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Amplo acesso ao Judiciário e coisa julgada

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INTRODUÇÃO

          Nossa Constituição Federal garante, no inciso XXXV do artigo 5º, o amplo acesso ao judiciário,(1) mas, em contrapartida, outro inciso do mesmo artigo 5º, que vem logo em seguida, o XXXVI, limita esse amplo acesso. (2) Ou seja, nenhuma lei poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, mas o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, uma vez presentes, tornam imutáveis situações previstas em lei, decisões judiciais, que, talvez até não cobertas com o manto da legalidade quando de sua efetivação. Podemos concluir, ao analisarmos esses princípios constitucionais, que existe uma situação antagônica, ou seja, quando existirem momentos em que o direito já foi definido em lei ou decidido judicialmente, uma vez acobertado por qualquer das garantias supra apontadas, torna-se imutável, inatingível de ser alterado devido àquelas "garantias" que torna aquele direito, aquela situação, intocável, juridicamente inalterável.

          Mas, como se falar, assim, em amplo acesso ao judiciário se não se pode recorrer a ele contra situação flagrantemente ilegal? Ocorre que, uma vez presentes as garantias constitucionais supra citadas, ou seja, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, não se pode, na maioria das vezes, tomar qualquer medida jurídica para tentar alterar essa realidade, imutável juridicamente. Portanto, na maioria das vezes, a situação não pode ser modificada. Ocorre que, em alguns casos, onde a ilegalidade é flagrante, não pode existir direito adquirido, pois o direito invocado sequer existiu, tratam-se de casos onde a legislação é inconstitucional ou afronta outra de hierarquia superior, que, por isso, não podem dar supedâneo jurídico a qualquer ilegalidade e acobertar, sob alegação de tratar-se de garantia constitucional, situações ilegais; outros casos, onde o direito advém de coisa julgada que é objeto de um julgamento nulo ou de qualquer forma viciado ou decorrente de atos jurídicos nulos, também não podem ter suporte constitucional e tornarem-se erigidos à imutabilidade; outros, ainda, onde não está presente o ato jurídico perfeito a embasar o negócio, também, não podem ser acobertados por qualquer garantia constitucional e tornar-se juridicamente inimpugnável.

          Existem instrumentos jurídicos aptos a trazerem de volta a discussão acerca da existência ou não do direito adquirido, da perfeição (ou legalidade) de certo ato, e, finalmente, acerca da existência realmente da coisa julgada. Alguns desses instrumentos serão apontados nesta explanação, ou seja, com relação à coisa julgada temos a ação anulatória e a ação rescisória. Além, é claro, da exposição e comentário acerca de todas essas garantias constitucionais que são tão diferentes mas tão interligadas e muitas vezes dependentes umas das outras para que possam coexistir em nosso ordenamento jurídico.


1. AMPLO ACESSO AO JUDICIÁRIO

          1.1. O controle judiciário

          Quando se fala em Estado de Direito, podemos concluir que o princípio da legislação é a base de qualquer Estado de Direito. (3) Devemos ter instrumentos que efetivamente propiciem a sua garantia. Instrumentos que assegurem que, em cada caso em que se manifeste lesão a direito individual de qualquer espécie, o Judiciário dirá a última palavra e como é sua função, aplicará a lei. (4) Sempre esta, portanto, prevalecerá. A importância prática do preceito ora examinado está em vedar sejam determinadas matérias, a qualquer pretexto, sonegadas aos tribunais, o que ensejaria o arbítrio. Proíbe, pois, que certas decisões do Executivo, que devem estar jungidas à lei, escapem ao império desta eventualmente, sem a possibilidade de reparação. O crivo imparcial do Judiciário, assim, pode perpassar por todas as decisões da Administração, contrariando a possível prepotência de governantes e burocratas. Trata-se, portanto, de garantia fundamental para que possa existir, sobreviver o Estado de Direito, voltado para o bem comum, preocupado com o bem estar da sua população, limitando a arbitrariedade dos governantes e fortalecendo as garantias individuais.

          1.2. Incondicionalidade

          Anteriormente, com a Emenda Constitucional nº 7, era estabelecido que fossem exauridas todas as vias administrativas, para, somente então, se falar em amplo acesso ao Judiciário.

          Com o advento da Constituição de 1988, ficou excluída a permissão que a Emenda Constitucional nº 7 da Constituição anterior estabelecera, de que a lei condicionasse o ingresso em juízo à exaustão das vias administrativas. (5)

          Portanto, não existe mais a necessidade de se exaurir as vias administrativas para se pleitear direito em juízo. Muitos julgados são reformados por ter errôneo supedâneo nestes argumentos, tendo em vista o claro mandamento constitucional.

          1.3. Ameaça.

          O preceito constitucional anterior não mencionava a ameaça de lesão a direito, por isso aqui está o ponto mais significativo e delicado da nova redação dada ao preceito. Prevendo que cabe o controle judicial ocorrendo mera ameaça a direito individual, a Constituição está implicitamente autorizando ao Poder Judiciário interferir em atos da órbita administrativa, como inquéritos etc. Trata-se, a nosso ver, de verdadeira evolução em nosso direito, pois, alguns inquéritos são abusivos, desviados de sua função originária, sem qualquer motivo para existirem, muitas vezes utilizados ilegalmente como instrumentos por autoridades arbitrárias que não podem, de forma alguma, ficarem imunes à apreciação da legalidade de seus atos pelo Poder Judiciário, sujeito, também, à supervisão atenta do Ministério Público, como fiscal da Lei.

          1.4. A função jurisdicional

          O Estado exerce, ao lado da função de legislar e administrar, a função jurisdicional. (6) Coincidindo com o próprio evolver da organização estatal, ela foi absorvendo papel de dirimir as controvérsias que surgiam quando da aplicação das leis. À função jurisdicional cabe o importante papel de fazer valer o ordenamento jurídico, de forma coativa, toda vez que seu cumprimento não se dê sem resistência. O lesado tem de comparecer diante do Poder Judiciário, o qual, tomando conhecimento da controvérsia, se substitui à própria vontade das partes que foram impotentes para se autocomporem. O Estado, através de um de seus poderes, dita, assim, de forma substitutiva à vontade das próprias partes, qual o direito que estas têm de cumprir.

          Sendo assim, podemos afirmar que a função jurisdicional é aquela realizada pelo Poder Judiciário, tendo em vista aplicar a lei a uma hipótese controvertida mediante processo regular, produzindo, afinal, coisa julgada, com o que substituiu, definitivamente, a atividade e vontade das partes.

          Alguns autores denominam esse princípio de "princípio da proteção judiciária", "princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional". (7)

          Tem-se que distinguir a atividade jurisdicional da administrativa e da legislativa. As duas últimas, especialmente a administrativa, consistem em atuação em conformidade com a lei, mas são nitidamente diversas da atividade secundária ou substitutiva, ao passo que a administrativa é primária. O judiciário tem como missão precípua dirimir conflitos existentes, declarando os direitos e deveres de cada um, a fim de tornar possível a convivência social; para isso, o Poder Judiciário tem a faculdade de processar e julgar as causas ou litígios entre quaisquer pessoas, aplicando e interpretando a lei através de seus órgãos. (8)

          O princípio da acessibilidade ampla do Poder Judiciário nasceu com a Constituição de 1.946, que tinha uma redação quase idêntica à atual:

          "A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual".

          Em 1.891, o Brasil se filiou à tripartição de Poderes, e como se sabe, o Sistema Constitucional então implantado inspirou-se em suas grandes linhas na Constituição americana. Esta filiação é muito importante para explicar o papel do Poder Judiciário na nossa história, ao qual sempre coube ser o recurso último para todas as lesões de direito, provenham elas de onde provierem. Baseando-se nisto firmaram-se duas idéias que, embora de conteúdos diversos, no fundo significavam a mesma coisa.

          Uma é a de que toda lesão de direito, toda controvérsia, portanto, poderia ser levada ao Poder Judiciário e este teria de conhecê-la, respeitada a forma adequada de acesso a ele disposta pelas leis processuais civis.

          E a outra é a de que toda jurisdição, o que significa dizer, toda decisão definitiva sobre uma controvérsia jurídica, só poderia ser exercida pelo Poder Judiciário. Não haveria jurisdição fora deste, nem no Poder Executivo, nem no Poder Legislativo. (9)

          O princípio de que a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, sofreu algumas exceções históricas, que se deram em períodos de não vigência do Estado de Direito. Estas exceções tinham sempre a sua vigência condicionada à manutenção do Estado autoritário. Desaparecido este, restaura-se, em sua plenitude, a acessibilidade ampla ao Poder Judiciário. Mesmo o contencioso administrativo a que se referia a Constituição de 1.967 nunca chegou a ser regulamentado, nem mesmo teve o rompante de afirmar que suas decisões teriam força jurisdicional.

          Portanto, o permissivo constitucional, criado pela Emenda n. 7/77 à Constituição de 1.967, nunca teve o condão de implantar no Brasil um contencioso administrativo nos moldes do sistema europeu. O que se criou foi o que poderíamos chamar uma instância administrativa de curso forçado pela qual, satisfeitos certos requisitos constitucionais, exigia-se do interessado que primeiro percorresse a instância administrativa; mas nem mesmo este contencioso completamente desfigurado chegou a ser posto em prática por falta de regulamentação.

          Qualquer que seja a lesão ou mesmo ameaça, surge o direito subjetivo público de ter, o prejudicado, a sua questão examinada por um dos órgãos do Poder Judiciário. (10)

          É certo que a lei poderá criar órgãos administrativos diante dos quais seja possível apresentarem-se reclamações contra decisões administrativas. A lei poderá prever recursos administrativos para órgãos monocráticos ou colegiados.

          1.5. Pretensas Exceções ao Princípio

          Existem alguns casos onde se pretende apresentar exceções ao princípio do amplo acesso ao judiciário mas que, na realidade, nenhum deles foge à aplicabilidade do princípio do amplo acesso ao judiciário, apenas tratam de casos excepcionais, devidamente regulamentados tendo em vista situações específicas que necessitam de uma diferenciação em nome da própria sobrevivência do Estado de Direito.

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          1.5.1 Crime de responsabilidade

          O julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade no âmbito do Congresso Nacional é por vezes lembrado como uma exceção ao monopólio da jurisdição pelo Judiciário.

          O julgamento pelo Senado só atinge o Presidente da República e altas autoridades, e esta sua sujeição a um julgamento pelo legislativo é mais manifestação do princípio dos controles recíprocos, que hão de existir entre os poderes, do que qualquer tentativa de criar alguma sorte de privilégios. (11)

          De outra parte, os crimes julgados por esta via são só os decorrentes do exercício da função, o que faz crer que se trata mais de definir o estatuto jurídico constitucional a que estão sujeitas as autoridades.

          1.5.2 Atos discricionários da Administração

          Não vemos como os atos discricionários constituiriam exceção ao princípio em pauta. Em primeiro lugar, porque o próprio Judiciário vai dizer se houve ou não regular exercício do poder discricionário. Em segundo lugar, em admitindo-se que o exercício foi regular, dele não surge nenhuma lesão de direito. Se porventura tal se der, abre-se a porta de acesso ao Judiciário, o que tornam os atos discricionários sujeitos ao controle pelo judiciário quando importarem em lesão ou ameaça a direito.

          1.5.3. "Interna Corporis"

          Tratam-se de atos praticados pelos dois outros poderes (Executivo e Legislativo) e que estariam imunes ao controle pelo Judiciário em nome da independência e da separação do Poderes. A predominância absoluta da lei dentro do Estado de Direito e o papel que cabe ao Judiciário, na preservação da sua incolumidade, no fundo eliminam a possibilidade, no nosso Sistema Constitucional, da existência dos chamados interna corporis.

          Os internas corporis são muito invocados nos atos praticados pelo Legislativo. É óbvio que estes se regem no desenvolvimento de sua atividade por atos de caráter normativo por eles mesmos editados. Sem dúvida que neste particular gozam os corpos legiferantes de amplíssima discricionariedade, desde que, contudo, respeitada a Constituição.

          Celso Bastos e Ives Gandra exemplificam com precisão: "O regimento de uma Câmara Municipal que ofenda a Lei Orgânica dos Municípios, é perfeitamente guindável ao exame do Poder Judiciário". (12)

          1.5.4. Exigência ou Caução

          A Constituição não regulamenta o acesso ao Poder Judiciário. Esta tarefa é cumprida por leis de natureza processual. É perfeitamente lícito a estas criar modalidades processuais diversas, com características, pressupostos e consequências próprios. Não somente com relação à caução, mas também com relação às custas processuais, existe a Lei nº 1.060/50, que concede aos necessitados a faculdade de isenção de qualquer custa ou emolumento exigida ao ajuizamento de qualquer ação perante o Poder Judiciário. Portanto, é constitucional a exigência de caução ou pagamento de custas, desde que fique sempre ressalvada uma via comum ou ordinária de acesso ao Poder Judiciário e se assegure aos legalmente necessitados a faculdade de amplo acesso ao judiciário, independentemente de qualquer custa. Resultará ferido o dispositivo constitucional se a lei dispuser que o ingresso em juízo para discussão de certa lei ou ato normativo só pode se dar se antecedido de caução ou fiança em quaisquer de suas modalidades. Este obstáculo se traduz em um entrave, conforme a hipótese até mesmo insuperável, ao atingimento da finalidade do objetivo do constituinte. Devem ser tidos por inconstitucionais, também, certos procedimentos por vezes encontráveis que consistem em, de alguma forma, estimular a fuga ao Poder Judiciário. Não devem, pois, ser tidos por inconstitucionais tão somente as leis que agridam, de forma direta, a Constituição, mas todas aquelas que criem alguma sorte de premiação ou punição para o apelo judicial.

          1.6. A supressão do termo "individual" do atual dispositivo

          O texto constitucional vinha, desde 1.946 conferindo a proteção de acesso garantido ao Poder Judiciário, ao que se denominava direito individual. Observa-se que a ordem jurídica não consagra tão somente a existência de interesses pessoais ou individuais, mas também interesses coletivos e ainda os moderníssimos interesses difusos.

          Bastará, portanto, a existência em prol de alguém de um direito, ainda que não tenha um caráter individualista, mas se confunda com o interesse coletivo ou difuso, para merecer a tutela jurisdicional. Ao lado das clássicas noções de interesse público, interesse privado e interesse coletivo, a doutrina assistiu ao surgimento de mais uma noção, qual seja a de interesse difuso. Isso porque às dificuldades inerentes ao saber-se em que consiste o qualificativo difuso, somam-se as de precisar o próprio conceito de interesse. Em direito o referido termo possui várias significações, desdobrando-se em diversas acepções, conforme esteja ele associado a este ou àquele campo do universo jurídico.

          Por outro lado, a correlação entre interesse e necessidade é responsável em boa parte pela confusão que, por vezes, é feita entre interesse jurídico e interesse material.

          O interesse de direito é apenas um campo restrito traçado dentro da área maior dos interesses humanos em geral. É de reconhecer que o interesse juridicamente relevante pressupõe o interesse material, ao menos em caráter genérico. O interesse pela vida em si não fica infirmado pelo fato de o suicida não estar dele possuído.

          Na teoria do direito civil, o interesse surge como a outra face do direito subjetivo, ou seja, como o interesse material ínsito neste. Esses interesses materiais somente assumem relevância jurídica, convertendo-se em interesses jurídicos, porque erigidos em núcleos de direitos subjetivos.

          A noção de direito legítimo não é uma construção do direito brasileiro. Na Europa, de modo geral, prevaleceu a tendência em dividir a competência jurisdicional entre órgãos do Poder Executivo e do Judiciário. Para a divisão, entre esses poderes, das atribuições judicantes, fez-se necessário criar, ao lado do direito subjetivo, o conceito de interesse legítimo.

          O que pode ser observado é que entre o direito processual brasileiro e o continental europeu, há uma nítida diferença quanto às posições legitimantes. No direito brasileiro, a ‘legitimatio ad causam’ da parte se reporta sempre a um direito subjetivo, que realmente existe ou pelo menos assume a aparência de existir, cuja lesão, ameaça, ou estado de incerteza objetiva, deverão servir de fundamento para invocar-se a atuação do Judiciário.

          Já no direito continental europeu, surgem duas posições legitimantes distintas, uma delas referida a um direito subjetivo e a outra a um interesse legítimo. Essas duas posições constituem o critério básico para a repartição de competências entre os órgãos judicantes do Poder Judiciário e dos tribunais administrativos.

          Ao examinar-se o conceito de interesse de agir, no âmbito do Processo Civil, vai-se ver que ele reproduz, de certo modo, a própria origem da processualística.

          A essa estreita ligação não foi estranho o liberalismo do século XIX, que considerou o próprio direito de ação como um mero reflexo do direito subjetivo. Nessa fase não se considerava que a ação fosse um direito distinto daquele direito subjetivo que ela visava proteger.

          Ainda que atualmente já se tenha firmado o caráter autônomo do direito de ação, contudo, não se superou a associação historicamente estabelecida entre o interesse de agir e o interesse como núcleo de um direito subjetivo. Os interesses jurídicos podem ser classificados como interesses primários e interesses secundários. (13)

          O interesse primário é aquele diretamente incidente sobre a pretensão do direito material, ou seja, o que liga o indivíduo a determinado bem da vida. Já o secundário decorre da impossibilidade de utilização normal pelo indivíduo daquele determinado bem da vida.

          Para o desentranhamento de uma noção autônoma de interesses difusos, entretanto, essa conexão entre interesse de agir e direito subjetivo remanesce como um obstáculo a ser transposto, se é que se queira efetivamente levar a bom cabo a empreitada.

          A tutela desses interesses difusos está na estrita dependência da dissociação que se venha a fazer entre o interesse de agir e o direito subjetivo. Em outras palavras cumpre reconhecer o interesse de agir mesmo em situações onde não esteja presente o clássico direito subjetivo lesado, que exige um nível de concreção e individualização que as modernas formas de agravo a direitos, por serem abstratas e coletivas, não possuem.

          A expressão interesse público vem tisnada por um alto grau de indeterminação, nos diversos ramos do direito em que ela é utilizada: processual, administrativo ou constitucional.

          É verdade que o teor dessa vaguidade acentuou-se com o advento do Estado Social de Direito, porquanto o Estado de Direito Clássico, ao arvorar-se apenas em guardião da ordem e da propriedade, chegou a determinar com certa nitidez o âmbito dos interesses públicos.

          Também os processualistas afirmam que a expressão interesse público exsurge como de significação vaga, observam que o significado de interesse público, tende a confundir-se com o de muitas outras expressões semelhantes, entre elas relacionando exemplificativamente: interesse geral, interesse da lei, interesse coletivo. (14)

          De outra parte, a dicotomia interesse público/interesse privado, exacerbada pela ideologia do liberalismo jurídico, contribuiu para impedir que se destacasse, entre o interesse público próprio e o interesse particular, uma categoria intermediária, constituída pelo interesse coletivo.

          Este pouco tem que ver com o direito individual do trabalho. Somente o direito coletivo do trabalho, por vezes intitulado de direito sindical, é que constitui setor importante, mas não o único, do direito social ou coletivo.

          Não se pode deixar de reconhecer, ao examinar os interesses coletivos, que, embora eles não se confundam com os interesses difusos, objeto deste trabalho, sua identificação constitui um passo enorme na conceituação destes últimos.

          Isso porque os interesses coletivos dizem respeito ao homem socialmente vinculado e não ao homem isoladamente considerado.

          Interesses coletivos seriam, os interesses afetos a vários sujeitos não considerados individualmente, mas sim por sua qualidade de membro de comunidades menores ou grupos intercalares, situados entre o indivíduo e o Estado.

          Ao contrário, no caso dos denominados interesses difusos, não se nota qualquer vínculo jurídico congregador dos titulares de tais interesses que praticamente se baseiam numa identidade de situações de fato.

          Quando nos referimos aos interesses difusos dos usuários de automóveis, por exemplo, abarcamos uma indefinida massa de indivíduos das mais variadas situações, esparsos por todo o país, sem qualquer especial característica jurídica homogênea, que apenas praticaram, aos milhares ou milhões, um mesmo ato jurídico instantâneo, a compra de um veículo.

          Com efeito, parece residir aqui a nota tipificadora dos interesses difusos. Caracterizam-se eles, na verdade, pela natureza extensiva, disseminada ou difusa das lesões a que estão sujeitos. Os efeitos danosos das lesões aos interesses difusos apresentam-se amplos e não circunscritos, num fenômeno de propagação altamente centrífuga.

          Mesmo na hipótese de interesses difusos ligados a uma comunidade mais circunscrita, os efeitos danosos da lesão afetam série aberta de pessoas.

          Os interesses difusos constituem, pois, decorrência da sociedade tecnológica, de produção e consumo massificados, com a participação de empreendimentos públicos ou privados de avultadas proporções, dando lugar a uma mutação veloz e constante, em cujo bojo ocorrem lesões de um novo perfil, marcadas pelo grande número dos atingidos assim como pela sua indeterminação.

          Por outro lado, o propósito estatal de elevar a capacidade produtiva, ao ser implementado pelo método mais expedito e econômico, muitas vezes sem compatibilização com os valores jurídicos igualmente relevantes, conflitará com outros interesses, como os de defesa do ambiente natural.

          Os interesses difusos podem, por vezes, opor-se a outros interesses também difusos, e não necessariamente a interesses coletivos ou públicos.

          De outra parte, a ampla conflituosidade insita em certas decisões empresariais ou ainda em determinadas opções políticas, nas quais se engajam unidos ou mesmo se consorciam o setor público e segmentos do setor econômico privado, constitui característica importante dos interesses difusos, conotação específica destes e desconhecida dos tradicionais conflitos de interesse de âmbito dual.

          Os conflitos respeitantes aos interesses difusos não colocam em posições antagônicas apenas indivíduo contra indivíduo ou indivíduo contra autoridade pública, como só acontecer no processo tradicional; não envolvem tão somente sindicatos de empregados contra sindicatos patronais, como ocorre no processo coletivo trabalhista, mas, sim, apresentam caráter vagamente circunscrito, podendo abranger o Estado, empresas, segmentos sociais ou mesmo comunidades inteiras.

          É a complexidade da sociedade de produção e consumo em massa a forçar o surgimento de novas instâncias de afirmação do coletivo, antes inéditas, e a fazer eclodir seus múltiplos antagonismos, não abarcáveis no clássico dualismo do autor versus réu.

          Os interesses difusos são titulares por numerosos indivíduos que, ou compõem grupos mal circunscritos, ou nem mesmo chegam a constituir verdadeiros grupos, já que seus titulares muitas vezes disseminam-se entre as várias camadas sociais, em âmbitos diversos e não circunscritos.

          A supressão do termo individual findou inegavelmente por conferir ao dispositivo em tela uma dimensão muito diferente da anterior.

          É certo que, para bater-se ao Judiciário, será sempre necessário alguma sorte de interesse definido em lei, salvo as exceções que a própria Constituição abre ou venha a abrir.

          Mas o fato de a proteção constitucional estar agora alargada a toda sorte de direito, independente do matiz que assuma, individual, coletivo ou difuso, constitui forte estímulo e acicate para que o nosso direito processual civil regulamente uma variedade de ações que possibilitem um ajuizamento rápido e célebre de todas aquelas questões que refugiam ao âmbito clássico de controle jurisdicional.

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Sobre os autores
Reinaldo Lucas de Melo

promotor de Justiça titular em Ribeirão Preto, professor de Direito Civil da UNIP – Ribeirão Preto, especialista "lato sensu" em Direito Público pela UNIP – Ribeirão Preto, mestrando em Constituição e Processo

José Arnaldo Vitagliano

Advogado. Doutorando em Direito Educacional pela UNINOVE - São Paulo. Mestre em Constituição e Processo pela UNAERP - Ribeirão Preto. Especialista em Direito pela ITE - Bauru. Especialista em Docência do Ensino Universitário pela UNINOVE - São Paulo. Licenciado em Estudos Sociais e História pela UNIFAC - Botucatu. Professor de Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Processual Civil e Prática Civil. Autor de dois livros pela Editora Juruá, Curitiba: Coisa julgada e ação anulatória (3ª Edição) e Instrumentos processuais de garantia (2ª Edição).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Reinaldo Lucas ; VITAGLIANO, José Arnaldo. Amplo acesso ao Judiciário e coisa julgada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/814. Acesso em: 16 abr. 2024.

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