Sistema particular, pessoalidade e imoralidade

24/05/2020 às 16:05
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A afirmação do Presidente dizendo que possui um sistema particular de informações pode levar a um processo de impeachment, diante da violação dos princípios que regem a Administração Pública.

INTRODUÇÃO

Em reunião ministerial realizada em maio do corrente ano, o Presidente Jair Bolsonaro afirmou ter um sistema particular de informações. A fala proferida pode ocasionar séria violação aos princípios da impessoalidade, probidade e da moralidade, podendo ocasionar crime de responsabilidade, que é passível de impeachment. Assim como antes já era questionada uma possível interferência na Polícia Federal, agora o Governo entra em mais um possível ferimento de princípios que regem a administração pública.

O Presidente afirma que o seu sistema particular é formado por amigos, porém, o que os dados mostram, é diferente. A partir de dados obtidos pelo Jornal O Globo, a ABIN recebeu mais de mil relatórios de inteligência, para repassar informações a Bolsonaro. Desse modo, é observado que a ABIN é comandada pelo delegado da Polícia Federal e amigo de Bolsonaro, Alexandre Ramagem, que foi motivo de um da Saída do Ex-Ministro da Justiça, Sergio Moro, que acusa o Presidente de tentar interferir na Polícia Federal. É necessária uma análise dos princípios da impessoalidade e da moralidade, que regem a administração pública e que podem ter sido feridos por Bolsonaro.

 

1 – O sistema particular dito por Bolsonaro na reunião

Em reunião ministerial realizada no dia 22 de abril do corrente ano, o Presidente afirmou ter um sistema particular de informações, que funciona, diferente do oficial [1]. As referidas falas foram proferidas da seguinte forma:

"Sistemas de informações: o meu funciona. [...] O meu particular funciona. Os ofi... que tem oficialmente, desinforma. E voltando ao ... ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho".

"Eu tenho as inteligências das Forças Armadas que não tenho informações. ABIN tem os seus problemas, tenho algumas informações. Só não tenho mais porque tá faltando, realmente, temos problemas, pô! Aparelhamento etc. Mas a gente num pode viver sem informação."

Jair Bolsonaro afirmou que o seu sistema particular é composto por seus amigos, que exercem funções públicas e funciona melhor que os oficiais. Porém, dados contradizem a fala do Presidente, onde mostram que a ABIN, que é comandada por Alexandre Ramagem, amigo da família Bolsonaro e principal motivo da demissão do Ex-Ministro Sergio Moro, recebeu 1.272 relatórios de inteligência para repassar informações a Bolsonaro [2].

A divulgação da reunião ministerial ocorreu após a liberação por parte do Ministro Celso de Mello, que é relator do inquérito sobre suposta intervenção de Bolsonaro na Polícia Federal. A liberação seria a principal prova do Ex-Ministro da Justiça, Sergio Moro, sobre a referida interferência. Após o ocorrido, o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, se manifestou cobrando explicações de Bolsonaro:

"O presidente deve sérias explicações à nação sobre esse sistema paralelo de informações que diz possuir, que aparentemente tem sido usado para vazar investigações em curso sobre sua família e amigos. O uso da função pública para interesses particulares fere os princípios da impessoalidade e da moralidade"

 

2 – Dos princípios da administração pública

As normas para a realização de atividades por órgãos e entes da administração pública são acompanhadas de preceitos gerais [3], que devem ser seguidos. Observando que as atividades da administração pública são disciplinadas pelo direito administrativo, os princípios são considerados princípios jurídicos da Administração Pública brasileira. A previsão legal está elencada no artigo 37, caput, da Constituição Federal:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”

Desse modo, os princípios estabelecidos no artigo 37, caput, da Constituição Federal, são os mais importantes para a Administração Pública, os outros princípios a serem ocorrem na elaboração jurisprudencial e doutrinária e são indicados com mais frequência, podendo ter também base constitucional, por referência implícita.

 

2.1 – Do princípio da impessoalidade

De modo geral, o princípio da impessoalidade busca condenar vantagens e discriminações, levando a imparcialidade na defesa do interesse público [4]. Em razão disso, a Constituição Federal deixa claro que o legislador visava acabar com qualquer tipo de favorecimento indevido, como nepotismo, antipatias e vinganças. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal trata de maneira clara esse princípio:

“É inexequível a precisão dos interesses públicos e privados envolvidos, ressalvando-se, ademais, a obrigatoriedade de o Poder Público pautar seus atos pelo respeito aos princípios da administração pública, em especial, no caso dos autos, aos da legalidade e da impessoalidade (art. 37, caput, da CF/88).“ [5]

Logo, deve predominar o interesse público e não os favorecimentos pessoais, em situações que tratam de interesses difusos. A impessoalidade constitui a exigência de cautela equilibrada de todos os interesses envolvidos, para que não se editem decisões movidas por preconceitos.

 

2.2 – Do princípio da moralidade

O princípio da moralidade impede que o administrador público se afaste da moral, honestidade e boa-fé [6]. Desse modo, as decisões realizadas pela administração pública não podem destoar do contexto e do conjunto de regras que servem como norte para o Direito Administrativo. Por isso, pode-se configurar ato imoral, por exemplo, uma conduta a qual em um período de crise o administrador público gasta a verba pública para a aquisição de automóveis de luxo para servir autoridades, mesmo que os gastos sejam legais, eles são imorais. Assim, pode ser observado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal o entendimento do princípio da moralidade:

“O princípio da moralidade pauta qualquer ato administrativo, inclusive a nomeação de Ministro de Estado, de maneira a impedir que sejam conspurcados os predicados da honestidade, da probidade e da boa-fé no trato da res pública. Não por outra razão que o caput do art. 37 da CF indica como diretriz administrativa: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...” [7]

A Constituição da República Federativa do Brasil, além tratar da imoralidade como um dos princípios do Direito Administrativo, baliza instrumentos para confirmar sua inobservância. É o caso da ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão (no sentido de detentor de direitos políticos) para anular ato lesivo à moralidade administrativa (art. 5º, LXXIII). (pág 115)

 

2.3 – Da probidade administrativa

O crime de improbidade é tratado no artigo 37, 4° da Constituição Federal, e trata do comportamento do servidor público, que deve ser pautado sob a moralidade, legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. Em razão disso, toda conduta que viole os princípios citados, estará sujeita as observâncias legais, conforme prevê a Constituição Federal:

 “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: 

§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. ” [8]

 

3 – Dos crimes de responsabilidade

Os agentes políticos podem cometer crime de responsabilidade, que estão previstos na legislação Lei n° 1.079/50, em que podem ser passíveis de impeachment, desse modo, se encontram na lista de agentes políticos os Chefes do Executivo federal e estadual, Ministros de Estado, Ministros do STF, Procurador-Geral da República, Secretários de Estado. No caso do Presidente da República, o artigo 4° da referida Lei afirma que:

“Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra:

I - A existência da União:

II - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados;

III - O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

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IV - A segurança interna do país:

V - A probidade na administração;

VI - A lei orçamentária;

VII - A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;

VIII - O cumprimento das decisões judiciárias” [9]

Se tratando de crimes de responsabilidade cometidos por agentes políticos, as leis específicas tratam do ditame processual e a competência para julgar. Muitas vezes, o conhecimento de fatos ou atos tipificados como crimes funcionais ou de responsabilidade advém de sindicância, processo administrativo ou relatório de Comissão Parlamentar de Inquérito.

 

4 – A Lei da ABIN

A Lei n° 9.883, de 7 de dezembro de 1999, instituiu o Sistema Brasileiro de Inteligência, e criou a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN. A legislação tem como objetivo criar um serviço de inteligência que auxilie o Presidente da República nos assuntos de interesse nacional. Logo, o Sistema Brasileiro de Inteligência tem como base a defesa do Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana, conforme a referida Lei:

“Art. 1o Fica instituído o Sistema Brasileiro de Inteligência, que integra as ações de planejamento e execução das atividades de inteligência do País, com a finalidade de fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional.

§ 1o O Sistema Brasileiro de Inteligência tem como fundamentos a preservação da soberania nacional, a defesa do Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana, devendo ainda cumprir e preservar os direitos e garantias individuais e demais dispositivos da Constituição Federal, os tratados, convenções, acordos e ajustes internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte ou signatário, e a legislação ordinária.

§ 2o Para os efeitos de aplicação desta Lei, entende-se como inteligência a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado. ” [10]

É observado então que a Agência Brasileira de Inteligência produz relatórios e análises que visam proteger a soberania nacional, não podendo esses relatórios servir para o interesse particular, agindo dessa forma em constante harmonia com os princípios da moralidade e da impessoalidade na Administração Pública.

 

5 – Conclusão

A moral, honestidade e boa-fé são imprescindíveis para o bom funcionamento do Poder Público, tal como a garantia desses atos estão resguardados pelos princípios da moralidade e da impessoalidade. Assim sendo, a legislação da Agência Brasileira de Inteligência é específica no uso dos relatórios e análises inteligentes, que só deverão ser utilizadas no auxílio ao Presidente da República em situações de interesse nacional, com base na defesa do Estado de Direito e da dignidade da pessoa humana.

É de pleno conhecimento que Bolsonaro utiliza de um sistema particular para obter informações, o que poderia configurar ato ilícito caso o referido sistema fosse constituído por agentes públicos. Assim, ao mesmo tempo que reclama de sistemas oficiais de informação, que não prestam um bom serviço, a afirmação do Presidente se contradiz com a realidade mostrada por dados da ABIN, que produziu mais de mil relatórios ao Presidente.

Na mesma toada, há de se observar se o referido sistema particular se trata de serviços públicos usados para benefício próprio, pois a Agência Brasileira de Inteligência deve produzir relatórios para a defesa da soberania nacional e em caso contrário, poderia ocasionar uma violação aos princípios constitucionais e o crime de improbidade administrativa, que de maneira consequente, poderia acarretar um processo de impeachment.

 

REFERÊNCIAS

[1]https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/em-reuniao-bolsonaro-diz-que-tem-sistema-particular-de-informacoes-que-funciona-e-que-o-sistema-oficial-desinforma.ghtml

[2]https://oglobo.globo.com/brasil/abin-recebeu-1272-relatorios-de-inteligencia-para-repassar-informacoes-bolsonaro-24442887

[3] (MEDAUAR, OdeteDireito Administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 111 p.)

[4] (MEDAUAR, OdeteDireito Administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 113 p.)

[5] (STF-MANDADO DE SEGURANÇA: MS 31697 DF, Julgamento 11 de Março de 2014, Relator Min. DIAS TOFFOLI)

[6] (MEDAUAR, OdeteDireito Administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 114 p.)

[7] (STF - MEDIDA CAUTELAR EM MANDADO DE SEGURANÇA: MC MS 0051780- 31.2016.1.00.0000 DF - DISTRITO FEDERAL 0051780- 31.2016.1.00.0000, Relator Min. GILMAR MENDES, Julgamento 21 de Março de 2016).

[8] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[9] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1079.htm

[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9883.htm

Sobre o autor
Pedro Vitor Serodio de Abreu

LL.M. em Direito Econômico Europeu, Comércio Exterior e Investimento pela Universität des Saarlandes. Legal Assistant na MarketVector Indexes.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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