Teoria da rotulação: o aumento da criminalidade e a não ressocialização dos apenados à luz da teoria do labelling approach

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4. O DIREITO PENAL BRASILEIRO PUNE A TODOS QUE COMETEM INFRAÇÕES OU SOMENTE ALGUNS INDIVÍDUOS MENOS FAVORECIDOS E JÁ ROTULADOS?

A legislação pátria, por sua vez, mesmo que passando despercebido traz a influência da rotulação em alguns dispositivos penais, como, por exemplo, o art. 176. do Código Penal, que diz: “Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento: Pena - detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa”.

Ressalte-se que, a despeito da intenção de enganar do agente, caso este efetue o pagamento das despesas o crime não restará configurado. Assim, o artigo em comento favorece apenas àqueles que dispõem de recursos para custear suas despesas, mesmo que, incialmente, o agente tenha simulado não ter como arcar com o pagamento, com a nítida intenção de ludibriar.

Já o art. 16. do Código Penal, por sua vez, não é tão flexível, uma vez que, conquanto o bem seja de pequeno valor, e, além disso, o agente se arrependa e devolva o objeto, considerar-se-á tão somente como arrependimento posterior, o que redundará apenas em redução de 1/3 a 2/3 da pena, senão vejamos: “Art. 16. - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços”.

Ou seja, conforme as balizadas vozes defensoras da teoria da rotulação, não há dúvidas de que os rigores da lei penal são direcionados àqueles que não dispõem de recursos financeiros, ao passo que aos afortunados haverá sempre uma oportunidade de se eximir pelos atos criminosos por eles praticados, já que, no mínimo, a possibilidade de se fazer o ressarcimento está garantido.

A título de exemplo, imaginemos a situação de uma mulher que entra em uma loja de perfumes franceses e, após um vacilo de uma das vendedoras, subtrai para si um perfume, cometendo o crime de furto (CP, art. 155).

Analisemos duas hipóteses:

  • Primeira hipótese: suponhamos que a mulher é muito rica, a qual poderá argumentar que: i) está emocionalmente abalada e que por isso pegou o perfume (não tenho dúvidas de que o dono da loja acreditaria...); ii) esqueceu de pagar, mas tem dinheiro para comprar a loja inteirinha (afinal de contas, se ela é rica não precisa roubar).

  • Segunda hipótese: a mulher do caso narrado é muito pobre, mas, mesmo assim, decide usar os mesmos argumentos da mulher rica. Estes seriam críveis? Alguém acreditaria nela caso tentasse se justificar, dizendo que se esqueceu de pagar, por exemplo?

Do exemplo supramencionado infere-se que uma mesma conduta, conquanto abarcada pelo mesmo tipo penal, tem dois efeitos distintos, vale dizer, o rótulo de “criminosa” só alcançou uma das envolvidas na hipótese, ou seja, o efeito da norma penal dependerá do agente a ser por ela alcançado, ferindo de morte o princípio da igualdade.

Frise-se que o mesmo sistema que pune o traficante negro, pobre, morador de periferia, ou seja, que a estes rotula como criminosos, é também o que considera os traficantes de classe média e alta como sendo “vítimas das más influências”, e que, por isso mesmo, necessitam de todas as políticas necessárias à sua recuperação.

Não raras vezes a mídia contribui para a proliferação do “etiquetamento” de certos indivíduos, como, por exemplo, quando pessoas de diferentes classes sociais são presas praticando o mesmo delito. Explico: Um homem pobre é preso transportando dez quilos de maconha, fato que ao ser noticiado no jornal, provavelmente sairá da seguinte forma: “Traficante é preso transportando dez quilos de maconha”. De outro giro, se alguns rapazes de classe média alta forem flagrados com trezentos quilos da mesma droga, a notícia provavelmente será: “Jovens estudantes de classe média alta são flagrados com trezentos quilos de maconha”.

Quem sofreu o rótulo de “traficante”? Por acaso a lei prevê que somente será considerado traficante se o agente for pobre? – Claro que não!

Desta feita, há uma espécie de identificação deste sujeito naquele meio em que se encontra inserido, mas que de alguma forma chama atenção por um suposto comportamento que aquele grupo social já taxou como desviante.

Com efeito, para a teoria do labelling approach, essa construção de estereótipos consiste na rotulação que deve ser evitada, uma vez que determinados indivíduos (outsiders) são por ela predestinados a sofrer sanções, embora outros que pratiquem as mesmas condutas desviantes, não serão alcançados pelo jus puniendi do estado, o que conduzirá a um sistema penal falho, seletivo e excludente.


5. OS CRIMES DE COLARINHO BRANCO E A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL

Embora os crimes contra o patrimônio e contra a pessoa já sejam alvos do Direito Penal ao longo de toda a história, os crimes praticados por pessoas de alto status social, vale dizer, os “crimes de colarinho branco”, só encontraram tipificação no Brasil no decorrer do século XX. A denominação “criminalidade do colarinho branco” surgiu quando, em 1939, Edwin H. Sutherland publicou o artigo denominado “White-Collar Criminality” na American Sociological Review. A expressão “colarinho branco” refere-se à cor das camisas utilizadas por pessoas de alto status socioeconômico, cujo grupo social o sociólogo estadunidense vai se debruçar para estudar o fenômeno criminal.

Nas palavras do renomado sociólogo, ao ser citado por Israel Bresola Júnior (2018), “um crime cometido por uma pessoa de respeito e status social elevado no exercício de sua ocupação” (SUTHERLAND, 1983, p. 07). Por sua vez, para Ryanna Veras (2011, p. 42), “é a primeira teoria que, adotando uma perspectiva microssociológica, apresenta uma hipótese de explicação para o crime em sua totalidade, do ponto de vista da aprendizagem.”.

Sendo assim, para a autora a mencionada teoria inovou ao não se limitar em explicar a criminalidade das classes inferiores, mas também dos estratos mais ricos da sociedade, vale dizer, os crimes de “colarinho branco”.

Destarte, a teoria de Sutherland permite concluir que, embora o sistema punitivo de fato seja seletivo, punindo, em regra, as classes sociais inferiores, o delito não se limita a estas classes. A parcela favorecida da população comete crimes também em larga escala, por meio de um processo de aprendizado do crime semelhante ao da outra parte da sociedade, com a diferença de que a persecução penal não recai sobre a primeira, mas sim sobre a última (BRESOLA JÚNIOR, 2018).

Outrossim, a criminologia denuncia a seletividade do sistema punitivo no que concerne aos crimes de colarinho branco, tendo em vista sua morosidade em tipificar tais delitos praticados por aqueles que possuem status social privilegiado no âmbito de suas profissões.

A despeito disso, não é novidade para quem já estudou Criminologia, nos dias de hoje, que o sistema de justiça criminal é seletivo, isto é, a criminalização de condutas realizada pelo Poder Legislativo e a repressão às mesmas, feitas pelos órgãos com tal atribuição, como as Polícias, o Ministério Público, o Poder Judiciário e a Administração Prisional, distribuem-se de maneira desigual pelos diversos estratos sociais (BRESOLA JÚNIOR, 2018).

De acordo com as lições de Zaffaroni e Batista (2011, p. 44), a seletividade se consolida efetivamente com a segunda etapa da criminalização (criminalização secundária), já que “a muito limitada capacidade operativa das agências de criminalização secundária não tem outro recurso senão proceder sempre de modo seletivo, de modo que estão incumbidas de decidir quem são as pessoas criminalizadas”.

Assim, no momento em que ocorre a segunda etapa da criminalização é que a seletividade do sistema penal exsurge, dando azo à rotulação de alguns condenados.

5.1. Cultura consumerista influenciando a prática de delitos

Nessa linha, a prática delitiva seria uma decorrência natural da cultura consumista presente na sociedade em que vivemos atualmente, onde o acúmulo de bens é o alvo mais perseguido entre as pessoas. Sendo assim, somente alguns conseguiriam alcançar tais objetivos, uma vez que a sociedade é incapaz de produzir meios equânimes para que todos os indivíduos alcancem o tão desejado sucesso material.

Nas lições de Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 12): “Nas sociedades capitalistas, a indicação das estatísticas é no sentido de que a imensa maioria dos crimes é contra o patrimônio, de que mesmo a violência pessoal está ligada à busca de recursos materiais e o próprio crime patrimonial constitui tentativa normal e consciente dos deserdados sociais para suprir carências econômicas”.

Foi exatamente o que explicou Merton, em artigo denominado Social Structure and Anomie, publicado em 1938, que de maneira sucinta informa que “o crime é consequência de uma desproporção entre metas culturais e meios institucionais para atingir estas metas”. (VERAS, 2010, p. 52-53)

Corroborando o exposto acima, Zaffaroni e Batista, quando aduz que “o estereótipo acaba sendo o principal critério seletivo da criminalização secundária; daí a existência de certas uniformidades da população penitenciária.” (2011, p. 46)

Nessa perspectiva, pode-se dizer que a população carcerária é formada por grupos que possuem determinados estereótipos estabelecidos na criminalização secundária. Assim, a maior parte dos apenados no Brasil pertence às classes menos favorecidas, ou seja, são aqueles que cometeram delitos de fácil detecção e geralmente com o emprego de violência ou grave ameaça, notadamente os delitos contra o patrimônio ou relacionado às drogas.

Chama a atenção o fato de que, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN, atualizado em junho de 2016, (SANTOS, 2017) o Brasil detém uma população prisional de 726.712 (setecentos e vinte e seis mil, setecentas e doze) pessoas, com uma taxa de aprisionamento de 157% (cento e cinquenta e sete por cento), entre o ano 2000 a 2016. Assim, em junho do ano de 2016, segundo o dado, eram 352,6 (trezentas e cinquenta e duas) pessoas presas para cada 100 (cem) habitantes (pág. 12). Desses dados estatísticos, 64% (sessenta e quatro por cento) dessas pessoas são negras, 4% (quatro por cento) são analfabetas e 57% (cinquenta e sete por cento) das pessoas são alfabetizadas, mas não tem curso regular de ensino (PEREIRA, 2018).

Para ilustrar, vejamos o gráfico4 a seguir, correspondente à raça, cor e etnia da população em geral em comparação com as pessoas pivadas de liberdade:

De mais a mais, a seletividade do Direito Criminal só foi denunciada em meados do século XIX, uma vez que, como é cediço, antes disso a criminologia buscava as causas da criminalidade no indivíduo, e não na sociedade. Alessandro Baratta (2011, p. 90), dissertando sobre o tema, aduz que “a intervenção do sistema penal, especialmente as penas detentivas, antes de terem um efeito reeducativo sobre o delinquente determinam, na maioria dos casos, uma consolidação da identidade desviante do condenado e o seu ingresso em uma verdadeira e própria carreira criminosa”.

Ou seja, para o renomado autor a intervenção estatal por meio do sistema penal, mesmo que teoricamente tenha caráter reeducativo e ressocializador, na maioria das vezes fortalece a identidade delinquente do condenado além de instigá- lo a enveredar pelo caminho do crime.

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5.2. As cifras negra e dourada

A cifra negra abarca os delitos não identificados pelo sistema penal, os não denunciados e os não investigados, seja por pressão que os órgãos policiais sofrem dos poderosos, desinteresse ou falta de recursos necessários a uma investigação eficaz. Pode-se dizer, também, que é o conjunto de crimes que não chegam ao conhecimento do Estado devido ao silêncio da vítima que, por vergonha, por medo de represália ou descrédito, deixa de proceder ao registro do fato. É o conflito entre a criminalidade real (todos os crimes que realmente aconteceram, registrados ou não) e a criminalidade aparente (não são computados os crimes que não foram registrados).

Por sua vez, cifra dourada refere-se especificamente aos crimes de colarinho branco estudado no tópico 4.1, os quais crescem exponencialmente, em razão do elevado poder socioeconômico dos agentes envolvidos nesses delitos e do tipo de atividade por eles desenvolvida no meio social, bem como da complexidade que permeia tais infrações, a complacência das instâncias oficiais de controle e o tratamento diferenciado.Dissertando sobre o tema, Zaffaroni e Batista (2011, p. 4344) ensinam que “a criminalização primária é um programa tão imenso que nunca e em nenhum país se pretendeu levá-lo a cabo em toda sua extensão, nem sequer em parcela considerável, porque é inimaginável. A disparidade entre a quantidade de conflitos criminalizados que realmente acontecem numa sociedade e a aquela parcela que chega ao conhecimento das agências do sistema é tão grande e inevitável que seu escândalo não logra ocultar-se na referência tecnicista a uma cifra oculta”.

É dizer que, se, em decorrência da criminalização secundária, o indivíduo é acometi-do por grande revolta depois de ter recebido o rótulo de criminoso, fato que dificultará sobremaneira sua ressocialização fato que dificultará sobremaneira sua ressocialização, nos crimes de colarinho branco, por sua vez, não há falar em estigma imposto pelas instâncias de controle, já que as pessoas que cometem tais delitos ocupam espaços privilegiados na sociedade.

Insta trazer à colação as lições de SUTHERLAND, citado por Israel Bresola Júnior (2018) em seu Trabalho de Conclusão de Curso, “os crimes praticados pelas classes altas e baixas se diferenciam em grande medida pela forma com que as leis são executadas em relação a eles. Os crimes dos menos privilegiados são lidados pela polícia, promotoria, Poder Judiciário, com a aplicação de multas, prisão, dentre outras penas, ao passo que os crimes das elites muitas vezes ou não são sancionados oficialmente ou acarretam sanções civis, sendo lidados por inspetores e órgãos administrativos. E, quando punidos penalmente, as sanções aplicadas geralmente se limitam a advertências, mandados judiciais, perda de licença e somente em casos extremos gerando pena de prisão”. (SUTHERLAND, 1940, p. 07- 08)

5.3. Outras cifras da criminalidade

Denomina-se cifra cinza os crimes que chegam ao conhecimento da autoridade competente, entretanto, são solucionados na esfera policial, aguardando a representação ou se dá através da composição entre as partes envolvidas (ex. Denúncia não é levada adiante porque fica aguardando a representação da vítima).

De seu turno, a cifra amarela corresponde aos crimes praticados com violência policial e abuso de poder, os quais não chegam ao conhecimento dos órgãos fiscalizadores, como é o caso das ouvidorias e corregedorias.

Ressalte-se, ainda, a cifra verde, que se refere aos crimes ambientais, cujos responsáveis não são identificados, tendo por prejudicada a devida responsabilização.

Temos, portanto, o processo de atrição (é o antônimo da atração), que consiste no distanciamento progressivo entre as cifras da criminalidade, é dizer, entre a criminalidade aparente e a real.

Sobre os autores
Sandresson Menezes

Professor-Orientador. Esp. em Direito Penal. Docente Faculdade Maurício de Nassau

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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