Limitação quantitativa em épocas de crise

19/05/2020 às 10:25
Leia nesta página:

Discussão acerca da legalidade da imposição da limitação quantitativa.

Desde que se teve notícia do surgimento de um “vírus de grande capacidade de disseminação”, denominado por entidades internacionais como COVID-19, a vida dos brasileiros está em permanente mutação.

Seguindo recomendações da área médica e científica, diversas as autoridades governamentais declararam “estado de calamidade pública”, determinaram o fechamento de comércio e serviços não essenciais e ainda recomendaram para a população o isolamento social, abrindo-se campanhas para que todos evitem sair de casa. Enquanto não se tem um tratamento ou vacina, ao que tudo indica, o isolamento social se mostra como a melhor alternativa.

Frente ao rápido crescimento do número de contaminados e o volume grande de mortes divulgadas diariamente nos noticiários internacionais, o medo da doença também se disseminou pelo Brasil e grande parte da população aderiu ao isolamento. 

Como consequência direta do isolamento e diante do cenário econômico tão incerto, muitas pessoas passaram a realizar compras de grandes quantidades de alimentos e demais produtos em supermercados, objetivando com isso manter produtos estocados em suas residências durante o período de “quarentena”.

O aumento inesperado no consumo de alguns produtos trouxe reflexos imediatos no ramo do varejo. Há relatos de falta de diversos produtos nas gôndolas de supermercados, como por exemplo: álcool em gel, papel higiênico, luvas, máscaras, produtos de limpeza, alimentos em geral como molho de tomate, massas, frutas e vegetais.

Para atender a clientela e garantir o fornecimento de produtos para o maior público possível, alguns comerciantes passaram a impor limitações quantitativas por consumidor / família, eis que sem a adoção dessa medida, permitir-se-ia que poucas pessoas pudessem estocar determinados produtos enquanto as gôndolas dos supermercados ficariam vazias para outros consumidores.

O mundo jurídico, que adora uma polêmica, abriu a discussão acerca da legalidade da imposição da limitação quantitativa.

Alguns operadores do direito e associações de defesa dos consumidores passaram a questionar se a conduta de limitar quantitativamente a venda de produtos caracteriza prática abusiva de acordo com o art. 39, I, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), a seguir transcrito:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;

A lei consumerista de fato veda a imposição de limitação quantitativa aos consumidores. Há inúmeros precedentes de autuações administrativas, imposições de penalidades face a essa prática. Se analisada de forma isolada, certamente a conduta caracterizará infração legal.

Há, porém, o outro lado da discussão. Os comerciantes que adotaram a prática sustentam que não há infração à norma consumerista, eis que, ao usar a expressão sem “justa causa”, a lei impõe que a vedação à limitação quantitativa ocorre somente quando não existir uma causa justa.

No cenário atual da pandemia, com a extensão do período de quarentena e incomum aumento de demanda para compra de itens essenciais de subsistência (alimentação, higiene pessoal e limpeza), parece-nos estar presente o elemento que a lei convencionou chamar de “justa causa”.

O crescimento incomum e repentino no consumo desses produtos para subsistência básica familiar gera impactos muito maiores do que os inicialmente imaginados. Além de causar prejuízos à imagem do comerciante, que não consegue atender minimamente os seus consumidores em razão da falta de mercadorias, também gera consequências coletivas.

Não é nem um pouco benéfico para a coletividade permitir que poucos realizem compras de grandes quantidades de determinados produtos, ocasionando a falta deles para outros. Atende os interesses de alguns em detrimento do direito de uma maioria ter acesso aos produtos básicos.

A ideia de impor a limitação quantitativa é justamente permitir que o comerciante atenda os interesses do maior público possível, garantindo às pessoas itens básicos de subsistência e higiene, sobretudo em momentos de calamidade pública como esse que vivemos.

Portanto, parece-nos que está mais do que presente a justa causa para a imposição da limitação quantitativa para a comercialização de alguns produtos ligados à alimentação, limpeza e higiene.

Além disso, como a medida tem por objetivo garantir o acesso a itens básicos de sobrevivência para o maior volume de pessoas, pode-se dizer com segurança que a conduta está alinhada com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, isonomia, vulnerabilidade, transparência e informação.

Seguindo essa mesma linha de que mesmo em se tratando de relação de consumo, não se pode privilegiar interesses individuais em detrimento do coletivo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se pronunciou no sentido de que não se pode admitir que o consumidor exija quantidades incompatíveis com o seu consumo individual ou familiar, mesmo em situações fora de crise, conforme se observa de trecho de decisão daquela Corte:

 

(...) A falta de indicação de restrição quantitativa à oferta de determinado produto, pelo fornecedor, não autoriza o consumidor a exigir quantidade incompatível com o consumo individual ou familiar, nem, tampouco, configura dano ao seu patrimônio extramaterial.  (REsp. 595.734/RS, Rel. originária Min. Nancy Andrighi, Rel. para o acórdão Min. Castro Filho, DJ 28/11/2005).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

O jurista Luiz Antonio Rizzato Nunes também entende como justificável a limitação quantitativa em épocas de crise como a enfrentada pelo país. E o fundamento é justamente permitir que a população, especialmente os menos favorecidos, não deixe de ser abastecida.

Até o momento, há um direcionamento de alguns órgãos de defesa do consumidor no sentido de que a imposição de limitação quantitativa no cenário de pandemia do COVID-19 não infringe as normas consumeristas:

- O Diretor Executivo do Procon SP, em live realizada no dia 26 de março de 2020 na rede social do Procon-SP (Instagram @proconsp), informou que a limitação quantitativa que vem sendo realizada nos comércios de São Paulo em razão do COVID-19 não infringe a Lei 8.078/90, eis que os fornecedores possuem justa causa para limitar a quantidade de produtos, mostrando-se tal medida como necessária para garantir que produtos essenciais alcancem o maior número de pessoas.

- A Promotora de Justiça de Defesa do Consumidor de Porto Velho/RO recomendou aos estabelecimentos comerciais que procedam a limitação quantitativa do número de unidades vendidas, por consumidor, nos termos do artigo 39, I do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, por haver justa causa para esse racionamento, conforme orientação do Comitê Nacional de Defesa do Consumidor (CNDD).

-  O Comitê Nacional de Defesa dos Direitos Fundamentais do Consumidor (CNDD-FC) divulgou, no dia 17 de março de 2020, a Nota Técnica CNDD-FC nº 01/2020 esclarecendo que não constitui prática abusiva a limitação da quantidade de produto ou serviço nas vendas do comércio, pois tal medida visa “garantir o abastecimento do mercado e atender as necessidades dos consumidores, em situação de grande procura, e enquanto durar a pandemia”.

Ainda que a imposição de limitação quantitativa em épocas como na atual não caracterize infração às normas consumeristas, recomenda-se que os comerciantes informem seus consumidores de forma clara e objetiva acerca da existência dos limites de comercialização de cada um dos produtos, para cumprir o dever de informar previsto na lei.

BIBLIOGRAFIA:

Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90

GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2007.

LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de direito do consumidor. 7 ed. São Paulo: Saraiva. 2012.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Fernanda Despirto

Advogada, pedagoga e apaixonada por aprender e ensinar.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos