A escolha de Sofia, escassez de leitos de UTI e a vivência democrática em tempos de Covid-19

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14/05/2020 às 15:15
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Descrição minimamente consonante com um Estado Democrático de Direito no que respeita ao método procedimental que legitime o Poder Público no tocante à definição de que pacientes devem receber tratamento em leitos escassos de UTI em tempos de COVID-19.

RESUMO

Pretende-se alcançar, através do presente trabalho, uma descrição minimamente consonante com os ditames de um Estado Democrático de Direito no que respeita ao método procedimental que legitime o Poder Público no tocante à definição de que pacientes devem receber tratamento em leitos de UTI, em vista de iminente escassez destes em face de uma demanda que vem se tornando superior à capacidade ofertada pela rede de saúde durante a Pandemia COVID-19.

Palavras-chave: COVID-19. Leitos. UTI. Escolha de Sofia. Constitucionalismo. Democracia.

INTRODUÇÃO

Começo com uma indagação: Papa Francisco, presidente Bolsonaro ou um jovem presidiário, a quem dos três seria oferecido o último leito de UTI disponível no Brasil durante a Pandemia COVID-19?

O presidente da República do Brasil esteve prestes a ir ao município de Mossoró/RN há pouco mais de dois meses, quando a Pandemia COVID-19 já vitimava a face da Terra.

Nas imediações de Mossoró, é situado um Presídio Federal de Segurança Máxima.

Digamos que ocorresse de o presidente passar mal por ocasião da visita a algum órgão público local, com extremas necessidades respiratórias por ter contraído o novo Coronavírus e, no mesmo momento, nos arredores da cidade, um presidiário de alta periculosidade, já tendo assassinado inúmeras pessoas, também estivesse com sintomas idênticos.

O presidente é bem mais velho e sem comorbidades.

O presidiário, muito jovem e sem qualquer problema preexistente de saúde.

Por coincidência, cogite-se que o Papa Francisco, em passagem repentina pelo Brasil, resolvesse fazer uma visita-surpresa ao mesmo presídio. Mas em sigilo por questões de segurança. Só algumas autoridades sabendo daquela visita de S. Santidade.

Desconhecendo o surto no presídio, imediatamente o líder religioso começasse a ficar sem ar. Todos sabem: o papa tem um único pulmão, pois o outro perdeu quando mais jovem por razões de doenças respiratórias; além do que é o mais velho entre os três.

Só resta um leito de UTI entre todos os hospitais da região de todo o Oeste Potiguar, e não haveria tempo de fazer transporte para qualquer outro local onde houvesse leitos antes do minuto fatal para qualquer um deles.

Tem-se de decidir imediatamente sob o risco de os três perderem a vida em minutos.

Quem seria o salvo de acordo com os critérios médicos adotados atualmente?

O Papa, o presidente ou o presidiário: quem se salvaria?

O presidiário, sim, o presidiário seria o ser humano mais condigno de receber o devido tratamento da única Unidade de Terapia Intensiva disponível na região de Mossoró na hipótese ventilada.

Papa Francisco e o presidente da República não teriam suas vidas salvas.

O presidiário, tão odiado por grande parte da sociedade, seria o contemplado nesta situação.

O cerne da questão, no entanto, não é exatamente as personalidades ou os cargos ocupados; a questão é muito mais abrangente e diz respeito à vivência democrática, conforme procurar-se-á desenvolver nos capítulos à frente.

CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DE PACIENTES EM CASOS DE ESCASSEZ DE LEITOS DE UTI DURANTE A PANDEMIA COVID-19. A “ESCOLHA DE SOFIA”

"A Escolha de Sofia" é uma expressão que remete à imposição de se tomar uma decisão difícil sob pressão e enorme sacrifício pessoal.[1]. É o que ocorre exatamente nas situações hoje vivenciadas diante da evidente escassez de leitos de UTI.

Diante do impasse a respeito do direito à vida – possivelmente o mais sagrado na escala valorativa de todo o sistema normativo nacional e internacional – tem-se desenvolvido, no Brasil, métodos mediante os quais se tornaria possível, à equipe médica, decidir quem seria o contemplado nos casos em que mais de um paciente disputa um mesmo leito de UTI; e através de critérios que entendem ser os mais corretos sob o ponto de vista da Medicina.

Voltando ao caso hipotético acima desenvolvido. Neste instante, mostra-se os motivos pelos quais não seria nem o Papa Francisco nem o presidente Bolsonaro, mas que seria o presidiário o selecionado para o tratamento.

Decorre nossa constatação em favor do presidiário, mais jovem, sem comorbidades, a partir dos critérios sugeridos pelas Recomendações da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19[2].

Em linhas gerais, seriam os seguintes critérios técnicos que norteariam a tomada de decisão, sugeridos para todos os médicos brasileiros na hipótese de disputa por leito de UTI, de acordo com a recomendação da AMIB e da ABRAMEDE: 1) priorizar os pacientes com melhores chances de benefício com o tratamento em leito de UTI; 2) aqueles que tiverem maiores expectativas de sobrevida de acordo com critérios objetivos; 3) equalizar a oportunidade de indivíduos de passar pelos diferentes ciclos de vida[3].

Veja então: Papa Francisco é o mais idoso entre os três e o único que somente tem um pulmão, já que o outro perdeu quando mais jovem justamente por problemas respiratórios, que é exatamente uma das complicações mais recorrentes e mais difíceis de se reverter entre os infectados pelo Coronavírus. Como critérios objetivos que são, o papa, tendo apenas um pulmão e já tendo um passado de complicações respiratórias, possivelmente seria aquele que menos teria chance de êxito com o tratamento, além de, sendo o mais velho, já ter passado pelos diferentes ciclos de vida (infância, adolescência, fase adulta, e melhor idade).

Entre o presidente Bolsonaro e o presidiário, possivelmente o mesmo ocorreria. Embora o presidente não tenha comorbidades que o público tenha conhecimento, por ser bem mais velho que o presidiário, já vivenciou mais ciclos de vida que este, logo a situação do presidiário precede a do presidente no caso hipotético.

Em suma, pelos critérios acima, o presidiário seria o contemplado com o tratamento, de acordo com os critérios ventilados.

MARCO NORMATIVO SELECIONADO PELA ASSOCIAÇÃO DE MEDICINA INTENSIVA BRASILEIRA – AMIB E PELA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MEDICINA DE EMERGÊNCIA – ABRAMEDE

O fato é que a situação calamitosa atinente ao acesso aos leitos em UTI – Unidade de Terapia Intensiva para aqueles vitimados gravemente pelos efeitos causados pelo novo Coronavírus já é algo presente e gritante. Chegou-se ao ponto de seres humanos, necessitados de tal internação, terem de aguardar indeterminadamente até que vague um leito.

E, como se não bastasse a agonia da espera, a fila só tende a aumentar, nada restando aos profissionais de saúde a findarem por ter de decidir qual o paciente merece a sorte de ser internado no instante em que muitos disputam o mesmo leito.

Fato já presente em outros países em situação caótica verificada em função da Pandemia COVID-19, notadamente na Itália e na Espanha, há poucas semanas, agora a situação de penúria e escassez chega ao Brasil. É a chamada “Escolha de Sofia” como se denomina a situação em que o profissional terá de decidir quem merecerá o atendimento.

Conforme foi dito, para auxiliar os médicos em parâmetros objetivos de escolha, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira – AMIB e a Associação Brasileira de Medicina de Emergência – ABRAMEDE lançaram protocolo com tabela de critérios que devem ser observados na tomada de decisão, após discussões com especialistas da áreas de Medicina Intensiva, Emergência, Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, além de profissionais do Direito[4].

Destaque-se que o estudo aponta os seguintes marcos normativos como fundamentos para a indicação de critérios: Constituição Federal de 1988; Código de Ética Médica (Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2.217, de 27 de setembro de 2018); Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.805, de 28 de novembro de 2006; Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2.217, de 27 de setembro de 2018; Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.995, de 9 de agosto de 2012; Resolução do Conselho Federal de Medicina nº. 2.156, de 28 de outubro de 2016.

Veja que não se menciona nenhuma LEI que trate do assunto a respeito de critérios para a escolha do paciente a ser atendido em meio à escassez.

Em termos gerais, os critérios, baseando-se em técnicas utilizadas em âmbito internacional, são justificados da seguinte forma: priorizar os pacientes com melhores chances de benefício e com maiores expectativas de sobrevida de acordo com critérios objetivos, e ainda “equalizar a oportunidade de indivíduos de passar pelos diferentes ciclos de vida também é critério comumente recomendado”.

Após as devidas ponderações, os estudiosos constataram que não se deveria aplicar o método SOFA (Sequential Organ Failure Assessment) sem os devidos ajustes, dentre os quais o fator idade, entendendo os especialistas que o “fator idade” de per si e sem ponderação não seria legítimo que fosse utilizado; o mesmo também ocorrendo com avaliações meramente subjetivas.

Em resumo, seriam os seguintes objetivos a serem alcançados pelo uso dos critérios norteadores para a tomada de decisão: 1) Salvar maior número de vidas; 2) Salvar o maior número de anos/vida; 3) Equalizar as oportunidades de passagem pelos diferentes ciclos da vida[5].

Para tanto, levar-se-ia em conta o método SOFA - Sequential Organ Failure Assessment, avaliando-se uma série de parâmetros de dados vitais. Quanto maior o escore na pontuação, menor seria a chance de sobreviver; verificando-se ainda eventual presença de comorbidade grave.

Da soma de fatores medidos a partir de tais critérios, haveria uma pontuação final de cada paciente em disputa por um leito de UTI. E, assim, o placar de pontos apontaria quem seria o mais apropriado pela oferta de um leito. Em eventual ocorrência de empate entre dois ou mais usuários/pacientes, a decisão passaria por um julgamento clínico da equipe de triagem.

A IDEIA DA FILA ÚNICA EM UMA CENTRAL NACIONAL DE LEITOS DE UTI E DA NECESSIDADE EMERGENCIAL DE GESTÃO DE TRANSPORTE AÉREO DE PACIENTES

Haveria uma ideia da criação de uma espécie de sistema nacional de vagas para pacientes em estado grave em razão do novo Coronavírus, cabendo ao Ministério da Saúde a regulamentação e regulação através de articulação com estados e municípios e, quem sabe, com a rede privada prestadora de serviços de saúde, enquanto durasse a pandemia COVID-19, compondo uma central única de vagas.

A propósito de criação de uma fila única de leitos de UTI públicas e privadas, estima-se que, em se adotando tal medida, evitar-se-ia cerca de até 14,7 mil mortes pelo Coronavírus no País, segundo estudo realizado por pesquisadores da FGV, USP, Universidade da Paraíba e Instituto do Câncer, conforme divulgado em publicação de “O Estado de São Paulo”, do dia 05 de maio último, cuja matéria tem por título “’Fila única’ para UTIs poderia evitar 14,7 mil óbitos, diz estudo”.

Já o que trata no presente parágrafo fazemos questão de insistir. Com disponibilização de aviões e helicópteros da FAB – Força Aérea Brasileira e dos mesmos bens públicos de domínio de estados e de municípios e até mesmo requisição de idênticos veículos de transporte pertencentes ao setor privado (de pessoas físicas e jurídicas); neste último caso, na hipótese de extrema necessidade, a fim de viabilizar o transporte ágil de pacientes graves entre estados, ou mesmo entre dois municípios distantes dentro de um mesmo estado da federação, tudo a propiciar que se faça a remoção do paciente em estado grave para onde haja leito de UTI disponível dentro desta rede, com uma central unificada e com fila única independente de que a disponibilidade de leito esteja presente na rede pública ou privada.

Isto URGE que seja feito!

Tudo para que a “Escolha de Sofia” seja uma mera cogitação e não uma realidade trágica.

MAS E SE A ESCOLHA TRÁGICA TIVER MESMO DE SER FEITA?

OS CRITÉRIOS PROPOSTOS PELA AMIB E ABRAMED ESTARIAM CORRETOS SOB O PONTO DE VISTA DO PROCEDIMENTO NORMATIVO-DEMOCRÁTICO?

Às vezes me coloco em uma situação de me ver diante da circustância de ter de escolher um de meus filhos para salvar em um naufrágio de uma embarcação ou de uma aquaplanagem emergencial de um avião em pleno o Oceano Atlântico, porém a uma distância da costa continental que não tornasse impossível de se alcançar com muito esforço a nado e com possibilidade de escolher um dos meus três filhos e salvá-lo(a) junto comigo.

Para mim, seria a situação mais sofrível que a vida poderia me oferecer. Ter de escolher um dos meus três e com que critérios, mirando o olhar dos outros dois, desesperados e se afogando e vendo um pai que não o(a) escolheu. Imagino a angústia só de me imaginar fitar aquele olhar de desespero e decepção de um(a) filho(a) partindo para sempre.

Eu teria escolhido a morte para ele(a). Fui justo? Com que razões fui justo?

Escolheria pelo peso, pela comportamento mais calmo em situações de risco, ou pelo fato de eu considerar o comportamento dele(a) mais parecido com o meu e achá-lo(a), pela identidade comigo, mais digno(a) de ser salvo(a)?

Naquela situação de emergência, o pai se tornaria o juiz.

Enquanto me decidisse, perderia os três para o Atlântico.

Esse é o drama. A família ou a comunidade que teve seu pai, seu filho, seu sacerdote ou seu líder político escolhidos como menos viável a viver ou menos digno de viver fariam severas e contundentes críticas a este juiz (ou ao médico na condição de julgador), e, seja qual fosse a escolha, a irresignação viria; cada grupo com suas razões filosóficas, religiosas, políticas e mesmo médico-científicas.

Pensemos, no entanto, se fosse colocado para a sociedade decidir quem seria o escolhido para ser salvo entre o papa, o presidente e o presidiário. Haveria votos para todos eles. Custo a crer que o homem condenado (presidiário) seria o mais votado pelo conjunto de cidadãos.

Possivelmente, esta seria mesmo a escolha correta, sobretudo do ponto de vista médico (perspectiva de vida, chance de êxito no tratamento, oportunizar que todos vivam todos os seus respectivos ciclos de vida, etc.).

Mas seria o chamado pejorativamente de “bandido” aquele escolhido pela maioria caso houvesse escrutínio?

No entanto, registre-se com força: quantas e quantas vezes a liberdade e a igualdade dependem justamente de mãos contramajoritarias![6]

UMA QUESTÃO JUSFILOSÓFICA

É do renomado jusfilósofo norte americano Ronald Dworkin a máxima: “juízes são obrigados a responder, em suas decisões, a controvérsias difíceis, as quais filósofos, cidadãos e estadistas debatem há séculos de história”.

Trago esta citação de Dworkin para fazer recordar que os juízes – e no caso também os médicos demandados a escolher o paciente em disputa por um leito de UTI – temos de decidir questões dificílimas, muitas vezes em fração de horas, como em caso de risco iminente de perecimento de direito.

E outras tantas vezes, ainda que com instrução bem completa do ponto de vista formal, mas sem profunda análise transversal entre Direito e outras ciências ou saberes populares (também úteis, pois síntese de pensamentos ou sabedoria secular ou até milenar em outras sociedades).

Na situação de um único leito de UTI em Mossoró, tentei colocar o drama humano na escolha entre o miserável, o governante, e a autoridade político-religiosa.

Faço aqui um corte para toda essa digressão. Pois primeiro se deve despertar para o drama, para depois apontar caminhos senão verdadeiros ao menos mais consonantes com a democracia; não a democracia que impõe a vontade da maioria sempre, mas a democracia que chega ao consenso com dignidade procedimental e material.

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No caso da decisão do naufrágio ou do pouso forçado na situação acima criada – onde eu tivesse de escolher um dos meus três filhos a ser salvo – a decisão é exclusivamente minha, é íntima, os critérios eu mesmo escolheria do modo que eu entendo justos a partir de minhas compreensões. 

Mas e o juiz ou o médico (na condição de julgador do direito à vida do enfermo grave por coronavírus), como escolher e aplicar o critério correto para definir quem vai viver e quem vai morrer em situação de falta de leitos hospitalares?

Naturalmente, a resposta é dificílima, de modo que homem ou mulher alguma conseguirá responder sozinho(a).

Seria legítimo se estabelecer os tais critérios, nesta nação, sem antes passar pelo crivo democrático? Ou seja, sem LEI, nada obstante significar escolha a mais dramática - no caso o direito à vida?

Não é possível que o destino da vida de tantos seres humanos seja decidido com base em critérios dispostos em uma Recomendação, cujo fundamento se encontra quase que exclusivamente em normas infralegais, quais sejam algumas Resoluções do Conselho Federal de Medicina e, superficialmente, mencionando-se a Constituição Federal da República Federativa do Brasil.

Tenho que a LEI se mostra não só imprescindível como urgente para definir os critérios de vida ou de morte de que tratamos, inclusive para a proteção jurídica das decisões dos profissionais da saúde, que terão de fazer a escolha sobre qual o paciente deve ser atendido diante da disputa por um leito de UTI.

E mais. O Projeto de Lei, ao estabelecer critérios para esta dramática escolha, necessitaria de se valer de audiências públicas para se ouvir universidades, cientistas, filósofos, antropólogos, juristas, bispos, pastores, rabino, médicos, tribos, líderes comunitários, líderes de movimentes minoritários, etc., ou bastaria que deputados e senadores debatessem o tema?

Pois isso é democracia, e, como tal, uma questão fundamental no Estado Democrático de Direito.

ALGUNS CONCEITOS JURÍDICOS FUNDAMENTAIS PARA SE DECIDIR SOBRE A VIDA

Como se assegurar de que o bem comum está sendo buscado senão através de um procedimento legítimo e aberto? Afinal, bem sustenta o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski em uma de suas obras, e substanciado na lição de São Tomás de Aquino na lendária Summa Theologica: a submissão dos homens às autoridades encontra-se condicionada ao respeito às regras de Justiça e à promoção do bem comum[7].

Em se tratando do direito mais sublime e singular em todo o catálogo de Direitos Humanos, o direito à Vida, estando relacionado umbilicalmente com o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, é mister que se enseje a máxima objetividade, ligada esta à sua defensibilidade em uma estrutura aberta e livre à argumentação pública[8]; não sendo possível, do ponto de vista jurídico, que o direito à vida seja definido em nível infralegal, com base em recomendações, por melhores e mais dignos que sejam os argumentos médico-científicos utilizados.

Não se pode perder de vista – sintonizados com os ensinamentos de Immanuel Kant no sentido de uma aproximação entre ética e direito – que os seres humanos constituem um fim em si mesmo, cujo valor intrínseco é absoluto, cada um humano insubstituível e único[9]. Quanta desolação não haverá em um parente ao ver seu ente não atendido na rede de saúde quando dela está precisado e sem ao menos critérios legais disponham a respeito da escolha a respeito de quem seria mais viável para ser tratado em um leito de UTI?

A vida juntamente com a integridade física, em conceito desenhado por Hobbes, é considerada como um autêntico fim do Estado, e razão de ser de sua existência. Seria ela um bem da mais alta relevância no contexto da organização social, política e jurídica; asseverando John Locke se tratar de um direito natural no sentido de ser direito inato e inalienável do ser humano[10].

O direito à vida foi consagrado na atual noção moderna de direitos humanos e fundamentais na Declaração de Virgínia, de 1776; depois disposto no constitucionalismo norte americano através da Quinta Emenda, de 1791. No plano internacional, desde a Declaração Universal do Direitos do Homem, de 1948, no artigo III, também restou a vida catalogada como direito inerente à pessoa, o mesmo ocorrendo em âmbito regional através da Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969. No Brasil, apenas na Constituição de 1946 mereceu o direito à vida ser mencionado como direito individual; sendo cristalino que, no Estatuto Constitucional de 1988, o direito à vida está expressamente contemplado como um direito inviolável[11]. Mas se é inviolável o direito de todos, como justificar que uns tenham e outros não tenham a proteção à saúde pelo Estado?

Amartya Sen deixa muito evidente a compreensão de que são pontos centrais para o que seja uma visão mais ampla de democracia: nada mais que participação política, diálogo e interação pública. E enfatiza contundentemente: “a argumentação pública na prática da democracia coloca todo o tema da democracia em estreita relação com o tópico central do seu livro, isto é: a JUSTIÇA[12]. Ou seja, só mesmo com amplo debate nacional e quiçá internacional seria admissível a fixação de critérios para a escolha trágica referente à indisponibilidade de leitos de UTI para o atendimento de todos os que deles necessitam.

Não sem razão foi que a Constituição Federal de 1988 dispôs que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, ou, nos dizeres de Jorge Miranda, o ser humano seria “fundamento e fim da sociedade”, enfatizando o ilustre mestre lusitano que “pelo menos de modo directo e evidente, os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas a pessoas”.[13]

A responsabilidade para definir como dispor sobre o direito à vida, neste caso, associado indiscutivelmente ao princípio da dignidade da pessoa humana, necessita incontestavelmente de um diálogo entre ciências[14]. A traduzir-se a interdisciplinaridade no vínculo entre saberes, no “saber com o outro saber”, em relação de complementaridade e mútua cumplicidade; enfatizando-se que a ciência também produz ignorância face à especialização demasiada, de modo que o tal diálogo com demais ciências acaba por conferir a construção de “intraciências” com vínculos de “interciências”, caso contrário o isolamento das mesmas termina por chegar em um nada em termos de compreensão[15].

Nestas horas tão graves, onde a humanidade se vê diante de uma encruzilhada do destino e do inesperado, seria ou não a hora de se lembrar da lição do professor J.J. Gomes Canotilho quanto apregoa quanto à necessidade de o Direito fazer opção pelos pobres? Em uma abordagem que articule racionalidade e cultura jurídica com teorias políticas de justiça e de ética filosófica; mediante metodologia transversal a propiciar pressupostos científicos de aquisição de competência e de saberes presentes dispersamente na sociedade. A considerar os pobres no sentido do catedrático de Coimbra, a significar “abertura dialógicas para os rostos, os corpos as almas, dos que enfrentam as dificuldades da dor, da pobreza, do isolamento, da opressão, da ignorância, dos pobres sem meios de subsistência, doentes, perseguidos, discriminados, velhos, humildes.[16]

Papa Francisco, olhando para as situações de falta de alteridade tão comum nos tempos de hoje, proclamou: “Nós vivemos na indiferença. A indiferença é este o drama: de ser bem informado, mas não sentir a realidade o outro”[17]. Depois, já sobre a específica realidade vivida no Brasil em tempos de exponencial crescimento em número de infectados e de mortos em razão da pandemia, em comunicação com religiosos locais, chegou o sumo pontífice a dirigir uma palavra no sentido de que os marginalizados “nem sempre têm casas nem condições adequadas para seguir as medidas preventivas contra o contágio”. Como, pois, não dar a devida atenção a estes esquecidos, sobretudo em trabalho de conscientização e de informação e de distribuição gratuita de equipamentos de segurança e de higiene neste momento tão trágico para a saúde pública que vitima toda a humanidade?

Como fazer com que toda a sociedade seja ouvida, sem que ninguém seja esquecido para definir estratégias e também para dispor legitimamente sobre o direito à vida? É o que tentaremos desenvolver adiante.

A LEGITIMIDADE DE AUTAÇÃO DO ESTADO NA ERA DO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO

Atravessada a nefasta era do legalismo extremado e desvinculado dos ideais de justiça e de equidade, bem como já amadurecida a convicção jurídico-científica a respeito da normatividade dos princípios catalogados no âmbito das constituições e dos tratados internacionais de direitos humanos; passa a ser mister da Ciência Jurídica se debruçar, com mais cadência e profundidade, sobre os desdobramentos deste novo paradigma na atuação do Poder Estatal.

O Estado passa a se pautar em valores constitucionais consagrados através de princípios fundamentais, os quais, enquanto texto, somente mediante interpretação e análise concreta podem se tornar norma[18].

Associado à perspectiva da necessidade de segurança jurídica, deve o Estado ser um ator promotor da devida abertura do círculo de intérpretes, de modo a propiciar uma evolução qualitativa da interpretação normativa do nominado Bloco de Constitucionalidade, com todos os consectários positivos que a Democracia Participativa tende a proporcionar para o seio da própria sociedade; passando a atuação estatal a dever respeito à lei e ao Direito, e o controle dos atos estatais passa a ser não mais apenas sob o crivo da legalidade, mas sim da juridicidade e de legitimidade[19][20].

Ora, à época do jusnaturalismo, os princípios serviam basicamente como inspiração de ideais de equidade e de justiça, sendo sua normatividade praticamente inexistente[21][22].  Já por ocasião do florescer do Estado Legal de Direito, os princípios passam a ter o papel unicamente de servir como fonte subsidiária, utilizados somente quando da ausência de previsão legal expressa sobre um determinado assunto[23]. Reinava, em tal período, o Positivismo Jurídico, o qual fazia dos princípios – mesmo os constitucionais – meras pautas programáticas sem qualquer imperatividade ou força normativa[24].

Vivenciado o insucesso de um Estado desprovido de qualquer compromisso com os valores básicos do ser humano[25], passa a Humanidade a entrar em consenso no sentido de que a Constituição dever ser o vértice do ordenamento; sendo indispensável que nela se encontrem todos os valores fundamentais de uma sociedade, valores estes inseridos na Carta em forma de princípios, os quais passam a ter status de norma jurídica.

Estar-se, pois, na Era do Pós-Positivismo[26]. Nesta nova fase, não mais se discute a normatividade dos princípios. Norma, agora, subdivide-se em regras e princípios[27]. Os princípios constitucionais passam a ser encarados como normas concretas e aptas a serem aplicadas no mundo dos fatos; sendo que possuem o diferencial de servirem de substrato para função interpretativa e construtiva do Direito, justamente devido a sua hegemonia axiológica irradiante dentro do ordenamento jurídico[28][29].

Inseridos na Constituição todos os valores e princípios fundamentais, passa-se a se ter a necessidade de um novo modelo de interpretação, em que toda e qualquer exegese jurídica torna-se também uma exegese constitucional.

Em virtude da supremacia formal e material da Constituição, todo o restante do ordenamento jurídico passa a buscar na Constituição seu fundamento de validade, seu substrato de legitimidade; com realce de importância para o papel do juiz, o qual passa a ter função primordial na constatação da constitucionalidade dos atos praticados pelo Estado[30].

O intérprete não tem como objeto de trabalho somente a Constituição ou uma Lei em si. Seu desiderato também é o de verificar se as normas infraconstitucionais possuem conformidade material em relação à Carta Política[31]. O que se convencionou chamar de filtragem constitucional consiste exatamente em se cotejar as disposições de um regramento infraconstitucional frente aos ditames contidos na Constituição[32].

A partir de tais premissas, todas redundantes e inerentes ao constitucionalismo hodierno, buscar-se-á, a seguir, catalogar algumas mudanças sofridas por institutos e sobre o modo de atuar das instituições estatais, a partir do influxo do Pós-Positivismo.

DA LEGITIMIDADE DO ATUAR ESTATAL

Após os horrores que o Estado Legal permitiu ocorressem, a humanidade se volta ao Constitucionalismo Democrático[33], passa-se, pois, a um modelo de Estado onde importa a justiça material, a razoabilidade e a conformação do agir estatal à ideia de respeito ao ser humano enquanto sujeito de direito perante o Poder Constituído[34].

Enaltece-se o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, impõe-se o respeito aos princípios fundamentais como coluna do sistema normativo, além de se incluir a participação popular nos processos decisórios do Poder Público[35].

Para além de legal, o ato estatal também deve ser justo, proporcional[36] e razoável[37], apto a atingir os fins constitucionais de modo tal que imponha o menor sacrifício possível aos diversos direitos consagrados na Carta Magna, com máxima efetivação possível em relação a cada um de tais direitos fundamentais[38]. Seja de que função estatal partir, o ato deve se alinhar a este ideal valorativo, disposto em princípios os quais são a verdadeira alma das Constituições[39].

Valorizando o ser humano, o Direito passa a se voltar para o cidadão, já que o fim maior do Poder Público é tornar efetivos os direitos fundamentais dispostos na Carta Política.

Neste contexto, a imperatividade dos atos públicos administrativos começa a sofrer mitigação em decorrência da crescente participação popular[40] nos processos decisórios da Administração.

O ato administrativo, que antes era totalmente formado em gabinetes do Poder Público, e que imperava unilateralmente sem que a sociedade pudesse emitir qualquer opinião prévia a respeito, passa agora a ser tomado juntamente com o corpo social[41].

Sendo crescente o número de audiências e consultas públicas realizadas durante processos públicos, onde a comunidade passa a emitir opiniões, sugestões e críticas, no sentido de contribuir para que o melhor agir estatal.

O ato administrativo, de imperativo, vem se tornando consensual, vez que os envolvidos (Estado e Sociedade) passam a dialogar[42] no sentido de formar uma decisão harmônica, que venha a se fazer cogente de maneira mais legítima possível.

O consensualismo, além de significar a democratização, permite incrementar a própria eficiência do aparelho estatal, pois a tendência é que o ato emitido reflita os verdadeiros anseios da coletividade[43].

Sendo esta mudança de paradigma digna de nota, justamente por sua substancial importância para a vitalidade da democracia, configurando-se um dos traços marcantes da contemporaneidade no mundo das ciências sociais, políticas e jurídicas.

CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Desde a ascensão do Estado Constitucional de Direito, com a incorporação dos chamados direitos fundamentais de segunda dimensão/geração, verifica-se uma crescente demanda judicial tratando do assunto da aplicabilidade e executoriedade das normas constitucionais relacionadas aos direitos sociais, econômicos e culturais[44].

Superada a teoria da mera programaticidade de normas constitucionais que preveem direitos sociais, passou-se a haver um consenso em torno da normatividade de todas as disposições inseridas no corpo constitucional, em decorrência do que, os mesmos passaram a ser buscados em larga escala junto ao Poder Judiciário.

Em países em via de desenvolvimento, como é o caso do Brasil, há o sério problema da escassez de recursos orçamentários para fazer frente aos enormes flagelos ainda vivenciados pela sociedade, onde o déficit é de praticamente tudo: alimentação; habitação; saneamento básico; educação; e evidentemente saúde.

Diante de tal situação, os Poderes Executivo e Legislativo elaboram Leis Orçamentárias as quais alocam a quantidade de recursos possíveis para os diversos setores correspondentes às atividades sociais do Estado. Entra aqui a questão tormentosa de quanto e quando pode o Judiciário controlar as chamadas políticas públicas. O embate entre o mínimo existencial e a reserva do possível sempre presente em demandas desta natureza.

O Judiciário, firmado nos direitos fundamentais, mormente valendo-se dos princípios da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade, passa a interferir nas decisões político-sociais tomadas pelos demais Poderes da República.

Esclarecedoras as lições do Min. CELSO DE MELLO, ao enfatizar, a respeito da controvérsia pertinente à reserva do possível e à intangibilidade do mínimo existencial em questões de escolhas trágicas[45]. Assevera o respeitável ministro: a “própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental”.

Nas palavras do digno ministro no voto, de se dizer que a noção de mínimo existencial resultante de emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana, cuja exegese advém a partir de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à saúde.

Enfatizam Gonet Branco e o Ministro Gilmar Mendes que todo ser humano singulariza-se por uma dignidade intrínseca e indisponível, e que todos os seres humanos ostentam igual dignidade, não havendo razões de ordem étnica, origem, comportamento sexual ou nem mesmo idade que justifiquem que se aliene de um ser humano o direito à vida; impondo-se medidas radicais para sua proteção, vez que a vida humana constitui valor central do ordenamento jurídico e pressuposto existencial dos demais direitos fundamentais[46].

Em meio a tal embate, toma-se partido pela possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas, sempre visando a satisfazer a dignidade da pessoa humana no caso concreto. Jamais poderá o Judiciário se furtar de promover o processo democrático e assegurar as conquistas dispostas na Constituição; o princípio da proporcionalidade/razoabilidade devendo ser o norte na atuação do juiz, de modo a que possa saber em que medida pode interferir em atos políticos provenientes dos outros Poderes, a valer-se da correta argumentação jurídica racional como a máxima empregada[47].

ABERTURA DEMOCRÁTICA NO PROCESSO DECISÓRIO SOBRE ESCOLHA DE PACIENTES A SEREM TRATADOS EM TEMPO DE ESCASSEZ DE LEITOS DE UTI

Entre os métodos de que se deve valer o Poder Público para que a atuação estatal alcance os ideais e respeite os valores normativamente dispostos em um Estado Democrático e Constitucional de Direito, a abertura procedimental à participação do componente social é da mais alta relevância; não se concebendo que o Poder Estatal despreze a voz da sociedade[48] sobretudo em situações em que se decidirá o destino da vida, como é o caso da escolha do paciente a ser contemplado por um leito de UTI.

Neste diapasão, imperiosa é a necessidade de que seja modificada a forma de atuação do Poder na quadra do Constitucionalismo Moderno, no qual as balizas de Juridicidade e de Legitimidade se mostram as mais relevantes em uma sociedade que se reconhece plural, democrática e solidária[49]. Sendo uma necessidade a abertura do círculo de intérpretes, para a tomada de decisões fundamentais verificadas em âmbito dos processos legislativo, executivo ou judicial.

O Executivo, guiado pelo interesse público primário, pelo consensualismo e pela juridicidade, hoje depende fundamentalmente de abertura; necessitando promover o acesso à informação e proporcionar a participação social, a fim de que efetive a devida valoração na elaboração de políticas públicas e tome decisões que espelhem os anseios da sociedade.

Por sua vez, a função Legislativa, também norteada pelos parâmetros principiais e que, embora sendo a priori de cunho representativo, deve desenvolver a cultura de propiciar em máxima escala a participação direta do cidadão nos processos legislativos; com abertura interpretativa da Constituição, através de audiências e de consultas públicas, que cada vez mais aproxime o legislador do corpo social, em autêntico diálogo social[50].

E ainda, de acordo com a importância e fundamentalidade política do tema debatido, faça valer a utilização dos institutos do plebiscito e do referendo, conforme previsão constitucional; assim se legitimando o Legislativo no cotidiano do exercício de sua função típica, e não só a cada quadriênio quando submetido ao sufrágio eleitoral[51].

O Judiciário, de igual modo, sendo balizado pelos princípios do Constitucionalismo Democrático, deve se pautar pelos guias normativos dos valores substanciados nas Cartas Constitucionais e no Direito Internacional dos Direitos Humanos, buscando materializá-los em normas concretas de acordo com as situações contextuais e com possibilidades normativo-semânticas do texto, com abertura do círculo de intérpretes e segundo contornos que assegurem um processo decisório legítimo no campo hermenêutico[52].

Em casos envolvendo uma lei que disponha sobre acesso limitado a leitos de UTI durante ou depois da COVID-19, podem advir, exemplificadamente, inúmeras ADIs e ADC (ações diretas de inconstitucionalidade e ação direta de constitucionalidade) perante o Supremo Tribunal Federal, questionando abstratamente os critérios já adotados em tal lei, mesmo após todo o debate hipoteticamente democrático e aberto que possa ter havido em âmbito legislativo para se chegar à lei. Haveria, ainda assim, necessidade de a Corte Máxima brasileira se valer de amicus curie?

Cremos indiscutível, mesmo que a lei tenha sido construída por muitas mãos.

Se se ingressasse com uma ACP (ação civil pública) questionando algo mais específico, com necessidade de controle concreto e difuso de constitucionalidade, em pleito coletivo, o juízo singular deveria promover debate democrático mediante audiências públicas para ouvir aquelas mesmas opiniões difusas, acima mencionadas, agora com líderes e autoridades locais, e portanto conhecedores dos dramas humanos também locais? Há evidências de que sim.

Desse modo, o Estado estaria pondo em prática aquilo que Canotilho chamou de princípio democrático, para quem tal postulado somente estaria satisfeito presente a “democracia participativa, isto é, estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender a democracia, participar dos processos de decisão, exercer controle crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos democráticos[53].

Nesse sentido, o catedrático Peter Häberle pronuncia-se no sentido de que o método concretista da Constituição Aberta requer o alargamento do círculo de intérpretes; o conceito de interpretação como um processo aberto e público; e finalmente a Constituição tida como uma realidade constituída com a devida “publicização”[54].

Como bem complementa o professor David Duarte, da Universidade de Lisboa, dentre outras vantagens, a participação no processo decisório propicia a construção de consenso, o controle e a transparência; ampliando as possibilidades de estancar conflitos[55].

E para que a abertura do círculo de intérpretes não dilua a normatividade e o sentido mínimo do texto escrito, deve o processo público decisório guiar-se por critérios procedimentais que garantam objetividade e impessoalidade no momento de concretização das normas; pois, como ensina Paulo Bonavides[56], deve haver “um não afrouxamento da normatividade pelos órgãos constitucionais judicantes” em todo este processo.

Desse modo, o processo de abertura interpretativa deve estar associado aos parâmetros metodológicos da racionalidade decisória. Deve o intérprete guiar-se, assim, pela dogmática jurídica, com respeito às normas jurídicas, observando doutrina e jurisprudência, de modo que prevaleça o racionalismo guiado pelo substancialismo de valores democraticamente reinantes no ordenamento jurídico; observando sempre a integralidade do sistema de princípios[57]; e sempre atento às consequências práticas da decisão[58].

Em uma mão o princípio participativo, na outra o rigor de uma metodologia no raciocínio jurídico. Assim agindo, poderá o Estado-Juiz legitimar-se em atuação, já que, deste modo, permitirá o correto controle da racionalidade e de justiça do discurso desenvolvido no ato decisório.

Se “tanto o juiz como o administrador atuam como verdadeiros colegisladores”, segundo ensina Alexy[59]; ou se são “coautores de um romance em cadeia”, como diria Dworkin[60]; nada mais natural que dividam com a sociedade a árdua tarefa de interpretar do Direito, e, no caso em questão, que ela participe decisivamente de quem deve ou não ser atendido em casos de disputa por um leito de UTI, quando a morte é consequência imediata para o não atendido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da ideia de que Constituição, Democracia e Princípios sempre devem andar juntos e aglutinados, decorre uma série de desdobramentos que implicam mudança de paradigma no modo de atuar do Poder. Neste contexto, faz-se imprescindível que a Ciência Jurídica construa caminhos por onde deve andar o Estado Democrático de Direito, através dos quais possa o Poder Público tomar decisões alinhadas aos nortes normativo-constitucionais, os quais pressupõem abertura interpretativa, bem como segurança jurídica e metodológica.

Somente mediante a solidificação de um novo paradigma que alcance os processos decisórios do Poder, poderá o Direito do Pós-Positivismo e da Democracia Participativa deitar raízes e se radicar no atual contexto mundial, em que a sociedade demonstra ter anseio por maior envolvimento, maior informação e maior controle da atuação do Estado e dos respectivos processos de decisão.

Em suma, o drama humano não pode ser decidido por um juiz (ou pelo médico-julgador de mérito sobre a destinação de leitos de UTI) enquanto uma unidade. E mesmo critérios gerais e abstratos dispostos em Recomendações de ordem médico-científicas podem e devem ser questionados sob o crivo do procedimento aberto e democrático.

Não se mostrando concebível que critérios que decidam o destino da vida de uma pessoa – enferma ao ponto de precisar ser internada em um leito de UTI – não sejam formulados no seio de um Projeto de Lei com ampla participação social.

Só assim se chegaria ao mais próximo do que seria correto em termos materiais – de correção dos critérios adotados – para escolha de quem deve merecer a sorte de viver por ter acesso a um leito de UTI em tempo de escassez.

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ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica; tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva; revisão técnica da tradução e introdução à edição brasileira de Cláudia Toledo; 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

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__________. Neoconstitucionalismo e a Constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista virtual (blog) desenvolvida pelo autor do artigo. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/neoconstitucionalismo_e_constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2015.

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CANOTILHO, J.J. Gomes. O Direito dos Pobres no Activismo Judiciário. In. Direitos Fundamentais Sociais. 2. Ed., coord. CANOTILHO, J.J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Érica Paula Barcha. São Paulo: Saraiva, 2015.

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DOCUMENTOS:

Recomendações da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19. Disponível em: <https://www.amib.org.br/noticia/nid/recomendacoes-da-amib-abramede-sbgg-e-ancp-de-alocacao-de-recursos-em-esgotamento-durante-a-pandemia-por-covid-19/>. Acesso em: 10 de maio de 2020.

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Sobre o autor
Kepler Gomes Ribeiro

Juiz Federal, Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas - Universidade de Lisboa; Mestre em Ciências Jurídico-Ambientais - Universidade de Lisboa; Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp/LFG; Formação em Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente - Universidade de Coimbra.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

COVID-19. Leitos. UTI. Escolha de Sofia. Constitucionalismo. Democracia.

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