I – Introdução
O instituto do precatório tornou-se, nos últimos anos, um dos problemas mais complexos para as finanças públicas. Diversos fatores como o desequilíbrio fiscal e financeiro da maioria dos estados e municípios, a ineficiência administrativa na gestão de recursos e a criação de normas e práticas voltadas à responsabilidade fiscal contribuíram para a crescente acumulação de títulos executivos judiciais pendentes de pagamento pelo Poder Público. Recente pesquisa desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal mostra que o total de precatórios não pagos alcança, atualmente, o montante de R$ 61 bilhões. Deste total, quase três quartos referem-se a dívidas dos Estados.
Os precatórios são requisições judiciais de pagamentos devidos pelo Poder Público. Possuem, portanto, caráter obrigatório e vinculado, devendo ser cumpridos e regularmente quitados pelos entes devedores. Na lição do notável jurista H. L. MEIRELLES (1977), nos termos da Constituição Federal, "o não cumprimento dessa requisição autoriza o seqüestro da quantia necessária, depois de ouvido o Chefe do Ministério Público e, se frustrada essa providência, caso será de intervenção federal na entidade devedora, por descumprimento da ordem ou decisão judicial". Além disso, à luz do artigo 11, I e II da Lei 8.429/92, atos praticados pelo administrador público que visem a retardar ou impedir o cumprimento de requisição judicial no prazo legal podem constituir hipótese de improbidade administrativa, cujas penalidades incluem a perda de função pública e a suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos.
Apesar disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem, reiteradamente, adotado o entendimento de que a não observância do artigo 100, parágrafo 1º da Constituição Federal, por si só, não configura descumprimento da ordem judicial, capaz de ensejar intervenção federal num determinado estado ou intervenção estadual num município. Para a Corte Suprema, um dos pressupostos para a intervenção de um ente federativo em outro ente político da Federação é que o ato de descumprimento da decisão transitada em julgado seja voluntário e intencional. Assim, a postergação do pagamento de precatórios em virtude de insuficiência de recursos ensejaria, com base no atual posicionamento do STF, a exclusão do elemento volitivo, pois seria uma espécie de inadimplência involuntária. Tal flexibilidade atribuída ao Poder Público, naturalmente, fez com que o pagamento de precatórios por entes estatais fosse postergado de forma tempestiva por longos prazos, gerando um aumento significativo da dívida da Fazenda Pública.
Uma recente Proposta de Emenda à Constituição (PEC no 12/2006) visa equacionar o problema de pagamento de precatórios, através da criação de um regime especial que inclui, dentre outros mecanismos, leilões de deságio e compensação prévia de débitos inscritos em dívida ativa. A aprovação da PEC poderá significar uma solução definitiva para uma das maiores questões relativas a Finanças Públicas no país. Se aprovada a emenda constitucional, a maior parte dos precatórios pendentes de pagamento poderá ser quitada num prazo de aproximadamente 13 anos – período relativamente "curto", quando comparado com a prática de alguns estados e municípios, os quais não registram pagamento de um único precatório há mais de 20 anos.
II – O atual regime jurídico dos precatórios
Precatório é a requisição de pagamento feita pelo Presidente do Tribunal, que proferiu decisão contra Fazenda Pública, por conta da dotação consignada diretamente ao Poder Judiciário (ROSA JUNIOR, 2002). São ordens judiciais para que a União, estados e municípios paguem indenizações judiciais para pessoas físicas e jurídicas. Com base no ensinamento do professor CONSOLARO (2004), o termo precatório é uma palavra cognata de precaver, precaução. A acepção da palavra está baseada no fato de a Fazenda Pública não estar obrigada a submeter seus bens à satisfação imediata de decisão exeqüenda em face de condenação do Estado. Não seria prudente nem razoável a execução forçada contra o Poder Público, tendo em vista os princípios da supremacia e indisponibilidade do interesse público, a moralidade, os princípios orçamentários e de responsabilidade fiscal. Assim, o mecanismo procedimental dos precatórios exclui a hipótese de contingência judicial executiva de maneira inopinada em face da Fazenda Pública. A inexistência deste instituto ou de outro semelhante, certamente, implicaria num ambiente instável que prejudicaria o planejamento fiscal e financeiro do Estado.
O precatório é um instituto com previsão constitucional, cuja satisfação é vinculada e obrigatória. O artigo 100 da Constituição Federal determina que os pagamentos de precatórios devam seguir a ordem cronológica de suas apresentações, vedando a abertura de créditos adicionais suplementares para este fim. Há uma ressalva constitucional que se refere, apenas, aos casos de créditos de natureza alimentícia, os quais podem ser pagos imediatamente, respeitando-se as possibilidades da Fazenda Pública. Assim, há duas filas de precatórios: uma fila genérica e uma fila específica de precatórios de natureza alimentar.
"Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim."
O pagamento de precatórios segue rito processual específico. Havendo decisão condenatória em face da Fazenda Pública, com fixação de indenização líquida e certa, o Presidente do Tribunal que proferiu a decisão deve emitir uma requisição do pagamento devido pelo ente estatal, nos termos dos artigos 730 e 731 do Código de Processo Civil. O parágrafo 1º, do artigo 100 da Constituição Federal determina que o precatório apresentado até o dia 1º de julho de determinado ano deve ter o seu valor incluído no orçamento do exercício seguinte, para pagamento atualizado até o final desse exercício, observando-se a ordem cronológica de sua apresentação.
"§ 1º. É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente."
Contudo, caso o precatório seja apresentado a partir do dia 2 de julho de um determinado ano, sua respectiva verba não será incluída no orçamento do ano seguinte, mas somente no orçamento do ano subseqüente a este, devendo ser pago até o final do respectivo exercício fiscal, devidamente atualizado. Além disso, os precatórios não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites de endividamento dos entes da Federação, impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Artigo 30, parágrafo 7º da Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000).
A análise literal do referido dispositivo constitucional levaria o intérprete à conclusão de que o prazo máximo para o pagamento de qualquer precatório seria de dois anos e meio – caso em que a apresentação do precatório tenha ocorrido em 2 de julho do ano de início do respectivo prazo. E mais, por se tratar de ordem judicial, seu descumprimento poderia sujeitar o infrator às hipóteses de intervenção política previstas no artigo 34, inciso VI e no artigo 35, inciso IV da Constituição Federal.
Entretanto, não é esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal. A jurisprudência atual do Pretório Excelso é no sentido de que somente o caso de violação do pagamento na ordem cronológica de apresentação dos precatórios é que configuraria hipótese de descumprimento de ordem judicial, que, por conseguinte, autorizaria a intervenção federal no estado-membro ou a intervenção estadual no município infrator, conforme decisão proferida no julgamento da Reclamação 2155/RJ, cuja ementa está transcrita abaixo.
"Reclamação ajuizada pelo Estado do Rio de Janeiro em que se postula a cassação de ordem de seqüestro determinada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região com o objetivo de ver cumprido precatório judicial. 2. Precatório derivado de reclamação trabalhista. 3. Cumprimento da ordem cronológica dos precatórios. 4. Interpretação do art. 100, § 2º, em combinação com o art. 78, § 4º, do ADCT. 5. Violação ao conteúdo da decisão liminar proferida na ADI 1662 (Rel. Min. Maurício Corrêa), em que o STF teria reconhecido que somente a hipótese de preterição no direito de precedência autoriza o seqüestro de recursos públicos, a ela não se equiparando as situações de não-inclusão da despesa no orçamento, de vencimento do prazo para quitação e qualquer outra espécie de pagamento inidôneo, casos em que ficaria configurado o descumprimento de ordem judicial, sujeitando o infrator à intervenção. 6. Reclamação julgada procedente."
(Rcl 2155 / RJ - RIO DE JANEIRO. RECLAMAÇÃO. Relator(a): Min. GILMAR MENDES. Julgamento: 02/09/2004. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 18-03-2005 PP-00048 EMENT VOL-02184-01 PP-00052).
Para o Supremo Tribunal Federal, a intenção inequívoca do não pagamento – ou seja, a voluntariedade – é pressuposto indispensável para o acolhimento do pedido de intervenção estatal. Assim, a inexistência de recursos suficientes para o pagamento dos precatórios e a difícil situação financeira de diversos entes federativos têm funcionado como "fator excludente" do elemento volitivo relativo ao não pagamento, justificando a postergação da quitação dos débitos de precatórios por períodos indefinidos.
A melhor doutrina critica esse entendimento jurisprudencial. A prática administrativa coloca o credor de condenação judicial do Poder Público em posição de extrema desvantagem. Neste sentido, são oportunas as considerações do ilustre administrativista Celso Antônio Bandeira de MELLO (2005).
"Acresce que o Poder Público freqüentemente nem ao menos obedece a esta exigência constitucional. Deixa ultrapassar os prazos sem lhes dar atendimento. É claro que seria caso de intervenção federal nos Estados, estadual nos Municípios (a teor dos arts. 34, V, "a", ou 35, I), ou impeachment do Presidente da República (art. 85, VII). Só que nada disso acontece. Há centenas de pedidos de intervenção federal em Estados e Municípios, sem que sejam atendidos. Com isto, a responsabilidade do Estado no âmbito de inúmeros Estados e Municípios possui um induvidoso caráter de ‘ficção’. Ou seja: sua existência em muitas partes do País tem uma realidade próxima àquela que se supõe seja a de um saci, de uma iara, de um gnomo ou de uma fada. Sem embargo, as pessoas do mundo jurídico escrevem sobre o tema – como eu mesmo venho fazendo – tal como se estivessem perante uma realidade. Se alguém duvida desta assertiva, basta verificar a documentação existente na Comissão de Precatórios da OAB de São Paulo, ou da Bahia, ou de Santa Catarina, ou do Rio Grande do Sul, para tomar apenas alguns exemplos. Precatórios trabalhistas do Ceará não são pagos há 20 anos."
Neste contexto, surge uma questão fundamental: quem define as possibilidades do Estado é o próprio Estado. Dessa forma, se não há critérios objetivos, procedimentos e métodos financeiros para o efetivo pagamento e amortização do montante da dívida de precatórios pela Fazenda Pública, dificilmente, esses pagamentos serão realizados, de forma regular e contínua, por todos os entes federativos.
III – Considerações sobre o novo modelo apresentado na PEC no 12/2006
No início do mês de março de 2006, governadores e prefeitos finalizaram a discussão prévia sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC no 12/2006), que visa instituir um regime especial de pagamento de precatórios pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Essa PEC resultou do anteprojeto elaborado pelo Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, que, após várias consultas às lideranças do Congresso Nacional, entregou a sugestão ao Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, na abertura da sessão legislativa do referido ano.
Se for aprovada, a emenda constitucional proposta acrescentará o parágrafo 7º ao artigo 100 da Constituição Federal e o artigo 95 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), instituindo um regime especial de pagamento de precatórios pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Caso o novo regime venha a ser instituído, o ente público (União, Estados, Distrito Federal ou Município) poderá optar pelo procedimento especial de pagamento de precatórios. A opção, de caráter irretratável, é de iniciativa privativa do Poder Executivo do respectivo ente federativo, consoante o texto proposto para o artigo 95 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
"Art. 95. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão optar, por ato do poder executivo, de forma irretratável, por regime especial de pagamento de precatórios relativos às suas administrações direta e indireta, a ser efetuado com recursos calculados com base na vinculação de percentual de suas despesas primárias líquidas, nos termos, condições e prazos definidos em lei federal."
Pela proposta, União e Estados deverão destinar o equivalente a 3% de suas despesas primárias líquidas do ano anterior para o pagamento de precatórios. No caso dos municípios, o índice a ser aplicado será, a princípio, de 1,5%.
"§ 1º. Os recursos aplicados no pagamento de precatórios serão equivalentes, no mínimo, a três por cento da despesa primária líquida do ano anterior para a União, os Estados e o Distrito Federal e um e meio por cento da despesa primária líquida do ano anterior para os Municípios."
A despesa primária líquida é definida como a diferença entre a despesa primária total (despesa total menos as despesas financeiras) e as despesas de transferências constitucionais.
Consoante o texto proposto para o parágrafo 1º do artigo 95 do ADCT, do total dos recursos incluídos no orçamento, 30% serão destinados ao pagamento à vista de precatórios de acordo com uma fila que terá como prioridade os precatórios de menor valor, independentemente da data de apresentação. A outra parcela de recursos, correspondente a 70% da verba vinculada ao pagamento de precatórios, será destinada ao pagamento de dívidas judiciais após leilões, nos quais União, Estados e prefeituras se beneficiarão de deságios oferecidos pelos credores.
"§ 4º. Os recursos de que trata o § 1º serão distribuídos da seguinte forma:
I - setenta por cento serão destinados para leilões de pagamento à vista de precatórios; e
II - trinta por cento serão destinados para o pagamento dos precatórios não quitados por meio de leilão de que trata o inciso I.
§ 5º. O leilão de que trata o § 4º, inciso I, ocorrerá por meio de oferta pública a todos os credores de precatórios habilitados pelo respectivo Ente da Federação."
Assim, quem tiver um precatório vencido e não pago poderá participar desses leilões, sendo que aqueles que oferecerem maior desconto (deságio) terão prioridade de pagamento. Contudo, somente poderão participar dos leilões os credores cujos precatórios não estejam pendentes de recurso judicial ou impugnação de qualquer natureza.
"§ 6º. A habilitação somente ocorrerá para os precatórios em relação aos quais não esteja pendente, no âmbito do Poder Judiciário, recurso ou impugnação de qualquer natureza."
A opção dos credores pela adesão ao novo regime poderá ser feita em até 180 dias contados da publicação de lei que regulamentará o novo regime. Da mesma forma que a opção do ente estatal pelo regime, a adesão do credor ao novo sistema, uma vez realizada, será irretratável.
Após a adesão ao novo regime, os credores de precatórios pendentes de pagamento seriam chamados a participar dos leilões previstos no texto da proposta (inciso I, do parágrafo 4º, do artigo 95 do ADCT), através da oferta de descontos (deságios) nos valores de face dos precatórios. Quem oferecesse maior desconto receberia seus créditos antecipadamente. Os casos de empate seriam decididos pelo critério de antigüidade (em benefício dos créditos mais antigos). As ofertas apresentadas nos leilões não vinculariam o poder público, o qual poderia rejeitar, total ou parcialmente, as propostas de desconto ofertadas.
"§ 7º. Na hipótese do § 4º, inciso II, a ordem de pagamento respeitará os seguintes critérios:
I - ordem crescente dos valores atualizados, devidos a cada credor dos precatórios, sendo quitados, sempre com prioridade, os de menor valor, independentemente da data de apresentação; e
II - no caso de identidade de valores, a preferência será dada ao credor do precatório mais antigo."
Além disso, caso o credor dos precatórios que venha a aderir ao novo modelo de pagamento tenha débitos inscritos em dívida ativa, os pagamentos de precatórios somente serão realizados após prévia compensação de valores. Desse modo, a quitação, pelo regime especial, será pelo valor da diferença entre o valor dos precatórios e a dívida do credor com a fazenda pública do ente respectivo, consoante a proposta de inclusão do parágrafo 7º ao artigo 100 da Constituição Federal.
"§ 7º. Os pagamentos de precatórios somente ocorrerão após prévia compensação de valores nas hipóteses em que o credor originário possuir débitos inscritos em dívida ativa da respectiva Fazenda Pública:
I - com execução fiscal não embargada; ou
II - com trânsito em julgado de sentença favorável à Fazenda Pública em embargos à execução fiscal."
Dispositivo interessante é o que está contido no texto do parágrafo 13 da proposta do artigo 95 do ADCT, o qual admite o desmembramento de precatórios por credor participante dos leilões. Assim, havendo precatórios com mais de um credor, cada um deles poderia habilitar-se individualmente, oferecendo deságios diferentes de acordo com seu interesse. Nessa hipótese, em consonância com a inteligência do dispositivo, o parágrafo 14 do artigo proposto limita a dispensa prevista no parágrafo 13 do artigo 100 da Constituição Federal, que exclui do âmbito do procedimento de precatórios as dívidas definidas em lei como de pequeno valor. De outro modo, a prática de "retalhamento" da dívida em parcelas legalmente previstas como de pequeno valor poderia desvirtuar o objetivo da norma.
"§ 13. Para os fins do regime especial de pagamento, será considerado o valor do precatório, admitido o desmembramento por credor.
§ 14. No caso de desmembramento do precatório conforme previsto no § 13, não se aplica aos valores por credor o art. 100, § 3º, da Constituição."
O pagamento de títulos pelo valor de face obedeceria ao critério dos menores valores em primeiro lugar, e não mais pelo critério de antigüidade, como ocorre atualmente. Ao final do ano civil, os valores restantes, após a realização dos leilões, seriam destinados ao pagamento de precatórios não quitados via leilão.
Com relação à correção monetária, a proposta de emenda constitucional altera também à forma de atualização dos precatórios vencidos e não pagos. Os precatórios pendentes de pagamento seriam corrigidos, a partir da data de promulgação da emenda, pelo IPCA, acrescido de juros de 6% ao ano. Seria também excluída a incidência de juros compensatórios, uma mudança significativa em benefício do ente que opta pelo novo regime.
Outros benefícios jurídicos atribuídos ao ente federativo que adotar o novo regime referem-se à expressa suspensão dos efeitos de decisões judiciais que impliquem seqüestro financeiro de recursos da Fazenda Pública e o afastamento temporário da aplicação dos dispositivos que autorizam intervenção federal no caso de descumprimento de requisição judicial, enquanto o ente federativo estiver cumprindo com a agenda de pagamentos imposta pelo novel procedimento. Oportuna crítica deve ser feita à redação proposta para o parágrafo 9º do artigo 95 do ADCT, cujo texto está transcrito a seguir.
"§ 9º. A opção do Ente da Federação pelo regime especial de pagamento de precatórios prevista no caput deste artigo afasta, transitoriamente, enquanto estiver sendo cumprida a vinculação de recursos, a incidência dos arts. 34, VI; 36, II; 100, caput, §§ 1º, 1º-A, 2º, 4º e 5º da Constituição, bem como o art. 78 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, inclusive quanto a seqüestros financeiros já requisitados ou determinados na data da opção."
Note-se que o texto proposto, se interpretado literalmente, afasta a incidência dos artigos 34, VI e 36, II da Constituição de forma genérica, não relacionando a referida suspensão da norma constitucional ao contexto dos precatórios. Ou seja, a exegese do texto proposto pode levar o intérprete à absurda conclusão de que a opção pelo novo regime de pagamento de precatórios e seu cumprimento regular afastaria a possibilidade de aplicação dos artigos 36, VI e 35, II da Constituição Federal, tornando o ente federativo, temporariamente, imune à intervenção estatal. É óbvio que não é este o sentido do texto de lege ferenda, o qual deve ser interpretado sistematicamente conforme a Constituição: a opção e o cumprimento das regras impostas pelo novo regime de pagamento de precatórios afastam a hipótese de intervenção federal, exclusivamente, em relação ao descumprimento de ordem ou decisão judicial relativa às obrigações de pagamento da dívida com precatórios.
Adicionalmente, a PEC contém sanções aplicáveis ao Poder Público em caso de descumprimento das regras de pagamento de precatórios pelo novo regime. Ocorrendo a opção pelo novo procedimento, a não liberação tempestiva dos recursos previstos ensejará o seqüestro por ordem do Presidente do Tribunal de Justiça local ou, no caso da União, do Presidente do Superior Tribunal de Justiça, até o limite do valor não liberado, caso em que o Chefe do Poder Executivo responderá por crime de responsabilidade.
"§ 11. No caso de opção pelo regime especial de pagamento e de não liberação tempestiva dos recursos, haverá o seqüestro por ordem do Presidente do Tribunal de Justiça local ou, no caso da União, do Presidente do Superior Tribunal de Justiça, até o limite do valor não liberado.
§ 12. Na hipótese do § 11, o Chefe do Poder Executivo responderá por crime de responsabilidade."
Este dispositivo tem o objetivo expresso de garantir a efetividade da norma. Contudo, ante a prática jurisprudencial atual, fica a dúvida sobre qual o tratamento que será realmente dado aos casos de violação das regras de pagamento de precatórios. Outra questão ainda mais importante é definir qual o tratamento jurídico que será aplicado aos entes federativos que não aderirem ao novo regime.
Finalmente, deve-se ressaltar que o regime especial de pagamento de precatórios será transitório e vigorará enquanto o valor dos precatórios devidos e não pagos for superior ao valor dos recursos vinculados para a quitação das dívidas pendentes. Isso significa dizer que, após a amortização da dívida de precatórios por um determinado ente federativo a níveis inferiores ao total da verba orçamentária destinada para este fim, o respectivo ente da Federação voltaria a observar o regime geral previsto no artigo 100 da Constituição Federal.
IV – Considerações finais
É evidente a limitada eficácia social das normas relativas ao pagamento de precatórios nas diversas unidades que compõem a Federação. O modelo atual, aparentemente, beneficia o Poder Público, ao mantê-lo quase que intocável e imune em relação à constrição judicial de seus recursos financeiros. A vantagem é aparente, porque ao induzir a postergação natural e tempestiva dos pagamentos dos precatórios por vários anos, o volume da dívida dos Estados e Municípios cresceu a níveis expressivos, dezenas de vezes superiores aos seus respectivos níveis de receita líquida orçamentária.
Os Estados destinam aproximadamente 0,5% da receita corrente líquida para o pagamento de precatórios. Outrossim, os Estados têm apresentado precatórios num montante aproximado anual de R$ 3,2 bilhões (cerca de 2% da receita corrente líquida anual dos Estados). Como o fluxo anual de precatórios é superior ao total de precatórios pagos anualmente pelos Estados, a situação só tende a se agravar em longo prazo, aumentando cada vez mais o saldo passivo de precatórios pendentes.
Contudo, os maiores prejudicados com a situação são os credores de condenações judiciais do Poder Público, os quais se encontram em posição de ampla desvantagem perante a realidade de um modelo jurídico formalmente estruturado para ser efetivo, mas manifestamente desvirtuado em prejuízo da sociedade.
Não se trata de colocar o interesse privado acima do interesse público. Na verdade, o que se faz necessário é a criação de um sistema de adimplemento de precatórios que possibilite, ao mesmo tempo: (i) a efetivação da tutela jurisdicional em face de conduta estatal que resulte em dano indenizável ao particular; (ii) a integridade financeira e das unidades federativas e a manutenção do equilíbrio das finanças públicas com sólidos fundamentos de responsabilidade fiscal.
Neste contexto, a inclusão da PEC no 12/2006 na pauta de discussão e avaliação do Senado Federal é um passo importante para uma mudança positiva no sistema de pagamento de precatórios. A possível aprovação da referida proposta de emenda constitucional poderá significar uma solução definitiva, para um problema de alta complexidade e de difícil solução, em razão dos diversos interesses antagônicos envolvidos.
Deve-se frisar, entretanto que a inteligência da norma de lege ferenda – sua objetividade e adequação – não garantirá, por si só, o alcance material desejado pelo legislador. Mesmo com a aprovação da PEC, a eficácia social dos dispositivos normativos a serem introduzidos no ordenamento jurídico dependerá da atuação de toda a sociedade no sentido de fazer valer a voluntas legis.
A PEC no 12/2006 contém idéias inovadoras e tecnicamente plausíveis, mas a eficácia social de um novo procedimento para o sistema de precatórios somente poderá ser avaliada na prática. O sucesso do novo modelo será alcançado através das ações materiais de todos que compõem a sociedade: administradores públicos, particulares, magistrados, advogados, membros do Ministério Público e do Tribunal de Contas. Cabe a todos dar credibilidade à norma e garantir a integridade do ordenamento, para que o sistema de pagamento de precatórios funcione efetivamente. Assim, a tutela jurisdicional dos direitos dos particulares em face da responsabilidade do Estado deixará de ter um induvidoso caráter de "ficção", produzindo efeitos no mundo real, como deve ocorrer num Estado Democrático de Direito.
Referências Bibliográficas
CONSOLARO, Hélio. Por Trás das Letras – Seu portal de língua portuguesa na Internet, Araçatuba, São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2006.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 5ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 19ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro & direito tributário. 16ª edição. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.