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Constituição e Democracia

08/04/2006 às 00:00
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As linhas que se seguem traçam um panorama geral de algumas das principais discussões da Filosofia do Direito e da Filosofia Política da atualidade. Vou tentar expor, de uma forma bem sucinta, o modo como o Constitucionalismo atual discute a relação entre Constituição e Democracia.

Assim, pode-se notar, a partir das revoluções do século XVIII, uma contínua tensão entre Constitucionalismo e Democracia nas teorias constitucionais, que se desdobra até os dias atuais. Na maioria das vezes, os autores defendem um ou outro lado da moeda. Apenas Kant e Rousseau, um contemporâneo, outro inspirador, dessas revoluções, procuraram estabelecer uma eqüiprimordialidade entre os princípios dos direitos humanos e da soberania popular, mas sem sucesso. Kant deu prevalência aos direitos humanos; Rousseau à soberania popular.

Se a modernidade teve seu nascimento marcado pelo racionalismo de Descartes e com a ciência de Galileu a Newton, bem como seu processo de auto-justificação com o movimento iluminista e filosofia do idealismo alemão, do criticismo de Kant à dialética da história de Hegel, pode-se dizer que a alta modernidade é marcada pela filosofia da linguagem. Desde Wittgenstein (o segundo Witt, dos jogos de linguagem), a relação entre sujeito e objeto deslocou-se para a relação sujeito/sujeito. A linguagem, ela própria, passa a ser reconhecida como constitutiva do sujeito e do objeto, não mais uma simples ponte entre ambos.

Jürgen Habermas incorporou essa transição. Com Frege e Peirce ele assumiu que pensamentos diferem de representações; pensamentos são universais, ao passo que representações são provinciais. Essa tensão entre facticidade e validade no seio da linguagem é trazida por Habermas para o Direito. O Direito moderno é marcado pela facticidade da imposição coercitiva de suas leis e a validade inerente à pretensão de legitimidade das mesmas. Reformulando a herança kantiana, Habermas considera também o princípio da legalidade como, ao mesmo tempo, "lei da coerção" e "lei da liberdade". O Direito moderno, ao mesmo tempo que exige obediência, também deve deixar espaço para que se obedeça ao mesmo por respeito. Essa tensão entre facticidade e validade deve ser mediatizada pelo Direito.

O Direito moderno é positivo, cogente e estruturado individualisticamente. É o caráter de positividade do Direito que possibilita sua modificabilidade: por isso ele precisa ser institucionalizado através do princípio democrático.

Ao contrário do que havia estabelecido em suas Tanner Lectures, Habermas, em "Direito e Democracia: entre facticidade e validade", estabelece uma relação complementar e co-originária entre Direito e Moral. O Direito é, ao mesmo tempo, mais amplo e mais restrito que a Moral. É mais amplo no sentido de que os discursos jurídicos de justificação consideram tanto argumentos morais, como pragmáticos ou ético-políticos, em processos legislativos que institucionalizam o princípio da democracia; é mais restrito porque o Direito, ao contrário da Moral, só se ocupa de comportamentos externos dos indivíduos, além de se limitar a uma comunidade localizada no espaço e no tempo. Habermas não aceita, como já observado por Cattoni de Oliveira, a subordinação do Direito à Moral, propugnada pela tese do caso especial de Robert Alexy de uma perspectiva axiologizante (mas também aceita ainda que deontologicamente por Klaus Günther).

Além disso, a autonomia jurídica, por razões institucionais, diferencia-se em autonomia pública e autonomia privada. Através da autonomia privada, os indivíduos decidem como usufruir dos direitos subjetivos de que dispõem; através da autonomia pública eles definem como o igual será tratado como igual e o desigual como desigual, por intermédio de suas liberdades comunicativas. No entanto, tal diferenciação não compromete a coesão interna entre autonomia pública e privada.

Em sociedades pós-tradicionais, os indivíduos não têm como dispor do "medium" jurídico nos processos de integração social, não podendo mais apelar para justificações metafísicas. Partindo desse ponto, é imperioso ressaltar que os indivíduos devem fazer uso de sua autonomia pública para definir que direitos cabem a quem e em que medida; ao mesmo tempo, eles só podem fazer um uso adequado das já mencionadas liberdades comunicativas se dispuserem de condições mínimas para tanto. Assim, autonomia pública e privada são eqüiprimordiais, co-originárias, complementares.

Tanto o paradigma liberal quanto o paradigma de bem-estar parecem ignorar essa tensão constitutiva do constitucionalismo moderno. Ambos se amparam numa concepção econômica de sociedade, tratando direitos como bens. Ambos dirigem o olhar apenas para a autonomia privada dos indivíduos, alcançada por um Estado abstencionista ou por prestações positivas paternalistas de um Estado interveniente. A proposta habermasiana de uma compreensão procedimentalista do paradigma do Estado Democrático de Direito vem atender justamente à tal coesão interna. A autonomia pública e a autonomia privada são vistas eqüiprimordialmente. Assim, direitos humanos e soberania popular; constitucionalismo e democracia. Condições possibilitadoras não impõem limites às circunstâncias que constituem.

No mesmo sentido de tal coesão é que podemos entender a afirmação do filósofo alemão Jürgen Habermas de que, no Estado Democrático de Direito, a soberania permanece um "lugar vazio". Presente a tensão entre direitos e democracia no Estado moderno, só podemos radicar a soberania em procedimentos que possibilitem a formação livre da opinião e da vontade. A legitimidade política descansa sobre o asseguramento das liberdades comunicativas, no sentido próximo ao de Hannah Arendt, ou seja: o poder administrativo só pode ser legítimo se constantemente retroligado ao poder comunicativo.

Teorias procedimentalistas da Política e do Direito levam na devida conta essa tensão, ao contrário das teorias do liberalismo e do republicanismo (atentando para a simplificação de tais classificações). A proposta habermasiana encabeça tal entendimento procedimental, sendo divulgada aqui no Brasil por autores como Carvalho Netto, Cattoni de Oliveira, Souza Cruz, dentre outros. Ao passo que liberais dão prevalência à autonomia privada, no sentido de conceber o Direito como o asseguramento dos direitos negativos mínimos e a Política como um agir estratégico na busca por posições no poder administrativo, republicanos dão especial atenção à autonomia pública, reduzindo o Direito às liberdades comunicativas e a Política à formação de um consenso ético público.

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Podemos, numa interpretação conciliatória, aceitar a visão liberal do sentido deontológico dos princípios e direitos de uma certa comunidade política. Ao mesmo tempo, devemos atentar para o uso que os cidadãos fazem de suas liberdades comunicativas, mas sem que seja necessário um consenso ético substantivo em torno do que queira ser uma comunidade. Em substituição, pode-se transferir o consenso para um nível mais abstrato (distinguindo integração ética de integração política), no sentido de que os cidadãos de uma comunidade de princípios (Dworkin) tratem uns aos outros como livres e iguais. Se a integração social pelo Direito é possível, para que minorias não sejam sufocadas, é preciso que o consenso dos cidadãos esteja restrito aos direitos humanos circunscritos pelo conceito de patriotismo constitucional. Esse conceito possibilita um consenso mais "abstrato" mas, ao mesmo tempo, "concreto", situado numa determinada comunidade política localizada temporal e socialmente. Ele põe de lado a suposta neutralidade ética do Estado Democrático de Direito. A Constituição se torna um projeto perpassado pela tensão facticidade e validade, constituído por ela mesma e pelos processos democráticos de formação da opinião e da vontade. Não há Estado de Direito sem democracia radical (Habermas).

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Sobre o autor
Emílio Peluso Neder Meyer

Professor Adjunto de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG (Graduação e Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Membro do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEYER, Emílio Peluso Neder. Constituição e Democracia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1011, 8 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8202. Acesso em: 5 nov. 2024.

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