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Considerações acerca do dever de fundamentação das decisões:

a legitimidade democrática argumentativa do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito brasileiro

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22/04/2006 às 00:00
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4 - Para que serve a fundamentação das decisões judiciais.

            Seguindo as diretrizes traçadas por josé carlos vieira de andrade, na obra que serviu de base para as linhas ora escritas, pode-se afirmar que o dever de fundamentação das decisões judiciais, além das funções já genericamente aduzidas, cumpre três funções principais, a saber:

            1- assegurar o cuidado na formação da vontade decisória – que seria conseguido pela imposição de um procedimento racional para a tomada de decisão. Neste sentido, o dever de fundamentação, reforçado pela garantia da publicidade do processo, visa a obrigar uma ponderação mais cuidadosa dos interesses em jogo e uma maior atenção à racionalidade intersubjetiva na escolha da melhor solução para o caso concreto, o que deve trazer uma melhoria da qualidade e legitimidade da decisão.

            2- possibilitar o controle das decisões - tanto o controle intersubjetivo pelos jurisdicionados, pelo acesso às razões de decidir; quanto o controle de legitimidade das decisões, permitindo que se faça uma opção consciente entre a sua aceitação ou a impugnação via recurso.

            3- garantir a transparência das decisões, que é uma exigência do Estado de Democrático de Direito, e que possibilita, por exemplo, o controle da igualdade de tratamento.

            Para atender a estas funções, e ainda seguindo-se os ensinamentos de Vieira de Andrade, o dever de fundamentação deve conter uma estrutura que lhe permita ser uma declaração de autoria, explicita e contextual.

            Não obstante esses aspectos estruturais pareçam óbvios, a prática, como veremos a seguir, revela que não são e nem sempre estão presentes, o que prejudica o alcance dos objetivos mencionados.

            Por declaração de autoria entenda-se a o dever de responsabilidade do órgão decisório para com o exercício de seu poder, e sua auto-vinculação. Não que o órgão esteja totalmente vinculado às suas próprias decisões, mas para modificá-las, sem constranger os imperativos de igualdade de tratamento dos casos similares (ou de imparcialidade), terá um ônus argumentativo maior.

            Por explícita entenda-se que a fundamentação deve ser expressa, não se devendo admitir as fundamentações "per relationen" como ocorre muitas vezes. Assim, se há referência a um precedente, deve-se explicitar as razões que levaram à consideração daquele caso como precedente – que aspectos fazem aquele caso ao qual se remete ser considerado um precedente. Caso assim não seja, tem-se por prejudicado o principal objetivo do dever de fundamentação, que é justamente fazer que a decisão venha acompanhada de uma racionalidade – o que aumenta sua chance de correção.

            Por contextual entenda-se que não basta que a decisão seja expressa, ela deve estar no mesmo documento formal que comporta a decisão em si (o dispositivo). Também parece óbvio, mas trata-se aqui de uma garantia de que o momento da fundamentação coincida com o momento decisório, evitando-se as fundamentações póstumas ou outros tipos. Se isso não garante que a exposição de razões apresentada sejam realmente as razões que desencadearam a decisão, pelo menos diminui as possibilidades de falseamento.

            Abusando da lição de Vieira de Andrade, pode-se dizer que a contextualidade da decisão gera uma imposição de contemporaneidade, excluindo fundamentos total ou parcialmente sucessivos, e um imperativo de unicidade ou unicidade formal, excluindo as fundamentações autônomas relativamente à decisão. Como dito, pela contemporaneidade pretende-se assegurar a probabilidade causal dos fundamentos invocados pelo autor da decisão, bem como facilitar seu conhecimento pelos interessados. Além disso, visa a garantir que a declaração de razões seja emitida no momento da tomada de decisão.

            Além disso, ela reforça ainda mais a importância da autoria, promovendo a ligação ou a unidade física entre os fundamentos e o conteúdo da decisão. O autor do ato tem de declarar quais as verificações, apreciações ou ponderações de que partiu para tomar aquela decisão, na mesma forma concreta, no mesmo texto, em que exterioriza a decisão tomada.


5 - A fundamentação das decisões na jurisprudência brasileira. Análise e Crítica

            A análise da jurisprudência brasileira no tocante à fundamentação das decisões judiciais permite, de plano, as seguintes constatações:

            1- há casos cuja fundamentação faz referência a precedentes totalmente desvinculados da questão litigiosa, e que sequer poderiam ser considerados precedentes, não havendo sequer esforço do órgão julgador em demonstrar/justificar por que aquele caso pode ser considerado um precedente para a decisão de outro, ou seja, em que medida os casos são análogos e as razões de decidir de um, nesta medida, devam ser as razões de decidir do outro.

            Nestas hipóteses, e a partir do delineamento do dever de fundamentação das decisões proposto acima, a não justificação do precedente ensejaria vício de fundamentação, por insuficiência.

            2- há casos em que, não obstante a existência de precedentes, a fundamentação das decisões sequer os leva em conta. Muitas vezes, o precedente é superado como se jamais houvesse existido, sem qualquer aumento no esforço justificativo para sua superação.

            Nestas hipóteses, em que a fundamentação da decisão não leva em conta as razões de decidir ou a decisão de interpretação eleita anteriormente para os casos análogos, avilta-se o princípio do igual tratamento. Não que um precedente não possa ser superado. Pode, mas sua superação requer o enfrentamento das razões de decidir utilizadas anteriormente e uma carga argumentativa alta o suficiente para justificar esta superação.

            3- para não ficar apenas no terreno da crítica, pode-se verificar também em nossa jurisprudência decisões muito bem fundamentadas, que não deixam nada a dever aos principais órgãos jurisdicionais do Ocidente.

            Sendo mais específico na análise jurisprudencial e evidenciando as disparidades qualitativas no trato do dever de fundamentação das decisões, podemos citar, positivamente, os Resp 26.543-9-PR-EDcl, da 3ª Turma do STJ, e Resp17.010-CE, da 2ª Turma do STJ, em que por votação unânime deram provimento aos recursos que visavam à anexação, aos autos, da fundamentação de julgados anteriores que foram adotadas como razões de decidir dos casos em questão.

            Como dito linhas atrás, embora a estrutura do dever de fundamentação delineada neste breve trabalho parecesse óbvia, nem sempre é cumprida pelo órgão jurisdicional. Nos dois casos ora colacionados, o provimento dos recursos garantiu muito mais que a obediência a uma mera estrutura formal – tornou efetiva, mediante a garantia da unicidade formal acima traçada, a possibilidade de conhecimento integral das decisões, contribuindo para efetivar os imperativos de publicidade e transparência, e assegurando a possibilidade de controle das decisões (permitindo sua aceitação ou a utilização das vias recursais para questioná-las).

            Caso sempre fosse assim, não correr-se-ia o risco, como se está sempre correndo, de um órgão jurisdicional adotar como fundamento de determinada decisão, outra decisão cujos fundamentos sequer foram publicados, impossibilitando, dentre outros, a própria formulação de recurso (como recorrer de uma decisão cujos fundamentos não se conhece?).

            Embora pareça uma hipótese absurda, tal situação ocorreu no Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 216259 AgR/CE, em 09 de maio de 2000, de relatoria do Min. Celso de Mello, que versava sobre a constitucionalidade de Taxa de Fiscalização cobrada pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM.

            O Agravo Regimental em comento impugnava decisão monocrática do Ministro Relator porquanto este havia, dentre outras questões impugnadas, adotado como precedente para o julgamento do feito, decisão plenária que sequer havia sido publicada – decisão esta que havia, por maioria qualificada, reconhecido a constitucionalidade da taxa impugnada.

            Apoiado no artigo 101 [20] do Regimento Interno do STF, o eminente Ministro Relator declarou-se vinculado àquela decisão, adotando-a como precedente sem ver maiores problemas no fato de sua não publicação.

            Não obstante a alegação da parte agravante de que a não publicação da decisão impedia que o precedente fosse utilizado para fundamentar as razões de decidir do caso, na medida em que somente com a publicação é que seria possível levar ao conhecimento dos interessados os termos da decisão judicial prolatada (fls. 330 do AgR), o Agravo Regimental foi improvido por votação unânime.

            Trata-se de caso paradigmático de total ofensa ao dever de fundamentação das decisões, praticado pela Suprema Corte sem qualquer cerimônia.

            Ora, embora fundamentação e publicação das decisões sejam atos distintos, e que se dão em momentos distintos, a publicação é ato complementar indispensável à garantia do cumprimento das funções do dever de fundamentação – notadamente o de dar transparência à decisão e o de possibilitar o seu controle, além do fato de que a publicidade, por si só, opera no sentido de exigir do órgão julgador um maior esforço justificativo.

            No litígio em exame, a não publicação da decisão do caso adotado como precedente, eximiu o STF do dever de demonstrar que realmente se tratava de um precedente (justificação externa), ao mesmo passo em que inviabilizou qualquer possibilidade de questionamento por parte do interessado – que se viu obrigado a somente discutir o vício patente do dever de fundamentação, ainda sem lograr êxito.

            Por conta deste disparate, remeta-se, uma vez mais, à imperiosa necessidade de unicidade formal acima postulada, que não obstante pareça óbvia, nem sempre é cumprida.

            Ainda como exemplo negativo, extrai-se da RJTJESP 115/207 que "o juiz não está obrigado a responder todas as alegações das partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para fundar a decisão, nem se obriga a ater-se aos fundamentos indicados por elas e tampouco a responder um a um todos os seus argumentos" (grifos nossos).

            Ora, dizer que o julgador não se obriga a analisar todos os argumentos aduzidos pelas partes pode até ser discutido – embora entendamos que um argumento sobre determinado dispositivo legal o transforma em um novo fundamento [21]- mas dizer que ele não se obriga a responder todos os fundamentos indicados pelas partes é negar todo o esforço construtivo até aqui empreendido, abrindo-se amplo espaço à arbitrariedade e negando-se, em última análise, o próprio dever de fundamentação, pois dizer que cabe ao magistrado escolher quais fundamentos vai e quais não vai responder, equivale a dizer que ele não tem a obrigação de justificar que a decisão prolatada seja aceitável, podendo escolher, dentre as possíveis, a que melhor lhe convier (restando, portanto, eximido do dever de justificação material, na medida em que, mesmo que haja uma possibilidade de interpretação mais suportável pelo ordenamento jurídico que a decisão prolatada, o julgador não estará obrigado a contraditá-la).

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            Embora claramente absurdo, o entendimento acima é ainda corroborado por vários julgados do STJ, como, v.g. no AI 169.073-SP-AgRG, rel. Min. José Delgado, 1ª Turma.

            5.1 – Critérios para uma fundamentação suficiente

            Como vimos, a fundamentação consiste numa externação das razões de fato e de direito que estão na base da decisão.

            Num Estado de Direito a fundamentação de uma decisão deve ser sempre justificante, um enunciado que vise e seja apto a exprimir a correção da decisão.

            Recorrendo novamente às lições de Viera de Andrade [22], a fundamentação, para que possa ser considerada como tal, deve ser clara, congruente e suficiente.

            Por clareza entenda-se que a fundamentação deve ter um conteúdo semântico. Assim, se as formulações utilizadas são confusas ou indistintas, se a argumentação é dubitativa, ambígua ou obscura, então sequer é possível compreender o que determinou o julgador a escolher aquele conteúdo decisório. Ou seja, a fundamentação não é clara quando não estão identificadas as razões de fato ou de direito da decisão, pois que, no mínimo, não pode determinar-se com segurança o sentido do que foi declarado pelo julgador como fundamento.

            Para que se tenha clareza é muito importante que as palavras sejam usadas com conceitos bem definidos. Assim, poder-se-á chegar até à formulação de "acordos prévios [23]" na comunidade jurídica.

            Por congruência entenda-se que a fundamentação deve ser um discurso racional ou que, pelo menos, não contenha erros de raciocínio evidentes. A congruência se refere à relação entre a fundamentação e o conteúdo da decisão, devendo este ser uma conseqüência lógica (ou quase lógica) daquela.

            Por suficiência entenda-se uma fundamentação que contenha elementos bastantes, capazes ou aptos a basear a decisão. No caso da suficiência está em causa recusar como fundamentação determinante, fundamentações que sejam vagas, abstratas ou imprecisas. Isso para que se garanta que haja uma verificação ou uma ponderação do julgador acerca das circunstancias e da decisão a ser tomada.

            A experiência mostra que é muito fácil recorrer abstratamente a um princípio, que só de longe guarde relação com o caso, ou a um princípio bem volátil como a dignidade humana. Fundamentações desta espécie, geralmente partem da premissa de que determinados princípios já "falam por si", deixando-os carentes de densificação, o que as torna claramente insuficientes.

            Segundo Vieira de Andrade, a suficiência da fundamentação deve ser aferida da perspectiva do destinatário médio. Ela deve assegurar ao destinatário médio os elementos necessários à aceitação ou à contestação da decisão, ao mesmo tempo em que garanta um mínimo de transparência, uma base de informação para o controle da legitimidade e uma prova de que o julgador efetuou uma ponderação ou pelo menos decidiu com base num raciocínio inteligível.

            Mas é muito difícil é delimitar as fronteiras de uma fundamentação que seja suficiente. A declaração do julgador deve mostrar que este fez uma aplicação do direito, efetuando as verificações, avaliações ou ponderações adequadas ao julgamento do caso que lhe é submetido. No entanto, a grande dificuldade está em definir o que seja o esclarecimento concreto suficiente de um discurso que se pretende justificativo.

            Esta dificuldade ocorre porque a determinação do conteúdo da fundamentação que seja suficiente é uma questão a ser verificada concretamente e depende de um conjunto complexo de fatores. Daí se poder afirmar que o conteúdo de uma fundamentação suficiente é variável. Em outras palavras, há graus de fundamentação exigíveis que variam de acordo com o caso em tela.

            Uma tentativa de redução da dificuldade poderia ser tentada mediante a criação de estandartes. Assim, por exemplo, um critério para avaliar qual seria o grau de fundamentação suficiente seria a existência ou não de precedentes – e se há pretensão de modificá-lo ou não (para mantê-lo, desde que justificado que realmente se trata de um precedente, o grau de fundamentação exigível seria menor).

            Um caso constitucional inédito e que implica a ponderação de direitos fundamentais, por exemplo, também requer uma fundamentação maior para ser suficiente.

            Outro critério possível, a ser combinado com os demais, seria o fato da decisão ser baseada em regra ou princípio. Assim, para julgar consoante princípio o ônus argumentativo seria maior do que para julgar consoante regra (na medida em que esta, per se, constitui uma justificação institucional para ser obedecida).

            Combinando-se estes critérios e outros a serem criados, continuar-se-á longe de resolver o problema da suficiência da fundamentação, mas ter-se-á dado um importante passo.

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Sobre o autor
Jasson Hibner Amaral

professor de Direito Constitucional em Vitória (ES), mestre em Direito Público pela UERJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Jasson Hibner. Considerações acerca do dever de fundamentação das decisões:: a legitimidade democrática argumentativa do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1025, 22 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8248. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Síntese de seminário apresentado pelo autor em setembro de 2004, no curso de mestrado da UERJ, como um dos requisitos para aprovação na disciplina Segurança dos Direitos Fundamentais, ministrada pelos professores Doutores Humberto B. Ávila e Ricardo Lobo Torres.

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