Veremos que o país precisa, em regime de urgência-urgentíssima, de muita Retórica e que seja capaz de naufragar toda forma de demagogia – seja populista, seja alucinógena, de esquerda ou de direita, ou quer esteja no centro de nada. Chega de demagogia em forma de utopia ou de distopia.
Em primeiro lugar – e sem consultar Dicionário de Filosofia – pode-se dizer (concluir) que Retórica é (re)conhecimento e inteligência. Por conseguinte, estudando-se um pouco, vê-se que Retórica é Prudência. É claro que aí são outros 500 passos ou dias de formação. Porém, é preciso desde logo não se confundir Retórica com sofisma: um tipo de mentira contada em prosa de vernáculos de filosofia (minúscula, agora).
E como Retórica não é sinônimo de tripudiar sobre a realidade ou alguém, como menosprezo ou sarcasmo, veremos um pouco de Cícero – o notório senador romano celebrado, exatamente, em sua Retórica republicana. Afinal, a Retórica não-republicana não é confessável publicamente e muito menos ocuparia espaço nesse artigo. Então, já segue aí a terceira regra da Retórica: tem que ser pública.
A quarta regra, e que persegue nossa conclusão – especialmente para o pandemônio de 2020 – assegura que: podemos ensinar (e aprender) sobre a formação social do país, na pegada da Sociologia Clássica, debater O que é a Constituição e O que é (ou não) o Direito, ou a natureza da Política, do “fazer-se política”, para ficar nos temas que ocupam os jornais diários. Contudo, somente com quem sabe do que está falando, especialmente universitários. A prova disso é que Cícero recusaria drasticamente confundir-se Retórica com sofisma.
A última observação, que já é óbvia, mas que veremos em ação na sequência da narrativa, nos diz que a Retórica clareia o público, com convencimento a partir de dados e fatos demonstráveis, racionais, e que os indefesos caem vítimas apenas diante da Ideologia. Todavia, distinguir Retórica de Ideologia foi um esforço do Renascimento e não cabe no escorço deste texto. Enfim, cabe ainda explicar que Retórica vai em maiúsculo por que se referenda na República.
Cícero – a favor do Direito, em favor da República
Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.C.) apreciava os homens de virtù ou fundadores de Estado: dizia que estavam próximos da divindade. Também pensava que a felicidade estava na perfeita constituição política, isto é, na República organizada em que predominava a Justiça. Portanto, a sociabilidade e o governo não decorrem da “necessidade de sobrevivência”, mas sim do Zoon Politikón — de Aristóteles. O que nos exigiria, certamente, uma “autoridade inteligente” (e não autoritária).
De certo modo, como garantia de que a liberdade (“o mais doce dos bens”) fosse companheira da soberania popular, nesta que seria uma luta contra o despotismo e como máxima que definisse a República: o povo árbitro das leis, dos juízes, da paz e da guerra, do trabalho, da vida e da fortuna que regula a todos. Esta igualdade formal entre o povo é ainda mais necessária porque a dissensão nasce da profunda diferença — a igualdade, portanto, atuaria como controle e equilíbrio social: “Se não se admite a igualdade da fortuna; se a igualdade da inteligência é um mito, a igualdade dos direitos parece ao menos obrigatória entre os homens de uma mesma República. Que é, pois, o Estado, senão uma sociedade para o direito?” (Cícero, s.d, p. 44).
Diante dessa igualdade, vemos ainda que a verdadeira riqueza não é econômica, mas de todo modo, é preciso bem governar a República: não deixar à cólera, a soberania da alma. Como todos de seu tempo, Cícero reconhecia em Rômulo um homem de virtù (assim como Maquiavel): “Tu nos deste, só tu, a luz e a vida” (Cícero, s.d, p. 52). Nas pegadas de Rômulo, dizia que se deve proteger o Estado contra o “furor”, tal qual fizera Maquiavel citando Petrarca nas últimas linhas de O Príncipe: Vertù contra furore/Prenderà l’arme, e fia ‘l combatter corto (Maquiavel, 1979, p. 94): “O valor tomará armas contra o furor; que a luta se espraie bem depressa!”.
O orador romano ainda dizia que a grandeza de Rômulo esteve em sua sagacidade de saber governar amparado por um Conselho — teria sido um gênio ao escolher o local de fundação da cidade e o senado seria outra de suas fundações régias. No geral, como vimos, a aliança de prudência e clemência, apesar dos atos de força, é o que forma um homem de virtù. Cícero ainda nos deu como exemplo um verso de Ênio, como nova indicação da virtude formadora de Roma: “Se Roma existe, é por seus homens e seus hábitos” (Cícero, s.d, p. 111).
Este verso era um oráculo que representava o que Roma tinha de melhor: instituições antigas e firmes; “tradições venerandas”; heróis singulares (homens de virtù). Foi isto que manteve Roma por tanto tempo: “a força dos costumes”. Sua República era como uma obra de arte, sendo necessário restaurar para se manter — além de muito cuidado para que a penúria não arruinasse a todos: “Nossos vícios, e não outra causa, fizeram que, conservando o nome de República, a tenhamos já perdido por completo” (Cícero, s.d, pp. 111-113).
Portanto, trata-se de combater os vícios públicos a fim de restaurar a paz. Do mesmo modo que o agricultor conhece as sementes, também o Chefe de Estado deve estudar o direito, conhecer as leis e tudo o mais que incite à administração pública: “sem se separar do verdadeiro caminho que empreendeu”. Provém desse horror à desonra a verdadeira astúcia de governar” (Cícero, s.d, p. 114).
Em síntese, para Cícero, o Estado Republicano é uma “sociedade de homens formada pelo império do direito”. O homem deve ser a própria encarnação da virtude: “O homem está na alma, e não naquela figura que com o dedo se pode mostrar” (Cícero, s.d, p. 126). Para Cícero, a natureza prescreve ao homem a obrigação de considerar os interesses de seus semelhantes, pelo fato de serem humanos. Com a chegada da modernidade, entretanto, ocorreu uma naturalização da “violência política” e com esta uma dominação que nos trouxe paradoxos: em nome do poder, houve a imposição da desumanização. Isto teria levado, agora no século XX, Ortega y Gasset a dizer que “o tigre não se destigra, mas o homem se desumaniza”. A seguir apresentaremos algumas das manifestações contemporâneas da Razão de Estado, no Ocidente e no Oriente.
Já Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.), em Metamorfoses, narra histórias humanas como réplicas das dos Deuses, mas, sempre entrelaçadas, acabam numa dupla espiral: como se a metamorfose fosse a ação de duas forças recíprocas ou que, para cada ação, houvesse uma reação de igual ou superior intensidade. No “mito” de Ovídio, a metamorfose depende da interação entre sistemas: “Uma lei de máxima economia interna domina esse poema aparentemente voltado para o dispêndio desenfreado. É a economia própria das metamorfoses que pretende que as novas formas recuperem tanto quanto possível os materiais das velhas” (Calvino, 2007, p. 39). Como diria Lavoisier em 1789, “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
Além disso, o “mito” mantém a tensão inerente à metamorfose. O poema também é movimento, rapidez, um ritmo acelerado e, de certo modo, guarda a ideia de que a metamorfose é um instantâneo, que está no presente, sendo ela mesma o presente. Entretanto, Ovídio acaba exilado por Augusto, o deus mais próximo e executivo, e isto faz lembrar que os “mitos” anunciavam problemas da modernidade: metamorfoses; razão instrumental; tradição e renovação; oposição persistente entre reverência e relatividade.
O livro A arte da guerra de Sun Tzu (Sun Wu) é um exemplo singular, como poucos do período da história chinesa conhecida como “Estados Guerreiros da China”: um período de caos, horror e sangrentos e desoladores combates entre os muitos reinos chineses. O livro, escrito há 2.500 anos (entre 500 e 300 a.C.), é relativamente contemporâneo de Aristóteles e de Cícero. O que Sun Tzu escreve em termos de estratégia para milhares de soldados, guardadas as proporções, escreve o japonês Musashi Miyamoto, pensando na arte de lutar de apenas um guerreiro: o samurai. A arte da guerra, como ensinamento de prudência, não está em lições específicas, mas no todo — por isso, é preciso analisar o conjunto da obra e todas as partes que devem compor ações pendentes.
A prudência está no todo, mas só é visível nos detalhes. Governar é guerrear, muitas vezes consigo mesmo, para conter o ímpeto, a soberba, o excesso de confiança, o desejo descabido ou o maior dos abusos (de poder) que provocam tremendas injustiças: “O governo esclarecido situa seus planos muito à frente; o bom general melhora seus recursos” (Sun Tzu, 2002, p. 102). Com esta “sabedoria”, o governante sabe que o objetivo da “arte da guerra” é manter a paz: “Por isso, o governante inteligente deve estar atento e o bom general muito cuidadoso. Esta é a forma de manter um país em paz e um exército intacto” (Sun Tzu, 2002, p. 103).
Sun Tzu também é frequentemente comparado a Maquiavel e Clausewitz, mas é preciso saber que recomendava ética, ponderação e mediação no uso dos meios da política e da violência (guerra). Tanto quanto Cícero, fazia da Retórica uma defesa da coisa pública – há um outro Maquiavel nessa tangente também e que, infelizmente, extrapola o esforço desse texto.
Abaixo segue uma bibliografia básica acerca desta Retórica que não é sofisma.
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