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O poder discricionário do Estado em face do princípio da razoabilidade e da moderna atuação do Poder Judiciário

11/04/2006 às 01:00
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Introdução

Muito difundida é a prerrogativa da Administração Pública na edição e concretização dos atos administrativos ditos discricionários. Todavia, a literal adoção de tais postulados, sem maiores reflexões, podem acarretar efetivas lesões a direitos, individuais ou coletivos, dos administrados - e dos mais variados aspectos - inclusive aqueles taxativamente insculpidos na Constituição Federal. Há situações em que o Estado-Administração, nesta qualidade, situa-se em posição frontal com o indivíduo, ocasiões tais que os interesses deste são aniquilados – de forma unilateral - por conta da deliberada e consagrada prerrogativa da discricionariedade, até então tida como inatacável na visão de alguns agentes públicos.

Assim, à plena luz do novo milênio, ainda se ouve falar, e não raro se faz sentir, o velho e ultrapassado dogma da potencial - senão absoluta - intangibilidade dos atos administrativos discricionários perpetrados pelo Poder Público, no que tange aos demais aspectos que não a legalidade e a legitimidade.

Longe de se querer opor ao reconhecimento, ou mesmo à necessidade, de tal característica em alguns dos atos do Estado, ousamos discordar daqueles que reconhecem absolutos os poderes discricionários do administrador. O Estado, por sua própria natureza e importância, tem de se revestir de proteção, mas encontra, aí, limitações várias, notadamente em face do consagrado princípio da razoabilidade ou proporcionalidade.[01]

A zona limítrofe entre estes aspectos, a atuação do Poder Judiciário e as tendências concretas de mudança constituem o objeto deste pequeno ensaio.


Discricionariedade nos atos do Poder Público

A lei só outorga ao administrador o poder discricionário porque é absolutamente impossível se elencar ou prescrever a melhor opção de ação ou atuação em todas as circunstâncias da condução da coisa pública. Há, portanto, liberdade do administrador em muitas escolhas de atuação, mas deve-se adotar a melhor opção, motivando-a com prudência e inteligência. Razoabilidade, normalidade, equilíbrio e finalidade são aspectos pelos quais deve abalizar-se o administrador para o desempenho escorreito do seu mister. Não é norma de conduta. A motivação do ato, em verdade, é fim desejado pelo próprio Estado Democrático de Direito. Decisão administrativa discricionária não se confunde com atuação administrativa arbitrária e essa motivação decorre dos preceitos contidos nos artigos 1º, 5º e 37 da Constituição Federal.

Discricionariedade absoluta, em sede de ato administrativo, pode-se dizer que é coisa do passado. Em nosso Estado de Direito é inconcebível. Aliás, "Já se tem reiteradamente observado, com inteira procedência, que não há ato propriamente discricionário, mas apenas discricionariedade por ocasião de certos atos" na idônea lição de Celso Antonio Bandeira de Mello.[02]

Poder discricionário é uma coisa; ato discricionário, outra bem diversa, fato que por vezes não é bem compreendido por certos agentes políticos. A diferença entre atos do poder vinculado e do poder discricionário está na possibilidade de escolha do agente, inobstante ambos tenham de ser fundamentados. O que é discricionário, a rigor, é o poder do administrador. Conforme, aliás, já se pronunciou com sobriedade o Superior Tribunal de Justiça, nos seguintes termos: "O ato administrativo é sempre vinculado, sob pena de invalidade"[03]. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra; ao administrador incumbe conferir a solução mais adequada à situação concreta, sempre norteado pelo princípio da razoabilidade.

Tais ponderações são necessárias porque o Poder Público, leia-se a Administração Pública, por obra de alguns administradores, apegado às premissas do passado, torna-se recalcitrante às mudanças de pensamento, e, apenas com olhos nos postulados clássicos, finca-se no caráter absoluto do ato e chega ao cúmulo de o reputar como sempre impassível de apreciação pelo Poder Judiciário. Infelizmente, por que respaldado por posições ainda majoritárias de doutrina e da jurisprudência.


Mudança de Paradigma

Mas há ares de mudança. Sim, porque vivemos, como já mencionado, em outros e novos tempos. Sensível a tal casuística, sobressai hodiernamente, e não poderia ser diferente, a interferência de cunho corretivo do Poder Judiciário, senão expurgando, ao menos amenizando os malefícios advindos do entendimento estatal em comento. E tal orientação vem sendo largamente adotada pelos órgãos julgadores justamente sob o pálio do princípio da razoabilidade. [04]

"Não pode o Direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica, o que constitui o fundo e a razão de ser de toda evolução jurídica", já disse Carlos Maximiliano.[05]

O abalizado professor Celso Antonio Bandeira de Mello, na obra citada, preleciona: "Não se confundem discricionariedade e arbitrariedade. Ao agir arbitrariamente o agente estará agredindo a ordem jurídica, pois terá se comportado fora do que lhe permite a lei. Seu ato, em conseqüência, é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente. Em rigor, não há, realmente, ato algum que possa ser designado, com propriedade, como ato discricionário, pois nunca o administrador desfruta de liberdade total."

Sábio e preocupado com os rumos da prestação jurisdicional na modernidade, Cândido Rangel Dinamarco, ressalta que "figura o valor Justiça como objetivo-síntese da jurisdição no plano social", razão pela qual, "se só à lei estiver o juiz atento, sem canais abertos às pressões axiológicas da sociedade e suas mutações, ele correrá o risco de afastar-se dos critérios de justiça efetivamente vigentes... sempre é preciso reconhecer que o momento de decisão de cada caso concreto é sempre um momento valorativo"[06]

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Atuação Jurisdicional e Poder Político

E aí, como corolário lógico desse entendimento, como expressão nítida da independência funcional do poder de julgar, diversos órgãos jurisdicionais, nas mais variadas instâncias, têm acolhido, quando acionados, as súplicas que lhes são apresentadas, fulminando os atos arbitrários, revestidos de discricionários e causadores de gravíssimos malefícios a quem os suporta.

No mesmo diapasão, vemos quão ponderado é o posicionamento do Min. Néri da Silveira, ao delinear que: "a competência para operar, acerca da lei, a chamada judicial review revela manifesto poder político, porquanto, se este existe no órgão que faz a lei, importa entender, inafastavelmente, estar presente, por igual, no órgão que dispõe de império para declarar-lhe a invalidade. Daí resulta, outrossim, a compreensão de que a função judiciária, que aos magistrados incumbe exercer, não se pode considerar como atividade estritamente jurídica. No controle sobre os atos do Legislativo e do Governo evidencia-se o caráter político de que está investido o Judiciário no desempenho da competência para proclamar a inconstitucionalidade ou invalidade desses atos. Essa função política, que, em tais limites se revela numa democracia, onde consagrado o controle judicial da constitucionalidade das leis e atos do Governo, traz, em si, ínsita a nota de independência"[07]-[08]


Conclusão

A Cidadania, a isonomia, a dignidade da pessoa humana, o reconhecimento dos valores sociais do trabalho, não só como fundamentos e princípios perseguidos pela moderna ordem constitucional, também se traduzem em verso e reverso de uma mesma moeda, de uma nova visão: a pessoa humana em primeiro plano. Daí dizer-se que, em futuro não distante, não mais prevalecerá o ato arbitrário de alguns agentes públicos, insensíveis na prática de atos que aniquilam e restringem direitos, ora perpetrados em obediência estrita à literalidade de certas normas, ora por via transversa, sob o manto do discricionarismo exacerbado e injustificado.

Talvez ainda leve algum tempo, mas o certo é que dia chegará em que veremos extintos por completo atos arbitrários, travestidos de discricionários, atentatórios que são aos princípios já comentados, quando dirigidos ao indivíduo em particular.

Cumpre, agora, aos demais entes e órgãos do Poder Público, dos mais diversos escaninhos, visualizar este novo horizonte e pautar-se mais pela razoabilidade prática e menos pela discricionariedade teórica, eis que - no apagar das luzes – o indivíduo destinatário do ato, o administrado, o servidor público, o munícipe, o contribuinte, enfim, o mais fraco, é, em última análise, o seu efetivo e verdadeiro patrão. E é para ele, individual ou coletivamente considerado, que existe este ente chamado Estado.


Notas

  1. O desenvolvimento da moderna doutrina do princípio da proporcionalidade encontra suas raízes no direito alemão denominado de Verhältnismässigkeitprinzip.

  2. Curso de Direito Administrativo, 10ª ed., Malheiros, 1998, p. 266.

  3. Resp. nº 79761 – DF – Rel. Ministro Anselmo Santiago – j. 29.04.97 – DJU 09.06.97 – p. 25574.

  4. A Lei nº 9.784/99, que regula o Processo Administrativo Federal, prevê, no art. 2º, caput, o princípio da razoabilidade/proporcionalidade como sendo de observância obrigatória por parte da Administração Pública.

  5. In Hermenêutica e Aplicação do Direito, RJ, Freitas Bastos, 1961, p. 200.

  6. In: A instrumentalidade do processo, 1ª ed., Ed. RT, p. 420/421).

  7. Aspectos Institucionais e Estruturais do Poder Judiciário Brasileiro, "O Judiciário e a Constituição", coordenação do Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO, Ed. Saraiva, 1994, p. 3/4.

  8. "O posicionamento do Judiciário como Poder da República representa, antes de tudo, garantia de representatividade do próprio cidadão perante os demais Poderes e implica em cumprimento aos comandos constitucionais de resguardo de direitos" Luiz Roberto Xavier, A RAZOABILIDADE COMO PARÂMETRO PARA A ATUAÇÃO CONTEMPORÂNEA DO JUDICIÁRIO, RJ/222/21).

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOSIN, Carlos Eduardo. O poder discricionário do Estado em face do princípio da razoabilidade e da moderna atuação do Poder Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1014, 11 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8232. Acesso em: 26 abr. 2024.

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