma Marcuse, "uma falta de liberdade confortável, suave, razoável e democrática prevalece na civilização industrial desenvolvida, um testemunho de progresso técnico" [48].

É, exatamente, essa racionalidade técnica descrita pelo teórico alemão, a mesma que impera no Estado Burocrático contemporâneo. A Economia Política, cada vez mais aparelhada, associa-se a essa nova forma de capitalismo, em que os proprietários não são mais identificados com a dominação [49]. O interesse do Estado até coincide com o dos grandes capitalistas: o desenvolvimento e o crescimento econômicos são queridos por ambos. Essa situação leva, inevitavelmente, a uma cooperação em larga escala entre os agentes econômicos coletivos [50]. Para o Estado, esse objetivo é fundamental na melhoria das condições de vida da população. Para o capitalista, o bom desempenho econômico, que deve também ser induzido pela Instituição Política, é associado ao incremento de ganhos e à estabilidade da empresa.

Por sua vez, as classes trabalhadoras, ameaçadas cada vez mais pela mecanização e pelo conseqüente desemprego, ocasionados seja pelo ganho tecnológico seja pela possibilidade de crise econômica, vêem sua relação com o capital se alterar. Até mesmo porque, stricto sensu, os funcionários burocratas, com algum poder de decisão na estrutura hierárquica, são, ainda, trabalho, organizando-se até mesmo em sindicatos como os operários braçais, com os quais podem continuar a conviver no chão da fábrica.

E os interesses, tanto do operário braçal (que antes era massacrado fisicamente, mas hoje tem, já, certa qualidade no trabalho) como do burocrata, passam a ser, em muitos pontos, convergentes com o dos próprios capitalistas. O sindicato de trabalhadores torna-se, em certo grau, aliado da Empresa na missão de fazer influenciar o aparato estatal para que estimule a atividade industrial, para que ofereça subsídios, para que defenda a economia nacional, para que melhore a qualidade e expanda a oferta de cursos técnico-profissionalizantes, etc. O trabalho vê-se de todos os modos integrado à estrutura do capitalismo [51]. O interesse é, realmente, no progresso, no desenvolvimento. E esse interesse não é simplesmente produto de uma falsa consciência ideológica, pois que há factualmente um incremento palpável na qualidade de vida, nos padrões de consumo e no bem-estar da população como resultado da boa condução administrativa, ao menos nos que se encontram inseridos dentro do sistema de trabalho, o que podemos verificar, mutatis mutandis, tanto em economias centrais como em economias periféricas.

Os fundamentos essenciais da transição socialista, com base no teorema de crises cíclicas do capitalismo, parecem estar, assim, bastante descaracterizados. A opressão terrorista do trabalhador individual vê-se, cada vez mais, atenuada, assim como a oposição de classes numa sociedade em que burocratas e operários são, de certo modo, trabalhadores e estão linearmente "consumidos" e comprometidos pelo/com o capital.

Por sua vez, surge uma nova forma de Estado. Uma entidade que já está capacitada para exercer um papel que não se identifica com aquele que havia levado à sua crítica profunda como mero instrumento ideológico de uma falsa consciência opressora.

A automação não é uma mera alteração quantitativa nas formas de produção. Ela é a manifestação de uma mudança qualitativa que se dá no bojo de uma ampla racionalização dos processos sociais, políticos e econômicos. Essa transformação é responsável por uma alteração tanto na base produtiva como nas formas de interação social. Uma administração total, que desempenhe os papéis descritos acima, requer os auspícios planejadores de um Estado do Bem-Estar Social, como um grande provedor de estabilidade e lealdade de massas em relação ao sistema de produção.

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Essa era uma conseqüência talvez natural daquela transformação da perspectiva ex parte principis que se houvera operado desde os séculos XVII e XVIII. Seria natural que a possibilidade aberta de um Estado focalizado na população fosse realmente desempenhada de acordo com a capacidade tecnológica de uma sociedade industrial. Ele teria, entre outras, a missão de fazer manter unido e estável um sistema social que, se não fosse controlado e corretamente estimulado, poderia fazer surgir a possibilidade de ruptura com o próprio projeto capitalista enquanto processo de racionalização.

No rastro da Modernidade, vem à luz uma racionalidade que, propondo-se a desencantar o mundo, para fazê-lo, termina por erigir estruturas e meios de exercer poder que tratam cada individualidade como se estas fossem coisas a serem manejáveis, disponíveis, estimuláveis e moldáveis [52]. A Administração dá-se a um nível que não parece ser apenas o nível da Soberania, mas que aparenta ser uma transformação do próprio homem em termos de uma alienação completa da sua liberdade e da sua individualidade.

A mercadoria e o valor-de-troca ainda são, é verdade, a base fundamental do sistema econômico. Mas o sistema de valor-de-troca, agora, é sensivelmente alterado à medida em que o trabalho humano perde seu caráter de produtor absoluto da riqueza. O salário não é mais determinado pelo valor-de-troca da força de trabalho tão somente. A sua base produtiva perde a mensurabilidade diante de uma produtividade determinada pela capacidade técnica e mecânica [53], ou seja pelo próprio grau de desenvolvimento e de domínio sobre as atividades da razão instrumental.

A sociedade prospera, deste modo, negando as suas negações. A evitação é, ao mesmo tempo, um imperativo técnico e um projeto político. Contudo, ao mesmo tempo em que se acusam quaisquer propostas alternativas de meras "imprecisões técnicas", é-se comprado e vendido, todos os dias, somente como uma coisa: mercadorias a serviço de um sistema ainda reificante.

Agora, a liberdade econômica é só a liberdade de ganhar a vida segundo os padrões da sociedade industrial. Aquele indivíduo que tinha a liberdade contratual plena, que era autônomo, pois dotado de uma Razão que o fazia um fim em si mesmo, à serviço de quem restavam todas as coisas do mundo como meio [54], hoje, é transformado em mais um produtor-consumidor no mercado. Deve entrar para as estatísticas de desemprego, para os cálculos para efeito de provisão de energia, água, telefonia nos contratos de concessão públicos, objeto de pesquisas de marketing, de índices de satisfação e de expectativa etc.

Enquanto trabalha, esse indivíduo é útil em vários sentidos, pois que é fonte de renda para sua família e incrementa o mercado de consumo e produz algum bem (mesmo que esse bem não seja lá de uma utilidade considerável). Ao mesmo tempo, em seu tempo livre, ele é também útil, pois que consome os bens produzidos em cadeia e que são, cada vez mais, criados e inventados com a finalidade de moldar suas necessidades e sendo por elas moldados.

A liberdade política significaria, então, somente, o direito de fazer parte do processo eleitoral através do voto, um procedimento meramente legitimatório [55] em que não se decidem mais realmente os destinos do Estado. No Estado Social, a política é somente condução dos mecanismos de evitação. Avança-se no sentido de que o que se entendia como o fundamento da própria Política e, portanto, o terreno de estabelecimento de fins da Economia Política: a definição democrática de fins práticos por meio do uso público da Razão, transforma-se em uma questão de resolução de questões técnicas.

Se Rousseau via no Governo o instrumento de realização da Vontade Geral [56], e nessa concepção, justamente, Marx denuncia a falsa consciência ideológica [57], parece que o manejo do sistema econômico gradativamente deixou de se preocupar tanto com seu fundamento democrático, ou mesmo com a definição pública de suas finalidades [58]. A manutenção do sistema tornou-se o imperativo que determina o seu funcionamento, e seus objetivos seriam constituídos num processo crescente de auto-referência. A divergência entre os partidos no jogo democrático eleitoral seria, senão, mera retórica de uma comunicação de massas crescentemente aperfeiçoada. A alternância de poder, simplesmente, a troca de equipes administrativas no corpo da burocracia [59]. A Economia Política teria vencido a própria Soberania e aquele fenômeno iniciado por Rosseau no século XVIII teria se realizado por completo num estado que se assenta numa racionalidade totalizadora e reificante.

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Sobre o autor
Pablo Holmes Chaves

mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), bolsista do Deutscher Akademischer Austauchdienst (DAAD)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Pablo Holmes. Teoremas de transição do Estado Social.: Ciência política e controle social no estado regulador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 998, 26 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8134. Acesso em: 29 mar. 2024.

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