O controle dos atos da Administração Pública em tempos de pandemia diante da supremacia do direito à vida

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Apontamentos sobre os desafios causados pela pandemia na administração pública e, consequentemente, no exercício do controle dos atos administrativos, tanto pelos tribunais de contas como pelo poder judiciário, diante supremacia do direito à vida.

As consequências nefastas da situação de pandemia do coronavírus, que tem gerado expressivo temor em todo o mundo, também afeta sobremaneira a atuação da administração pública e impulsiona os órgãos controladores, seja do âmbito jurisdicional, seja do controle externo, a adotar uma forma peculiar de exercer seu ofício.

No dia 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde – OMS declarou a ocorrência de surto do “coronavírus” (2019-nCoV), configurando-se, assim, estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). Posteriormente, no dia 11 de março, a OMS decretou a condição pandemia, ante a elevação do estado de contaminação.

Em meados de março, a situação se intensificou no Brasil, ocasionando circunstâncias emergenciais que requereram medidas de idêntico teor, por parte das autoridades públicas, bem como ajustes daquelas já praticadas e nesse interregno houve a publicação do decreto legislativo nº 6/2020, por meio do qual fora reconhecido o estado de calamidade pública, em âmbito nacional, em razão da pandemia do coronavírus.

Nesse contexto, foi publicada lei federal nº 13.979/2020, de caráter temporário que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, bem como a Medida Provisória nº 922, de 28 de fevereiro de 2020 e a Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020, por meio das quais foram realizadas alterações daquela lei, outrossim, foram editados o Decreto nº 10. 282, de 20 de março de 2020 e o Decreto nº 10.329, de 28 de abril de 2020, ambos versando sobre a definição dos serviços públicos e as atividades essenciais, para fins de aplicação da mencionada lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, bem como a Portaria nº 356, de 11 de março de 2020, do Ministério da Saúde, a qual dispôs sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na norma legal em referência.

Como é cediço, as normas acima elencadas são de abrangência nacional e, nesse particular, ressalte-se que a lei nº 13.979/2020 tem aplicação no âmbito dos estados, do distrito federal e dos municípios, já que, no tocante às contratações, constitui-se como norma geral de licitações e contratos públicos, consoante previsão do artigo 22, XXVII, da Constituição Federal, ao passo que confere aos legisladores locais o poder de regulamentá-la, conforme permissivo do artigo 24, XI, em conjunto com o artigo 30 da norma constitucional. O que não há de configurar uma “carta branca” para os gestores e nisto reside a necessidade de especial atenção dos órgãos controladores, seja em âmbito administrativo ou jurisdicional, do país afora, a fim de se imprimir ponderação nesse poder regulamentar, que só há de ser exercido em meio à expressa e comprovada realidade que o justifique, máxime pelo fato de a lei federal em comento deter a característica de autoaplicabilidade.

Essa nova realidade social gerou significativas modificações no comportamento do administrador público, abrindo para este um campo de permissibilidade, que pode ser de fácil condução ou, do contrário, configurar uma tormenta a ponto de gerar resultados nefastos, ao tempo em que tende a despertar nos órgãos de controle mais acuidade no exercício do seu mister.

Tais mudanças, engendradas numa expressiva quebra de paradigma, vão de redução de prazos a modificações de interpretação normativa e a título de exemplo, tem-se: (1) a possibilidade de contratações diretas e simplificadas (2), possibilidade de contratação de empresa inidônea, bem como (3) flexibilização na exigência de documentos de habilitação no processo licitatório, em caso de restrição de fornecedores, (4) contratação de bens e serviços por valores superiores aos estimados, (5) abrangência na aquisição de bens e na contratação de serviços, a fim de não se limitarem a equipamentos novos, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e funcionamento, (6) permissibilidade de simplificação de termo de referência ou de projeto básico, bem como (7) restrição da exigibilidade do gerenciamento de riscos durante a respectiva gestão contratual, (8) mudança no parâmetro de alteração unilateral dos contratos, outrossim, (9) dispensa da realização da audiência pública a que se refere o art. 39 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 (10) fixação do efeito devolutivo nos recursos, (11) permissividade de realização de receitas em descumprimento das metas fiscais, enquanto durar a declarada situação de calamidade, pela respectiva municipalidade e, consequentemente, a (12) desobrigação provisória desses entes de realizar a limitação de empenho, nos termos do artigo 9.º da LRF.

Partindo-se da inafastável premissa constitucional da análise do contexto normativo instalado no período da pandemia, cumpre asseverar que as medidas adotadas pelos três poderes no território nacional se constituem, em tese, legitimadas pelos imperativos do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, invocado, pois, visando à proteção imediata ao direito à saúde, conquista fundamental de segunda geração, devidamente elencado no artigo 6º, da Constituição Federal e a consequente e profícua preservação ao direito à vida, este consignado como direito de primeira geração, consoante previsão do artigo 5º, da Constituição Federal.

A propósito, o direito à saúde se constitui como um consectário lógico da conquista dos direitos humanos, de acordo com a consagrada doutrina, que assinala:

Coaduna com esse entendimento, para ele, os direitos humanos são frutos do longo processo de evolução da atuação humana, […] E, os direitos sociais, são consagrados pela estreita ligação aos direitos humanos e a dignidade da pessoa humana, compreendidos como garantias alcançadas ao longo do tempo e da história, encartados em nossa Carta Maior1.

E, sendo a saúde um prenúncio/pressuposto indissociável da vida, insta reverberar este direito fundamental previsto no artigo 5º, da Constituição Federal: “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” . (sem realces no original).

Eis que a doutrina reafirma a importância do aludido direito ao pontuar:“O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos2.”

Na mesma linha: “O direito à vida é o bem mais relevante de todo ser humano e a dignidade da pessoa humana é um fundamento da República Federativa do Brasil e não há dignidade sem vida3”. (sem realces no original).

Seguindo tal perspectiva, convém atentar para os mandamentos constitucionais direcionados ao administrador público, este que, uma vez investido do mister e dentro de sua competência, assume a função de garantidor por excelência, dos direitos fundamentais, pois a si é que fora conferida a vontade geral e em quem se depositaram a confiança, a expectativa e a consequente responsabilidade de estabelecer, preservar e/ou manter a ordem, o bem-estar e a segurança, como valores supremos do grupo que representa e sobre essa vontade constitucional, a célebre doutrina assinala:

Aquilo que é identificado como vontade de Constituição ‘deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático’. Aquele, que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, ‘malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado4.

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos5.

Como é sabido, no ordenamento jurídico pátrio, é dado ao administrador utilizando-se do poder de polícia, limitar ou disciplinar direito, interesse ou liberdade, regular com a finalidade de resguardar os interesses da coletividade, constituídos, pois, pelos valores que mantém o bem-estar, a segurança e a ordem desta.

Sobre o assunto, o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello6 ensina que:

Quem exerce ‘função administrativa’ está adstrito a satisfazer interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das prerrogativas da Administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento dos interesses públicos; vale dizer, do povo, porquanto nos Estados Democráticos o poder emana do povo e em seu proveito terá de ser exercido. (sem realces no original).

A título de descrição, o artigo 78, do Código Tributário Nacional preceitua:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder. (sem realces no original).

Muito além das conjecturas populares de quaisquer dos “lados”, em meio à crise política que se instalou no país, os órgãos controladores da atuação da administração pública, hão de seguir parâmetros normativos de praxe e basear seu ofício, a depender das circunstâncias, em dados estatísticos imbuídos da devida fé pública, bem como da legitimidade das fontes. É exatamente com base nessa máxima, que convém observar, por exemplo, o contexto de uma decisão judicial que, atingindo, a rigor, a esfera da discricionariedade da administração pública, suspende ato emanado desta, o qual autorizava um relaxamento nas medidas de proteção dos administrados, previstas do artigo 2º, da lei nº 13.979/2020, desta feita com base em prospecção estatística, fornecida pela Organização Mundial de Saúde, acerca do número de mortes ocorridas em outro estado ou outra nação.

Essa seria a tônica do “vale-tudo” em defesa da vida, e isto não se afiguraria, sob a ótica da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sobretudo pelos indicativos do princípio da dignidade humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, um duelo com as tratativas voltadas para a preservação da economia, cujos efeitos não se nega que são devastadores, mas, sobreleva-se o dever do administrador de preservar o interesse público imediato, que no caso, é a vida humana, que se encontra constatadamente ameaçada muito mais pelo potencial letal de um vírus do que pelos inevitáveis resultados drásticos da paralisação da economia.

E visando ao combate a quesitos de improbidade, corrupção ou ilicitude de qualquer natureza, o órgão controlador, incumbido de sagaz incumbência, há de atentar para as questões postas nas entrelinhas das questões a si submetidas.

- Da logística de controle dos atos da administração pública

Eis que os preceitos lançados na lei nº 13.655, de 25 de abri de 2018 - que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro -, nunca foram tão oportunos, conferindo-se destaque à necessidade de comprovação de dolo ou erro grosseiro, à luz do artigo 28, dessa lei, cujo teor predica: “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.

Ora, como não poderia ser diferente nesse ambiente sociojurídico ímpar, o órgão de controle externo deverá atentar para uma séria de ponderações que o legislador infraconstitucional fixou ao alterar a LINDB. Leia-se:

Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.

Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

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§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.

§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato. (sem realces no original).

Entrementes, os tribunais de contas, inobstante em meio a esse singular ambiente sociojurídico, certamente não perderão de vista os imperativos do artigo 70, da Constituição Federal, os quais conferem ao gestor o ônus de provar, mediante a prestação de contas dos recursos públicos utilizados e demonstrar seu adequado uso.

A respeito, especificamente da atuação dos tribunais de contas, fora editada a Resolução Conjunta ATRICON/ABRACOM/AUDICON/CNPTC/IRB nº 1, de 27 de março de 2020, que em seu artigo 2º dispõe:

Art. 2º O desempenho dos papéis de fiscalização e controle deve ser continuado, adotando-se a cautela, a coerência e a adequação ao contexto da crise, preferencialmente de forma pedagógica, com a implementação, entre outras, das seguintes medidas:

[…]

VIII -resguardar a devida competência fiscalizatória de seus respectivos Tribunais,por meio das seguintes diretrizes:

a) fiscalizar contratações emergenciais que visam combater os efeitos do coronavírus, exercendo, prioritariamente, o controle concomitante, tendo seletividade e cuidadosa atenção para casos que exijam atuação prévia de controle, preservando, desta forma, a autonomia do gestor e a celeridade necessária à tais contratações;

b) adequar o modelo fiscalizatório de forma coerente à situação, e exercê-lo à distância, na medida do possível, sobretudo para que sejam evitadas situações de desconformidade ou desvio de finalidade das ações dos agentes públicos na aquisição de bens e serviços –licitações, dispensas e contratos, na execução de despesas e na realização de receitas […]

XI -ponderar sobre a possibilidade de interpretação das regras da Lei nº 8666/1973, no tocante às dispensas e compras coletivas, em consonância com o art. 22 da LINDB, resguardados os princípios gerais, em especial a razoabilidade e proporcionalidade, com o intuito de conferir segurança aos gestores; […]. (sem realces no original).

No mais, em virtude da superveniência de tal legalidade extraordinária, convém citar algumas das normas que foram afetadas, ainda que indiretamente, como a lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da administração pública (lei geral de licitações), a lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, que institui, no âmbito da união, estados, distrito federal e municípios, nos termos do art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços comuns (lei do pregão), lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (lei de contratação temporária), a lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, que cria o Programa de Parcerias de Investimentos - PPI (lei das PPIs), a lei complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal (LRF), a lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, a qual estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da união, dos estados, dos municípios e do distrito federal (lei geral de direito financeiro), a lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira (lei anticorrupção), a lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, a qual trata das sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional (lei de improbidade administrativa).

Consequentemente e perante a dinâmica ínsita ao sistema jurídico pátrio, outrossim, considerando um possível choque de valores, intentos e poderes envolvendo os assuntos relacionados à pandemia, decerto, diversos questionamentos e possíveis arguições de inconstitucionalidades devem ser lançadas sobre as novéis normas, como sucedeu em relação à MP 926/20, em face da qual fora proposta a ADI 6341, da relatoria do Ministro Marco Aurélio, que a medida “não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, Distrito Federal e municípios na área de saúde pública”. Observe-se trecho da decisão:

Há de ter-se a visão voltada ao coletivo, ou seja, à saúde pública, mostrando-se interessados todos os cidadãos. O artigo 3º, cabeça, remete às atribuições, das autoridades, quanto às medidas a serem implementadas. Não se pode ver transgressão a preceito da Constituição Federal. As providências não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior. (sem realces no original).

Já no tocante à incidência dos rigores da legalidade, no tempo da pandemia, o Ministro Relator assim se pronunciou:

O surgimento da pandemia de Covid representa uma condição superveniente absolutamente imprevisível e de consequências gravíssimas, que afetará, drasticamente, a execução orçamentária anteriormente planejada, exigindo atuação urgente, duradoura e coordenada de todos as autoridades, tornando, por óbvio, lógica e
juridicamente impossível o cumprimento de determinados requisitos legais compatíveis com momentos de normalidade. (sem destaques no original).

É e sob essa perspectiva que convém ao órgão controlador proceder a uma análise de cada caso, identificar eventuais problemas, promovendo uma espécie de diagnóstico, para se vislumbrarem possíveis soluções e isto concomitante à verificação de prováveis situações de violações normativas, como as corriqueiras menções à ocorrência de atos lesivos à administração pública, em tempo de pandemia.

Sucede que as reais dificuldades vivenciadas na atual gestão pública hão de ser consideradas, seja no controle externo, seja pelo controle jurisdicional, à luz do já mencionado artigo 22, da lei nº 13. 655, de 25 de abril de 2018, que dispõe: Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”. (sem realces no original).

Numa vertente, tem-se os tribunais contas, no exercício do controle externo da administração pública, cuja amplitude de atuação se logra expressiva, quando se trata do exercício da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nos termos dos artigos 70, caput, e 71 da Constituição Federal. Em paralelo, tem-se o ofício do Poder Judiciário que, guiado pelos princípios da inafastabilidade, bem como da inércia da jurisdição, por um lado, inevitavelmente aprecia o que lhe é submetido – decerto, observando-se os preceitos de harmonização dos poderes, ao passo que se restringe ao que lhe fora submetido

Pois, bem, na prática, é possível vislumbrar hipóteses nas quais os órgãos controladores exercitem, a depender de suas competências, ora um juízo de conformidade da atuação dos gestores, ora um controle de legalidade, ora uma recomendação, com a finalidade de retificação, ora medidas de caráter sancionatório ou pedagógico. O fato é que a palavra de ordem parece ser flexibilização e nessa tônica, afigura-se ainda mais desafiador o desempenho da atividade controladora.

A propósito, note-se o que restou consignado na exposição de motivos da MP nº 926/2020 (EMInº 00019/2020/MS/AGU/CC/PR/CGU), assinada pelo Presidente da República e subscrita pelos Ministros de Estado da Saúde, da Advocacia-Geral da União, da Casa Civil da Presidência da República e da Controladoria-Geral da União, diante do crescimento de casos no país de infecção pelo COVID-19 em meio à crescente demanda no uso do Sistema Único de Saúde (SUS), o que enseja o uso excessivo de leitos, equipamentos, medicamentos, estrutura física e serviços, em especial de saúde, “faz-se necessário prever especificidades para a licitação de tais aquisições (ou sua dispensa) de modo a atender a urgência que a situação requer e a flexibilizar requisitos, em face de possível restrição de fornecedores, otimizando, inclusive, a contratação ou prestação de serviços internacionais”. (sem realces no original)

Segundo os Ministros, “como a situação de emergência de saúde pública é temporária, ao invés de se propor a alteração de normas legais que tratam da licitação pública, optou-se por fazer alterações pontuais na Lei nº 13.979, de 2020, que justamente dispõe sobre as medidas de enfrentamento da emergência de saúde em questão e que tem prazo de vigência temporária”.

Outro reflexo dessa excepcional conjuntura normativa é a complacência na aplicação do artigo 10, da lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, especificamente no tocante ao dolo presumido, na medida em que dispensa de prova de prejuízo, em meio a uma hipótese de fraude à licitação. Observe-se o teor do referido artigo:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

[…]

Nessa dinâmica de adaptação, ainda que transitória, ao excepcional ambiente jurídico do Direito Administrativo, é imperioso que os controladores em potencial dos atos da administração pública desenvolvam técnicas de identificação de eventuais violações aos preceitos aplicáveis, máxime os consectários do princípio da moralidade, que tem gerado as mais variadas discussões nos meios de comunicação.

Note-se que a conduta proba se logra um referencial para a maioria dos atos de controle da administração pública, seja pelos tribunais de contas, seja pelo poder judiciário, e, decerto, não há de ser diferente nesse período de normatização excepcional, dada a imutabilidade de um valor jurídico por excelência, que é a moralidade. Sobre o assunto, a Professora Odete Medauar7 ensina: “a probidade administrativa, que há de caracterizar a conduta e os atos das autoridades e agentes públicos, aparecendo como dever, decorre do princípio da moralidade administrativa”.

Dai decorre a noção de que fatores como boa-fé e presunção relativa tem sido as bases para se admitir que o gestor aja em meio às obrigações de fazer, as quais restam consubstanciadas, sobretudo, no dever prover o direito dos administrados nessa realidade que envolve receio de responder aos reclamos sociais urgentes dentro das métricas da legalidade e diante da possibilidade de responder por improbidade em razão de omissão.

Por outro viés, não somente a perspicácia do controlador, atrelada aos instrumentos processuais aplicáveis conduzirá à perscrutação de eventuais atuações eivadas de improbidade, mas, também a invocação de parâmetros absolutos e invariáveis do ordenamento jurídico servirão como norte para o combate à ilicitude de modo geral. Por falar nisso, imagine como objeto de controle a recém-permitida contratação direta de profissionais da área de saúde pela administração pública, enquanto se encontra pendente de nomeação e posse uma lista de concursados, cuja discussão se encerrou mediante trânsito em julgado. Decerto, será a apreciação da casuística que permitirá identificar se há fundamento que suplante a conjugação de dois tão relevantes fatores, a saber, a conquista do direito dos candidatos somada à necessidade desses profissionais ante as questões urgentes inerentes ao período da pandemia.

Ainda sob essa dinâmica de aplicabilidade normativa do órgão controlador, convém atentar para a possibilidade de indevida utilização das medidas de enfrentamento da lei 13.979/2020 em relação aos contratos em curso, i.e., firmados antes da referida lei ou até de necessária flexibilização, com a finalidade de admitir, por exemplo, um termo aditivo contratual adequando-o ao contexto da referida lei.

Demais disso, em caso de decretação de estado de calamidade pública, consoante previsão do art. 65, I, LRF e enquanto se mantiver tal condição, haverá suspensão da contagem de prazo referente aos limites de despesa total com pessoa e da dívida consolidada em relação aos respectivos entes e, havendo necessidade de realizar despesas urgentes e sem previsão na lei orçamentária anual, o gestor poderá promover a abertura de créditos extraordinários visando à suplementação do seu orçamento, diante do já decretado estado de calamidade pública. Cabe, pois, o olhar atento do controlador, seja do judiciário, quando provocado, seja dos tribunais de contas, ao exercer seu ordinário ofício de fiscalizador das finanças públicas.

Para além, diante da crise instalada sobre a repartição de competências entre os entes da federação, a cooperação parece não ter logrado êxito e a discussão tem se encaminhado para a seara judicial e se afigura plausível, ainda que pelos respectivos órgãos controladores, a articulação de um diálogo, visando à constante especificação de circunstâncias, a fim de quando possível, encontrar um consenso.

Rememore-se quanto às contratações de bens e serviços, considerando que somente será permitido contratar de forma direta, em consonância com a MP 926/2020, pra fins de atendimento da situação emergencial, outrossim, que os preços praticados deverão, a princípio, ser compatíveis com a realidade de mercado, exceto quando houver notória escassez de determinados materiais ou por quaisquer outros fatores decorrentes da crise - , se faz necessário um planejamento para a sua atuação, desta feita, mediante um levantamento dos contratos em execução, a identificação dos objetos contratuais e verificar se dependem de insumos derivados de importação, os quais serão afetados em razão da paralisação da força de trabalho.

Ademais, convém observar uma série de fatores advindos deste novo universo sociojurídico, que vão além da aquisição de insumos, bens e serviços para fins de cuidados com a Covid19, consubstanciados, pois, na manutenção de serviços essenciais à população, tais como a logística de cuidados com os portadores de enfermidades especiais, que requeiram uso de medicamentos ou procedimentos hospitalares diários, bem como viabilização do abastecimento de alimentos das cidades, aquisição de equipamentos, dentre outras medidas que garantas a atuação da administração pública em sua inteireza durante a crise. Eis que deve fazer parte do contexto do órgão controlador adentrar, de alguma forma, nesse universo que lhe permita sopesar os fatos e encontrar a devida alternativa na conclusão do seu mister.

À luz do artigo 4º, B, da MP 926/2020, nas dispensas de licitação de que tratam a lei nº 13.979/2020, presumem-se atendidas as condições de (I) ocorrência de situação de emergência; (II) necessidade de pronto atendimento da situação de emergência; (III) existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e (IV) limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência. Nessa perspectiva e nos termos da Lei nº 13.979/2020, alterada pela Medida Provisória nº 926/2020, compete ao gestor apresentar justificativa sobre a pertinência, a proporcionalidade e a temporalidade da contratação, com a clara demonstração da finalidade pública de questões atreladas ao enfrentamento da pandemia.

Não há de se conceber generalidade na atuação do gestor, em tempo de pandemia, convém a este, pois, identificar, por exemplo, as licitações que aconteceriam, se, com a superveniência de tal realidade distinta se serão realmente necessárias neste momento, quais a licitações que podem esperar e as que não podem aguardar o tempo da pandemia, sempre com atenção ao equilíbrio financeiro. Outro aspecto deveras importante, o qual vem gerando bastante inquietação na municipalidade, é identificar as emergências de saúde que justificam a contratação direta, isto considerando o dever de motivação qualificada.

Por outro norte, nada impede que os tribunais de contas, no exercício do controle preventivo, orientem os gestores acerca de aspectos que poderiam desencadear dezenas de processos e, guiados pelo princípio da eficiência, facilitaria as atividades voltadas para a coletividade, ao tempo em que adiantariam, por vezes, etapas dos trabalhos por si desenvolvidos, como por exemplo, sugerir a ampliação da transparência, de modo a manter as informações disponíveis em seus portais, uma vez que as realizações de despesas baseadas no decreto de calamidade pública, podem dar ensejo a operações ilegítimas.

- Do exercício do poder de polícia

Em outra senda, há a previsão jurídica de adoção de outras medidas restritivas à autonomia privada e ao direito de liberdade dos administrados em benefício do bem-estar e da segurança da coletividade, com base no poder de polícia; tendo sido as mais comuns a requisição administrativa (art. 5º, XXV, da CF) e a vedação de circulação de transportes coletivos, públicos ou particulares; ao passo que se insere ainda no poder discricionário do administrador público a desapropriação por necessidade pública (art. 5º, XXIV, da CF e Decreto-Lei 3.365/41), bem como a interdição de estabelecimentos, o ingresso forçado em áreas públicas ou privadas, dentre outros.

Sucede que a Portaria 356/MS/2020 alerta nos seguintes moldes:

Art. 7º A medida de requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus Covid-19 será determinada pela autoridade competente da esfera administrativa correspondente, assegurado o direito à justa indenização.

Art. 10. Para a aplicação das medidas de isolamento e quarentena deverão ser observados os protocolos clínicos do coronavírus (COVID-19) e as diretrizes estabelecidas no Plano Nacional de Contingência Nacional para Infecção Humana novo Coronavírus (Convid-19), disponíveis no sítio eletrônico do Ministério da Saúde, com a finalidade de garantir a execução das medidas profiláticas e o tratamento necessário. (sem realces no original).

Seguindo essa diretriz, o governo do Estado de Alagoas, a exemplo de diversos estados da federação, cuja decretação de calamidade se deu mediante o Decreto nº 69.691, de 15 de abril de 2020, editou também o Decreto nº 69.501, de 13 de março de 2020, que assim dispõe:

Art. 2º Para o enfrentamento da emergência de saúde decorrente do COVID-19 (coronavírus) poderão ser adotadas as seguintes medidas:

I – isolamento;

II – quarentena;

III – exames médicos;

IV – testes laboratoriais;

V – coleta de amostras clínicas;

VI – vacinação e outras medidas profiláticas;

VII –tratamentos médicos específicos;

VIII –estudo ou investigação epidemiológica;

IX –exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; e

X –requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa .

Art. 3º

[...]

§ 1º A requisição administrativa, como hipótese de intervenção do Estado na propriedade, sempre fundamentada, deverá garantir ao particular o pagamento posterior de indenização com base na chamada “tabela SUS”, quando for o caso, e terá suas condições e requisitos definidos em atos infralegais emanados pela Secretaria de Estado da Saúde – SESAU, sendo certo, que seu período de vigência não pode exceder à duração da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do COVID-19 (coronavírus) declarada pela Organização Mundial de Saúde – OMS, e envolverá, em especial:


 

I – hospitais privados, independentemente da celebração de contratos administrativos; e


 

II – profissionais da saúde, hipótese que não acarretará na formação de vínculo estatutário ou empregatício com a Administração Pública Estadual.

§ 2º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública. (sem realces no original).

E, posteriormente, editou novo ato, o Decreto nº 69.722, de 4 de maio de 2020, desta feita, adotando medidas mais rígidas, nos seguintes moldes:

Art. 1º Em caráter excepcional, e por se fazer necessário a manutenção das medidas de restrição, previstas nos Decretos Estaduais nºs 69.529 e 69.530, ambos de 18 de março de 2020, em razão da situação de emergência declarada no Decreto Estadual nº 69.541, de 20 de março de 2020, fica suspenso, em território estadual, a partir da 0 (zero) hora do dia 06 de maio até as 23:59h do dia 20 de maio de 2020, podendo ser prorrogado ao final desse  período, o funcionamento de:

I – bares, restaurantes, lanchonetes e estabelecimentos congêneres;

II – museus, cinemas e outros equipamentos culturais, públicos e privados;

III – templos, igrejas e demais instituições religiosas, permitindo seu funcionamento interno;

IV – academias, clubes, centros de ginástica e estabelecimentos similares;

V – lojas ou estabelecimentos que pratiquem o comércio ou serviços de natureza privada;

VI – shoppings centers, galerias, centros comerciais e estabelecimentos congêneres, salvo supermercados, farmácias e locais que prestem serviços de saúde no interior dos referidos estabelecimentos; e

VII – eventos e exposições;

§ 1º No prazo a que se refere o caput deste artigo, também ficam vedadas ou interrompidas:

I – qualquer atividade de comércio nas ruas, praias, lagoas, rios e piscinas públicas, praças ou outros locais de uso coletivo e que promovam a aglomeração de pessoas, como bancas e barracas de vendas de alimentos, como churrasquinhos, nos logradouros públicos;

II – operação do serviço de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros, regular e complementar, bem como os serviços de receptivos;

III – operação do serviço de trens urbanos;

IV – o acesso as praias, ao calçadão das avenidas beira-mar, a beira rio, a lagoas e praças, para prática de qualquer atividade;

V – a permanência das pessoas em ruas e logradouros públicos (praças, alamedas, entre outros), para evitar aglomerações, nesse sentido devendo ser interrompidas reuniões para prática de quaisquer atividades sociais, esportivas ou culturais, ressalvando o direito de ir e vir da população, desde que estejam utilizando máscaras;

VI – o estacionamento de veículos nas ruas, faixas beira-mar, beira rio, lagoas e praças, ressalvando a situação das pessoas com residência em torno dos locais mencionados, além dos estabelecimentos que não estejam com seu funcionamento suspenso.

[…]. (sem destaques no original).

Como é sabido, o descumprimento das normas previstas tanto na lei federal em referência (artigo 3º, § 4º), como no decreto estadual configura infração, conforme descrito no teor do artigo 5º da Portaria n. 356, de 11 de março de 2020, do Ministério da Saúde, ao passo que se insere no tipo descrito no artigo 258, do Código Penal, que assim predica:

Art. 268. Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro. (sem realces no original).

Ao que tudo indica, máxime em caráter de presunção à luz dos preceitos aplicáveis sistemática jurídica nacional, o exercício desse poder de polícia, com a finalidade de garantir a saúde e, como consectário lógico, a vida embasa-se, em regra, em fontes científicas formalmente estabelecidas e/ou em parâmetros técnicos admitidos internacionalmente. Diga-se, no caso, as constatações publicadas pela Organização Mundial de Saúde – OMS, que nortearam os atos normativos dos países afora.

Pois bem, em meio a tantas presunções disseminadas em sucessivos disparos de algorítimos nas redes sociais, questiona-se se o poder público de determinada unidade da federação haveria se norteado conhecimento científico predominante ou se sugere a ocorrência de um novo momento de ascensão da medicina como instrumento político por excelência, como bem ressaltou o notável filósofo Michel Foucault8 , em sua obra “O Nascimento da Clínica”, cujo trecho ora se transcreve:

A ruptura que se processou no saber médico não é devida basicamente a um refinamento conceitual, nem a utilização de instrumentos técnicos mais potentes, mas a uma mudança ao nível de seus objetos, conceitos e métodos. O novo tipo de configuração que caracteriza a medicina moderna implica o surgimento de novas formas de conhecimento e novas praticas institucionais.

Eis que a vivência de um contexto social excepcionalíssimo enseja um tratamento jurídico igualmente singular, sobretudo quando se visualiza na comunidade científica – alicerce de qualquer debate - um estado de inquietude na incessante busca por metodologias que venham a minimizar os efeitos desse mal humanamente invisível e até então desconhecido.

E por falar em peculiaridade, não raras vezes, são noticiadas a descoberta de efeitos potencialmente curativos de medicamentos já consagrados no mercado, bem como criações de aparelhos ou adaptações de dispositivos que facilitam ou impulsionam a evolução do quadro clínico de pacientes e isto reflete no comportamento do gestor público e consequentemente do modo de atuar dos órgãos de controle.

Sucede que, por razões até então desconhecidas, o governo de pernambuco teria suspendido o uso da denominada “cápsula vanessa”, equipamento de ventilação não invasiva usado para tratamento de pacientes com Covid-19, em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em Recife9, técnica esta testada na frente de mais de trinta pessoas, que teriam testemunhado o sucesso na utilização do equipamento.

Dito isto, pairam incontáveis indagações em meio à constante luta pela sobrevivência e, para além dos debates suscitados por correntes filosóficas de quaisquer vertentes, o fato é que se os peritos em matéria de preservação da vida, se dedicam de forma quase que instintivamente e por metodologias aparentemente empíricas na busca de resultados que preservem a saúde, o bem-estar e garantam a continuidade da vida e os proclamam com êxitos comprovados, mediante corações que continuam a pulsar e sorrisos de esperança nos rostos dessas pessoas, redobra-se, assim, o nível de responsabilidade do gestor público a quem se logra subordinada tal circunstância e muito mais se exige do órgão controlador a quem eventualmente esta for submetida, pois terá que sopesar valores outros em detrimento (ou não) do bem maior, sem qual não há se falar em direitos, qual seja, a vida.

- Conclusão

No mais, o órgão controlador há de atuar em torno de algumas premissas, estas que podem ser, prioritariamente, lançadas por si para os administradores públicos ou, em segunda hipótese, simplesmente utilizadas como parâmetros no exercício de suas funções (julgadora, fiscalizadora, sancionatória ou pedagógica), podendo citar, no caso: primazia dos princípios constitucionais, com ênfase aos que regem diretamente a administração púbica, supremacia do interesse público da vida sobre valores particulares, eleição de prioridades a serem atendidas neste período de crise, análise da possibilidade de repactuações, revisões e aditamentos contratuais, dever de lealdade processual, consensualismo, busca da harmonia do sistema, tudo em consonância com a razão de ser do Estado de Democrático de Direito.

Por fim, essas contínuas e aceleradas mudanças de realidades, em dias de enfrentamento da pandemia, requerem, de um lado, lealdade, a boa-fé, o entendimento e probidade por parte do imediato aplicador do direito, no caso, o administrador público, e, do outro, a tolerância, a perspicácia, a ponderação e a mudança de interpretação quer seja pelos tribunais de contas, quer seja pelo poder judiciário, no controle da atividade pública.

1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3 ed. Coimbra: Almedina, 1998.

2MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional. 23ª Ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2013, p.163.

3RUSSO, Luciana. Direito Constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 91.

4 Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 135

5ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 11. ed.  São Paulo: Malheiros, 2010, p.183

6MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Direito Administrativo. 2012, p. 162.

7MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 20. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

8Primeira edição brasileira:1977 Traduzido de: Naissance de la Clinique. Contracapa. Ed. Forense Universitária; Rio de Janeiro: 1977.

9https://amazonasatual.com.br/governo-de-pernambuco-suspende-uso-de-capsula-vanessa-em-upa-de-recife/

Sobre o autor
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Mais informações

Advogada, especialista em Direito Público, assessora do Tribunal de Contas do Estado de Alagoas, membro do Comitê de Súmula, Jurisprudência e Processo do Instituto Rui Barbosa, membro da Comissão de Direito Administrativo do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

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