Trata o art. 385 do CPP da possibilidade do Juiz, mesmo frente a pedido de absolvição do Ministério Público, condenar o réu. Embora, atualmente, pareça óbvia tal prerrogativa, ainda se ouve uma ou outra voz discordante, no sentido que, frente ao requerimento de absolvição formulado pela acusação oficial, esteja o juiz obrigado a atender o pedido e, por conseqüência, absolver o réu. O argumento é no sentido de que a Constituição de 1988 adotou, de forma clara, o sistema acusatório, prevendo a nítida separação entre órgão acusador e órgão julgador. Mas, no dizer de Américo Bedê Freire Júnior, "deve-se ir além. Mais do que simplesmente a separação entre acusação e julgamento há, para efetivação do jus puniendi, a necessidade de que a acusação e o julgador se entendam quanto à existência de crime. Na verdade há uma relação de prejudicialidade entre o convencimento do promotor e do magistrado, melhor explicando: entendendo o Ministério Público pela não existência de crime, não cabe ao magistrado exercer qualquer juízo de valor sobre a existência ou não do crime, uma vez que a partir desse momento o magistrado estaria atuando de ofício, ou seja, sem acusação e em flagrante desrespeito ao sistema acusatório" (1).
A discussão não é nova. Interessante, neste aspecto, o posicionamento de Ary Azevedo Franco, ao comentar o dispositivo legal em tela: "Também sempre entendemos que, uma vez que o Ministério Público houvesse opinado pela absolvição do réu, nada mais cabia ao juiz senão acolher o petitório do Ministério Público, porque sempre consideramos o mesmo como autor da ação, e dês que era ele o primeiro a reconhecer que dela havia decaído, não devia o juiz entrar na apreciação da prova para discordar do Ministério Público" (2).
Mas esse próprio autor, frente aos termos peremptórios do preceito em estudo, passou a reconhecer tal possibilidade conferida ao julgador e que, efetivamente, parece mais adequada.
A um, pois a sentença deve representar a íntima convicção do Juiz sobre o mérito da causa, não se subordinando a nenhum pedido anterior. E, a dois, por vigorar, em nosso processo penal, o principio da indisponibilidade, por meio do qual prevalece o interesse público na persecução penal nos crimes de ação penal pública. Fosse diferente, aliás, o julgador da causa não seria o juiz, mas sim o Ministério Público, a cujo pedido de absolvição estaria vinculado aquele primeiro. Tal faculdade concedida ao Juiz, porém, reforça, de outro lado, o entendimento segundo o qual pode o parquet recorrer em favor do réu do qual a absolvição foi pedida.
Invocar-se o sistema acusatório como fator impeditivo para que o juiz condene frente a um pedido de absolvição, parece absolutamente equivocado. Afinal, se há evidente separação entre acusador, defensor e julgador, cada um ocupando um compartimento estanque na relação processual, aí sim há de se admitir a condenação mesmo com anterior pedido de absolvição. Com efeito, a vinculação do juiz ao pedido do Ministério Público, da forma que sugerida, é que romperia com o sistema, na medida em que transferiria para a acusação pública o poder de julgar, reunindo, em um só órgão, as funções de acusar e decidir, em clara reminiscência ao sistema inquisitivo.
Outro equívoco reside em se afirmar que, se o Ministério Público pode requerer o arquivamento do inquérito policial, também pode retirar a acusação, pedindo a absolvição do réu. Ocorre que o pedido de arquivamento, pelo menos, é objeto de crivo judicial, podendo o juiz, dele discordando, invocar o art. 28 do CPP. Já frente a um pedido de absolvição, se acolhida a tese, não restaria outra alternativa ao juiz senão a de acolhê-lo. Com isso, se afastaria, por completo, a possibilidade de controle dos atos judiciais e – diria – dos atos do Ministério Público, pelas instâncias superiores, eis que, na prática, ninguém recorreria de tal decisum, ante a evidente falta de interesse (= utilidade).
Esse importante fundamento político, que justifica o duplo grau de jurisdição, a possibilitar a salutar revisão das decisões judiciárias, ficaria restrito ao improvável recurso do ofendido, das pessoas relacionadas no art. 31 do CPP ou do assistente da acusação. Ou, ainda, às raras hipóteses nas quais se admite o recurso obrigatório (não cabe aqui tecer comentários a respeito da impropriedade dessa denominação). Na prática, a sentença absolutória repousaria, para sempre, no silêncio de um arquivo, inatingível à instância superior. Aliás, a se privilegiar tal entendimento, se deveria concluir, por coerência, que também o art. 28 do CPP não foi recepcionado pela Constituição. Claro: se o juiz não pode discordar do pedido de absolvição, tampouco poderá apresentar qualquer oposição quando requerido o arquivamento do inquérito policial pela acusação pública.
Também não entendo correta a argumentação de que, ao condenar, conquanto tenha o Ministério Público pedido a absolvição, estaria o juiz agindo de ofício. Esse entendimento parece altamente contaminado por regras típicas do processo civil, cristalizadas através do velho aforismo ne procedat judex ex officio, onde o interesse em jogo, via de regra, é disponível, podendo a parte dele transigir. Mas, se mesmo no processo civil tal brocardo já perdeu força (cf. art. 130 do CPC), no processo penal ele jamais incidiu com total plenitude. Aqui, ao contrário do processo civil, o juiz não é um mero espectador inerte ou "convidado de pedra". Ao contrário, está comprometido com a busca da verdade real, tanto quanto o Ministério Público, não se satisfazendo, assim, com a mera verdade formal, que basta ao juiz cível.. Na lição de Tourinho Filho, "a natureza pública do interesse repressivo exclui limites artificiais que se baseiam em atos ou omissões das partes. A força incontrastável desse interesse consagra a necessidade de um sistema que assegure o império da verdade, mesmo contra a vontade das partes" (3).
Daí se concluir como perfeitamente cabível a condenação do réu mesmo frente a um pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público, única conclusão, aliás, que se coaduna com o texto legal (art. 385). Resta ao parquet, não se conformando com a condenação, recorrer em favor do réu, em postura, hoje, tranquilamente admitida pela doutrina e jurisprudência.
Notas
(1) FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Boletim do IBCCrim, nº 152 – julho 2005, p. 19.
(2) FRANCO, Ary Azevedo. Código de processo penal, vol. 1, Rio de Janeiro: Editora A noite, 1950, p. 386.
(3) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, 26ª ed., vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 37