4 Anulabilidade ou ineficácia do negócio jurídico praticado em fraude pauliana
Para que o ato jurídico alcance os efeitos programados por seu agente, deve passar, primeiramente, pelos três planos do mundo jurídico: existência, validade e eficácia. Sinteticamente, pode-se dizer que o plano da existência representa a materialidade fática do ato. O plano da validade se relaciona com a presença dos requisitos legais essenciais para que determinado ato esteja apto a produzir efeitos. Já plano da eficácia se refere à capacidade, desde logo, da produção ou não dos efeitos programados.
Todo ato inexistente ou inválido será também ineficaz, contudo, nem todo ato existente e válido é eficaz. Em que pese o ato jurídico ser válido e estar apto a produzir efeitos, nem sempre tais efeitos são produzidos, desde já ou por completo. Pode ser que haja alguma causa de ineficácia absoluta (Ex.: ato jurídico sujeito à condição suspensiva) ou causa de ineficácia relativa (Ex.: fraude pauliana, fraude à execução, fraude à penhora, desconsideração da personalidade jurídica em decorrência de abuso).
Segundo Alexandre Freitas Câmara (2004, p. 214), as questões atinentes à ineficácia relativa do ato jurídico se referem aos efeitos secundários do referido ato, e não ao efeito programado ou principal. A ineficácia relativa é, pois, uma forma de se proteger interesses de terceiros, alheios ao ato jurídico praticado:
"Há casos, porém, em que – como forma de se proteger a esfera patrimonial de terceiros – exclui-se a aptidão do ato jurídico para produzir o efeito secundário (embora o ato continue apto a produzir seu efeito programado). Assim, por exemplo, na alienação de bem em fraude contra credores, o efeito programado se produz, e o bem alienado passa a pertencer ao adquirente. Não se produz, porém, o efeito secundário, o que significa dizer que aquele bem, embora tenha saído do patrimônio do devedor permanece incluído no campo de incidência da responsabilidade patrimonial, isto é, embora não mais pertença ao devedor, será possível sua apreensão (no patrimônio de terceiro que o adquiriu), para que com ele se assegure a realização do direito de crédito do terceiro prejudicado pela alienação."
Em que pese a melhor doutrina pregar a ineficácia relativa do negócio jurídico praticado em fraude contra credores stricto sensu (fraude pauliana), conforme visto, o atual Código Civil continuou a regulá-la dentro do capítulo referente aos defeitos dos negócios jurídicos. Tal localização do tema é extremamente criticável, pois suas características e efeitos não se assemelham à dos vícios de consentimento, elencados sob o mesmo título.
Primeiramente, a doutrina majoritária considera a fraude pauliana como sendo um vício social, tal como a simulação, ao passo que os demais defeitos negociais (erro, coação, dolo, lesão, estado de perigo) seriam vícios de consentimento [05]. Enquanto o vício de consentimento atinge o negócio jurídico em si, pois compromete um de seus elementos essenciais – a vontade negocial –, o vício social refere-se aos fins colimados pelo negócio jurídico, quando buscarem frustrar direitos de terceiros, no caso da fraude pauliana, ou da própria sociedade, no caso da simulação.
Quando há vício de vontade, o negócio jurídico se torna passível de anulação, caso tal providência seja requerida judicialmente por algum prejudicado. Situação muito diferente ocorre no caso da fraude pauliana, em que o negócio jurídico não é viciado em nenhum de seus elementos essenciais, não sendo, pois, passível de anulação. Neste caso, o negócio jurídico subsiste, contudo, não estará apto a produzir efeitos, haverá ineficácia relativa perante determinados credores (os que intentarem e obtiverem êxito com a ação pauliana).
"O Novo Código Civil [...] cometeu, todavia, um desserviço ao direito civil brasileiro, ao manter a fraude contra credores dentre as causas de anulabilidade do negócio jurídico (arts. 158 a 165), já que os rumos traçados pelo direito comparado contemporâneo e a lição da doutrina nacional desde muito catalogam a impugnação pauliana no âmbito da ineficácia, e não da invalidade.
Além de atribuir efeitos impróprios à natureza dos negócios viciados, reúne o Código fenômenos heterogêneos sob a denominação única de ‘defeitos do negócio jurídico’. Na verdade, nada há em comum entre os vícios de consentimento (ou de vontade) - erro, dolo, coação etc. e os vícios funcionais (ou sociais), como a fraude contra credores." (THEODORO JÚNIOR: 2002, p. 01-02)
Pois bem, além de disciplinar a fraude pauliana ao lado dos defeitos negociais relativos aos vícios de consentimento, o vigente Código Civil lhe atribuiu, a priori, segundo interpretação literal dos artigos 158, 159, 165 e 171, inciso II, os mesmos efeitos sancionatórios dos vícios de consentimento – a anulabilidade do negócio jurídico. Todavia, numa interpretação teleológica, baseada, sobretudo, nos princípios constitucionais, infere-se que a fraude paulina é causa, na verdade, de ineficácia relativa, e não de anulabilidade.
No Brasil, a doutrina civilista clássica [06] ainda prega uma interpretação conforme a literalidade dos dispositivos supra-mencionados, isto é, atribuindo à fraude pauliana o efeito de possibilitar a anulação do negócio jurídico. Por seu turno, vários doutrinadores de peso vêm defendendo a tese da ineficácia relativa [07].
Na jurisprudência, encontramos alguns julgados que adotaram a teoria da ineficácia relativa, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
"Ementa: Direito civil e Processo civil. Recurso especial. Ação pauliana. Acórdão. Omissão. Inexistência. Reexame de prova. Prequestionamento. Afronta ao art. 106 do CC. Alienações sucessivas no tempo. Ausência de interesse de agir.
- Afronta o art. 535, II do CPC apenas o acórdão omisso, não necessitando o Tribunal a quo tecer comentários sobre todos os argumentos levantados pelas partes.
- É inadmissível o recurso especial se não houve o prequestionamento do direito tido por violado e dependa a sua análise de reexame de prova.
- Não possui interesse de agir aquele que, em ação pauliana, interpõe recurso especial por ofensa ao art. 106 do CC, pugnando pela validade de alienação anterior a outra, se o Tribunal a quo decidiu que, em alienações sucessivas no tempo, deve-se primeiro declarar a ineficácia da alienação mais próxima para, somente após, caso permaneça o estado de insolvência, declarar-se a ineficácia da alienação mais remota.
- Recurso especial a que não se conhece.
(REsp 214087 / SP; 3ª Turma; Rel. Nancy Andrigui; DJ 25.06.2001)" [grifo nosso]
"Ementa: EMBARGOS DE TERCEIRO – FRAUDE CONTRA CREDORES
Consoante a doutrina tradicional, fundada na letra do Código Civil, a hipótese é de anulabilidade, sendo inviável concluir pela invalidade em embargos de terceiro, de objeto limitado, destinando-se apenas a afastar a constrição judicial sobre bem de terceiro. De qualquer sorte, admitindo-se a hipótese como de ineficácia, essa, ao contrário do que sucede com a fraude de execução, não é originária, demandando ação constitutiva que lhe retire a eficácia.
(REsp 40805 / RJ; 3ª Turma; Min. Eduardo Ribeiro; DJ 08.05.1995)" [grifo nosso]
"Ementa: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ALÍNEA C. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO DISSÍDIO. FRAUDE CONTRA CREDORES. NATUREZA DA SENTENÇA DA AÇÃO PAULIANA. EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. DESCONSTITUIÇÃO DE PENHORA SOBRE MEAÇÃO DO CÔNJUGE NÃO CITADO NA AÇÃO PAULIANA.
1. O conhecimento de recurso especial fundado na alínea c do permissivo constitucional exige a demonstração analítica da divergência, na forma dos arts. 541 do CPC e 255 do RISTJ.
2. A fraude contra credores não gera a anulabilidade do negócio — já que o retorno, puro e simples, ao status quo ante poderia inclusive beneficiar credores supervenientes à alienação, que não foram vítimas de fraude alguma, e que não poderiam alimentar expectativa legítima de se satisfazerem à custa do bem alienado ou onerado.
3. Portanto, a ação pauliana, que, segundo o próprio Código Civil, só pode ser intentada pelos credores que já o eram ao tempo em que se deu a fraude (art. 158, § 2º; CC/16, art. 106, par. único), não conduz a uma sentença anulatória do negócio, mas sim à de retirada parcial de sua eficácia, em relação a determinados credores, permitindo-lhes excutir os bens que foram maliciosamente alienados, restabelecendo sobre eles, não a propriedade do alienante, mas a responsabilidade por suas dívidas.
4. No caso dos autos, sendo o imóvel objeto da alienação tida por fraudulenta de propriedade do casal, a sentença de ineficácia, para produzir efeitos contra a mulher, teria por pressuposto a citação dela (CPC, art. 10, § 1º, I). Afinal, a sentença, em regra, só produz efeito em relação a quem foi parte, "não beneficiando, nem prejudicando terceiros" (CPC, art. 472).
5. Não tendo havido a citação da mulher na ação pauliana, a ineficácia do negócio jurídico reconhecido nessa ação produziu efeitos apenas em relação ao marido, sendo legítima, na forma do art. 1046, § 3º, do CPC, a pretensão da mulher, que não foi parte, de preservar a sua meação, livrando-a da penhora.
5. Recurso especial provido.
(STJ, REsp 506312 / MS, Primeira Turma, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, DJ 31.08.2006)" [grifo nosso]
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery (2005, p. 251) estão entre os poucos que, além de adotar a posição clássica da anulabilidade, se preocuparam a justificar sua opção. Ao tratarem sobre o regime jurídico da fraude pauliana (fraude contra credores stricto sensu), dispõem:
"Regime Jurídico da fraude contra credores. É dado pela lei. A norma sob comentário dá o regime da anulabilidade ao negócio jurídico celebrado em fraude contra credores. As considerações feitas por parte da doutrina, de que o negócio jurídico seria válido, mas ineficaz (teoria da inoponibilidade) – copiando o direito italiano, sem reservas –, devem ser consideradas de lege ferenda. Vide o exemplo da simulação, que no regime anterior era causa de ‘anulabilidade’ (CC/1916 102 e 147 II) e no regime novo é causa de nulidade do negócio jurídico (CC 167). Portanto, é a lei que dá o regime jurídico dos defeitos dos negócios jurídicos. Anulado o negócio jurídico por fraude contra credores, o bem alienado volta ao patrimônio do devedor, para a garantia do direito dos credores (CC 165). Caso se desse à fraude contra credores o tratamento da ineficácia, reconhecida essa o bem alienado continuaria no patrimônio do adquirente, fazendo com que apenas aquele que entrou com a ação pauliana tivesse o beneficio do reconhecimento da ineficácia, mantendo-se íntegro o ato fraudulento em face dos demais credores.
Por essa razão é que o CC 165 determina que, procedente o pedido pauliano, ou seja, anulado o negócio jurídico fraudulento, o bem objeto do negócio retorna ao patrimônio do devedor, protegendo-se todos os credores. [...]
O regime legal da fraude contra credores – anulabilidade, portanto, afigura-se-nos o mais adequado para a realidade brasileira e para o escopo a que se propôs o Código Civil: proteger os credores e não apenas aquele credor que ajuíza a ação pauliana."
Data venia, ousamos discordar dos ilustres doutrinadores que pregam a teoria da anulabilidade. In casu, a interpretação literal dos dispositivos que tratam da fraude pauliana no Código Civil não é a única, nem a mais plausível. A utilização do método teleológico indica que as conseqüências advindas do reconhecimento da fraude pauliana se assemelham mais à ineficácia relativa do que à anulabilidade.
"É claro que o intérprete não pode revogar a lei nem eliminar os critérios do legislador, substituindo-os por outros critérios pessoais que, sem motivo plausível, se distanciem do direito positivo e dos princípios gerais do direito reconhecidamente inspiradores do ordenamento positivo. Pode, e deve, no entanto, afastar-se do anacrônico positivismo jurídico, para conscientizar-se de que o direito não está apenas na letra da norma legislada. Ao contrário, tem de orientar-se, para chegar a bom termo no labor interpretativo, segundo critérios valorativos que revelam horizontes muito mais amplos do que os imediatamente divisados no texto da norma positiva." (THEODORO JÚNIOR: 2001, p. 186)
O caput do art. 165 do Código Civil dispõe que: "Anulados os negócios fraudulentos, a vantagem resultante reverterá em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores". Ao analisar os efeitos da anulação do negócio fraudulento, segundo a literalidade do referido art. 165, percebe-se que tal anulação é "meramente relativa", ou seja, a restauração do status quo ante imposta pela referida anulação se opera simplesmente quanto a todos os credores (e não com relação aos devedores).
A "anulação relativa" do art. 165 mais se assemelha à ineficácia relativa (inoponibilidade perante os credores), distanciando-se da anulação tradicional (desconstituição in totum do negócio jurídico, com recomposição do status quo ante). A doutrina clássica não consegue, satisfatoriamente, explicar os efeitos dessa "anulabilidade relativa", conforme percebido e criticado por Alexandre Freitas Câmara (2004, p. 211-212):
"[...] no caso de anulação de um ato praticado em fraude contra credores, deveria o bem alienado fraudulentamente retornar ao patrimônio do devedor que o alienara. Tal, porém, não ocorre. Basta ver a afirmação de um notável civilista pátrio, defensor da posição tradicional (Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado,vol. II, p. 451), segundo a qual o ato praticado em fraude contra credores seria anulável, mas que, ao analisar os efeitos da sentença proferida na ‘ação pauliana’ (ou seja, na demanda destinada a atacar o ato praticado em fraude contra credores), afirma que ‘a revogação a que conduz a ação pauliana, como se vê, é puramente relativa, no sentido de que não se verifica senão em proveito dos credores do devedor e nunca em proveito do próprio devedor. Entre este e os terceiros que decaíram na ação pauliana o contrato permanece válido, subsistindo inteiramente. Exemplo: no caso de uma doação fraudulenta, quando os credores fizeram anular essa doação e foram pagos com o produto dos bens que voltaram ao patrimônio do devedor (o doador), como conseqüência da anulação pleiteada, se o preço apurado é superior ao valor total dos créditos, o excedente será restituído ao donatário’.
Parece estranho que um ato anulado permaneça válido entre as pessoas que o praticaram, como afirma textualmente o trecho citado acima. Da mesma forma, é no mínimo estranho que, uma vez expropriado o bem que havia sido alienado em fraude contra credores (depois de ter sido anulada a alienação), e havendo saldo em razão de ter sido obtida quantia em dinheiro superior ao valor do crédito exeqüendo, pertencer tal saldo ao adquirente, se o bem não mais integrava o seu patrimônio (e sim o do alienante) quando foi expropriado. Tais dificuldades para explicar as conseqüências da fraude pauliana desaparecem, porém, se abandonarmos a posição clássica e afirmarmos que o ato praticado em fraude contra credores é válido, mas ineficaz." (CÂMARA, 2004, p. 211-212)
Daí que melhor seria, então, atribuir como conseqüência da fraude pauliana a ineficácia relativa das alienações fraudulentas, isto é, os credores poderiam "alcançar" o patrimônio do terceiro adquirente (participens fraudis), dado que o negócio fraudulento seria inoponível àqueles. Ao mesmo tempo, caso o patrimônio transferido em fraude pauliana seja superior ao crédito do credor-autor da ação pauliana, o restante do patrimônio continuaria com o participens fraudis, de modo que já lhe serviria como atenuação do quantum que lhe caberá face o devedor-alienante, numa futura ação regressiva.
A teoria da anulabilidade foi adotada pelo Código Civil de 1916 tendo em vista que este sequer tratou do instituto da eficácia dos atos jurídicos porque, à época em que foi editado, não havia ainda um desenvolvimento sedimentado na ciência do direito sobre o plano da eficácia dos atos jurídicos, conforme crítica de Humberto Theodoro Júnior (2002, p. 02):
"Como explicar, então, o agrupamento de figuras tão díspares como os vícios de consentimento e os vícios sociais no mesmo segmento dos defeitos do negócio jurídico? Simplesmente porque, na ótica do Código de 1916, todos eles conduziriam a uma só sanção: a anulabilidade.
Mas, tão diferentes eram os dois fenômenos, que mesmo submetendo-os ao regime comum das anulabilidades, não pôde o Código velho deixar de reconhecer que a invalidade teria conseqüências não uniformes, conforme o vício fosse de vontade ou social. No primeiro caso, a proteção era para o agente vítima do defeito, de maneira que a invalidação seria decretada em seu benefício; no segundo, a anulação operaria em favor dos terceiros lesados e não do agente do ato defeituoso.
Ora, esse tratamento promíscuo de fenômenos irredutíveis entre si só se justificava pelo fato de ao tempo da elaboração do Código velho não se dominar, ainda, com segurança, a distinção, entre anulabilidade e ineficácia relativa. Num Código do Século XXI, todavia, é inaceitável que se mantenham coisas tão díspares sob regime nominalmente igual, mas de conseqüências substancialmente diversas. A impropriedade é gritante e será, na prática, fator de muita confusão e prejuízos, pelos reflexos que certamente acarretará à segurança jurídica."
Atualmente, a ciência jurídica já se desenvolveu de forma satisfatória para diferenciar os planos de validade e eficácia, não havendo mais razão para que o atual Código Civil 2002 adotasse a mesma teoria do antigo Código Civil de 1916, praticamente repetindo os dispositivos deste Código, ao tratar da fraude pauliana.
Registre-se, ainda, que a Comissão Revisora do Código Civil de 2002 se negou, expressamente, a alterar a disciplina da fraude pauliana, consoante relata Carlos Roberto Gonçalves (2005, p. 418-419), in verbis:
"Durante a tramitação do Projeto de Código Civil na Câmara Federal foi apresentada uma emenda, a de n. 193, pretendendo que a fraude contra credores acarretasse a ineficácia do negócio jurídico fraudulento em relação aos credores prejudicados, e não a sua anulação. A isso respondeu a Comissão Revisora, em seu relatório:
‘O Projeto segue o sistema do Código Civil (de 1916), segundo o qual a fraude contra credores acarreta a anulação. Não se adotou, assim, a tese de que se trataria de hipótese de ineficácia relativa. Se adotada esta, teria de ser mudada toda a sistemática a respeito, sem qualquer vantagem prática, já que o sistema do Código (de 1916) nunca deu motivos a problemas, nesse particular. Ademais, o termo revogação, no sistema do Código Civil (de 1916) e do Projeto, é usado para a hipótese de dissolução de contrato pela vontade de uma só das partes contratantes (assim, no caso de revogação de doação, por ingratidão). E nesse caso a revogação opera apenas ex nunc, e não ex tunc. Nos sistemas jurídicos que admitem a revogação do negócio jurídico por fraude contra credores, admite-se que o credor retire a voz do devedor (revogação), ao passo que, em nosso sistema jurídico, se permite que o credor, alegando a fraude, peça a decretação da anulação do negócio entre o devedor e terceiro. São dois sistemas que se baseiam em concepções diversas, mas que atingem o mesmo resultado prático. Para que mudar?’"
Contudo, há que se considerar que "os tipos, diferentemente dos conceitos, não se criam ou se inventam – somente se descobrem; nem se definem em seus próprios termos – apenas se descrevem" (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. Portuguesa, Lisboa, 1978, p. 506 et seq. apud THEODORO JÚNIOR, 2001, p. 184), razão pela qual deve o intérprete do Código Civil de 2002 evoluir na interpretação da disciplina da fraude pauliana, pois, ainda que o legislador do atual Código Civil tenha se furtado de disciplinar, explicitamente, o instituto da ineficácia, tal fato não é justificativa, por si só, para se adotar uma interpretação literal e cega.
"O apego dos juristas ao tradicional e sua correlata aversão ao novo é apenas um eufemismo com que se procura mascarar a sua verdadeira causa: a lei do menor esforço. [...] A aversão ao novo é, assim, a aversão ao estudo; o apego ao passado é, nada mais, nada menos, que expediente para evitar o esforço de meditar sobre as novas normas jurídicas." (BILAC PINTO, 1983, p. 29 a 31 apud THEODORO JÚNIOR, 2001, p. 26)
Outrossim, apesar de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery (2005, p. 251) entenderem que o regime aplicado pelo atual Código Civil à fraude pauliana é decorrente da vontade do legislador de proteger o interesse, conjuntamente, de todos os credores (e de mais ninguém!), tal posicionamento, data venia, se nos afigura, no mínimo, injusto e, também, incentivador da prática de fraudes.
Primeiramente, abstraída a questão da "anulabilidade relativa", se se admitir a possibilidade de anular in totum o negócio jurídico fraudulento, credores, que não o eram anteriormente à prática do referido negócio jurídico, serão beneficiados, mesmo sem ter intentado a competente ação pauliana. Nesse sentido, dispôs Teori Albino Zavascki:
"A fraude contra credores não gera a anulabilidade do negócio — já que o retorno, puro e simples, ao status quo ante poderia inclusive beneficiar credores supervenientes à alienação, que não foram vítimas de fraude alguma, e que não poderiam alimentar expectativa legítima de se satisfazerem à custa do bem alienado ou onerado." (trecho da ementa do julgamento do REsp 506312 / MS, já integralmente transcrito acima)
Pois bem, a teoria da ineficácia relativa, além de não tolhe quaisquer direitos dos credores pretéritos, tem a vantagem de, eventualmente, preservar parte dos direitos do terceiro adquirente (participens fraudis), pois se entende que, "uma vez expropriado o bem, e obtida uma quantia em dinheiro superior ao crédito exeqüendo, o saldo restante deva reverter para o adquirente do bem, e não para o devedor que o alienara fraudulentamente." (CÂMARA, 2004, p. 214).
Ora, se o terceiro adquirente se tornará, posteriormente, um credor do devedor-alienante, por que não resguardar parte de seus direitos, desde já?
Com efeito, a teoria da anulabilidade não é justa, haja vista que, no exemplo acima, prega que seja o valor restituído ao devedor-alienante, fato este que dificultaria, ainda mais, a efetividade do direito regressivo do terceiro-adquirente em face do devedor-alienante-fraudador, o qual teria nessa "brecha legal" um verdadeiro incentivo a dar continuidade à perpetração de fraudes – um verdadeiro privilégio a quem age de má-fé!
A nosso viso e a título de arremate, temos que sempre se deve privilegiar a interpretação do Código Civil que vá ao encontro dos princípios constitucionais, norteadores, portanto, de todo o sistema jurídico. Daí que, numa interpretação constitucional do problema, a teoria da ineficácia relativa se nos afigura a mais adequada aos princípios da boa-fé (implícito na CF/88), da função social da propriedade (art. 5º, XXIII e art. 170, III, ambos da CF/88), bem como da solidariedade social (art. 3º, III, CF/88).
Quanto à boa-fé, importante destacar que não há como vislumbrar, salvo ad absurdum, a existência de uma sociedade, cujo ordenamento jurídico não contemple, de alguma forma, o princípio da boa-fé, nesse sentido:
"Afirmar o acolhimento, por um ordenamento jurídico específico, do princípio da boa-fé, é afirmar que, a partir da interpretação de seus dispositivos, pode-se haurir a valorização das condutas de boa-fé, em detrimento das condutas opostas. Por via de conseqüência, afirmar o seu não acolhimento é defender que de nenhuma forma se pode extrair deste ordenamento a desvalorização das condutas maliciosas.
Não se trata de hipótese teoricamente impossível, mas tampouco se trata de hipótese razoável. Abstraídas as ilações ad absurdum, dissemos e repetimos que nunca houve qualquer ordenamento que não acolhesse o princípio da boa-fé. Por esta razão, nunca houve um ordenamento no qual os atos abusivos fossem atos lícitos." (JORDÃO: 2006, p. 105)
A teoria da ineficácia relativa privilegia a boa-fé, na medida em que, conforme já exposto, nos parece mais adequada para desestimular a prática de atos em fraude pauliana, pois evita a possibilidade de, eventualmente, o devedor-alienante-fraudador se locupletar à custa do terceiro-adquirente.
Noutro giro, considerando que uma das funções da propriedade é servir de garantia ao pagamento das dívidas de seu titular, a teoria da ineficácia relativa, ao impedir que o bem alienado volte in totum ao patrimônio do devedor-alienante-fraudador, já reduz o débito deste para com o terceiro-adquirente.
Por fim, a solidariedade social impõe que se adote uma interpretação mais adequada a resguardar os interesses da maioria dos membros da sociedade. Se a anulabilidade resguarda os interesses dos credores, consoante doutrina Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, a teoria da ineficácia relativa, por seu turno, além de resguardar os interesses dos credores, eventualmente, estará acautelando, também, interesses do terceiro-adquirente, sem prejuízo dos interesses daqueles.