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O princípio da função social do contrato no Código Civil de 2002

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25/04/2006 às 00:00

Resumo:


  • A função social do contrato é uma cláusula geral que tem sua matriz na Constituição Federal, implicando que a livre iniciativa deve respeitar a função social da propriedade e, consequentemente, os contratos como parte da atividade econômica.

  • Com a evolução do Estado Liberal para o Estado Social, o sistema jurídico civil foi se abrindo e fragmentando, levando à criação de leis especiais e microsistemas jurídicos que regulamentam institutos civilísticos de forma mais específica e protetiva.

  • O Novo Código Civil, ao incorporar o princípio da função social do contrato (art. 421), busca harmonizar a liberdade de contratar com a justiça social, limitando tanto a liberdade de contratar quanto o conteúdo contratual em si, em favor da dignidade da pessoa humana e da redução das desigualdades.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

7. O princípio da função social do contrato no novo código civil: ‘um ideal a trilhar’

            O artigo 421 do novel Código Civil assim estabelece:

            Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

            Induvidosamente, o artigo em comento guarnece dois princípios antagônicos, quais sejam: enquanto a ‘liberdade de contratar’ deriva do princípio clássico da autonomia da vontade, típico do liberalismo individualista do século XIX, a expressão ‘função social’ decorre do ideal de Justiça Social, consectária do Estado Social.

            De que forma, pois, conciliá-los?

            Ora, se certo é, como já ficou assentado, que não há incompatibilidade entre os princípios, mas apenas concorrência, é perfeitamente possível a aplicação harmônica de ambos, desde quando se perceba que a ‘função social’ se traduz num limite positivo na moderna liberdade de contratar, inclusive limitando a liberdade contratual em si, ou seja, a própria possibilidade de fixar o conteúdo contratual.

            Nesse sentido, eis a lição do eminente civilista Paulo Luiz Netto Lôbo [12]: "No novo Código Civil a função social surge relacionada à "liberdade de contratar", como seu limite fundamental. A liberdade de contratar, ou autonomia privada, consistiu na expressão mais aguda do individualismo jurídico, entendida por muitos como o toque de especificidade do Direito privado. São dois princípios antagônicos que exigem aplicação harmônica. No Código a função social não é simples limite externo ou negativo, mas limite positivo, além de determinação do conteúdo da liberdade de contratar. Esse é o sentido que decorre dos termos "exercida em razão e nos limites da função social do contrato". (art. 421)".

            Na contemporaneidade, no contexto de uma sociedade massificada e plural ao extremo, não é mais aceitável, sob qualquer ótica a analisar, que o contrato seja um instrumento de ruína do contratante mais fraco, levando-o à miséria ou mesmo entregando sua liberdade em razão de eventual inadimplência contratual, sem qualquer direito de defesa. Veja-se, por oportuno, diversos exemplos que infringem os direitos humanos privados, segundo o magistério do doutrinador Fernando Rodrigues Martins [13], a saber: a prisão civil em matéria de alienação fiduciária em garantia; a edição da Resolução 980/84 que, em sede de contrato de ‘leasing’, o desnaturou para compra e venda e, como tal, impossibilitou que os arrendatários pagassem somente o aluguel, elidindo o direito de escolha ao final do contrato (art. 6º II do CDC); o leilão extrajudicial do bem imóvel adquirido nos termos do Dec.-lei 70/66, sem a interferência do Poder Judiciário; a resolução do contrato de trato sucessivo, ainda que adimplido em larga escala, dentre outros.

            Portanto, tal perfil contratual deve ser repudiado.

            Hodiernamente, o que se busca é a realização de um contrato que detenha a função social, ou seja, de um contrato que além de desenvolver uma função translativa-circulatória das riquezas, também realize um papel social atinente à dignidade da pessoa humana e à redução das desigualdades culturais e materiais, segundo os valores e princípios constitucionais.

            Busca-se o contrato constitucionalizado, isto é, o contrato que concilie a livre iniciativa à justiça social, posto que permeado pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e o da livre iniciativa.

            Para tanto, impõe-se uma ‘mentalidade constitucionalística’...


8. Conclusão

            A abertura do sistema jurídico civil deu-se na passagem do Estado Liberal para o Estado Social. No Brasil, a partir da década de 1930, à vista da eclosão de fatores vários, dos mais variados matizes, inúmeras leis especiais começaram a tutelar ou regra institutos civilísticos, de forma inédita ou mais amiudada, surgindo assim um direito civil especial (‘micro-sistemas jurídicos’), ao derredor do direito civil comum, este inserido no Código Civil de 1916.

            O descompasso entre a civilística clássica (Código Civil), típica do liberalismo jurídico, e a realidade insurgente no País, provocou o esgarçamento ou ‘fragmentação’ do Direito Civil, cujo apogeu deu-se com a promulgação da Carta Magna/88.

            Nesse contexto, o modelo clássico de contrato entrou em crise, mas apenas uma crise de rejuvenescimento, de vivificação, pois, mediante a utilização da técnica legislativa conhecida como ‘cláusula geral’, valores estranhos ao ordenamento jurídico vigente foram, paulatinamente, ingressando no próprio ordenamento, atualizando e remodelando vetustos institutos, pela via da sistematização, graças à ação corajosa e vanguardista de uma parcela da doutrina e da jurisprudência, bem como de alguns diplomas legais.

            Como visto, e na esteira da vivificação do contrato, a cláusula geral da função da propriedade, de matriz constitucional, atinge e afeta também o contrato, entendido este como uma faceta do princípio da livre iniciativa, o qual, como sabido, também deve obedecer aos ditames da justiça social e da função social da propriedade (art. 170 III da CF). Malgrado a função social do contrato não tenha previsão constitucional explícita, efetivamente tem uma previsão implícita, pois o contrato, em sendo um desdobramento da livre iniciativa e, devendo esta respeitar á função social da propriedade, de maneira tangencial o contrato se acha afetado pela mesma cláusula da função social.

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            Destarte, arrematou-se que o princípio da função social do contrato, estampado no art. 421 do Novo Código Civil, é um ‘mandado de otimização’, sendo que a função social ali prevista é um fator limitador positivo, não somente da liberdade de contratar, mas também da liberdade contratual, que diz respeito à fixação do conteúdo contratual.

            Por fim, o estudo propugna por um contrato que realize a função social, na medida em que busque conciliar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º inciso III) e o da livre iniciativa (art. 170 caput), servindo ao mesmo tempo como um instrumento de circulação de riquezas e um instrumento realizador do ideal de Justiça Social, basicamente tutelando a pessoa humana, que é o valor supremo da nossa Lei Maior.


Bibliografia

            AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 3ª edição. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2000.

            FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. ‘Dicionário Aurélio eletrônico’. vol 2.0, Verbete ‘cláusula’.

            GOMES, Orlando. A Caminho dos Micro-sistemas. In; Novos Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

            LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios Sociais dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002, v.42.

            MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional. 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

            MARTINS, Fernando Rodrigues. Direitos Humanos do Devedor. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho-setembro, 2001, v. 39.

            MEIRA, Silvio. O Instituto dos Advogados Brasileiros e a Cultura Nacional. In: O Direito Vivo. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1984.

            PASQUALOTTO, Adalberto. O Código de Defesa do Consumidor Em Face do Novo Código Civil. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho-setembro, v. 43.

            POPP, Carlyle. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e a Liberdade Negocial – A Proteção Contratual no Direito Brasileiro. In: Direito Civil Constitucional. Cadernos I. Renan Lotufo (Coordenador). São Paulo: Max Limonad, 1999.

            SANTOS, Eduardo Sens dos. O Novo Código Civil e as Cláusulas Gerais: exame da função social do contrato. In: Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002, v. 10.

            SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Civil Constitucional Positivo. 14ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.

            TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Relações de Direito Civil na Experiência Brasileira. In: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Editora: Coimbra, 2000, v. 48.


Notas

            01

SANTOS, Eduardo Sens dos. O Novo Código Civil E As Cláusulas Gerais: exame da função social do contrato. In: Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002, v.10, p.12.

            02

TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Relações de Direito Civil na Experiência Brasileira. In: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Editora: Coimbra, v. 48, 2000, p. 325.

            03

GOMES, Orlando. A Caminho dos Micro-sistemas. In: Novos Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 40-50.

            04

PASQUALOTTO, Adalberto. O Código de Defesa do Consumidor Em Face do Novo Código Civil. In: Revista de Direito do Consumidor. Saão Paulo: Revista dos Tribunais, julho-setembro, 2002, v. 43, p. 96.

            05

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. ‘Dicionário Aurélio Eletrônico’. vol. 2.0. Verbete ‘cláusula’.

            06

Op. cit., p.16.

            07

MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional. 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 274.

            08

MEIRA, Silvio. O Instituto dos Advogados Brasileiros e a Cultura Jurídica Nacional. In: O Direito Vivo. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1984, p. 285.

            09

AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 3ª edição. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2000, p. 151.

            10

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucioanl Positivo. 14ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 116.

            11

POPP, Carlyle. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e a Liberdade Negocial – A Proteção Contratual no Direito Brasileiro. In: Direito Civil Constitucional. Cadernos I. Renan Lotufo (coordenador). São Paulo: Max Limonad, 1999, p.162.

            12

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios Sociais dos Contratos no Código de defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002, v. 42, p. 191.

            13

MARTINS, Fernando Rodrigues. Direitos Humanos do Devedor. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho-setembro, 2001, v. 39, p. 151-152.
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Sobre o autor
João Hora Neto

juiz de Direito no Estado de Sergipe, professor de Direito Civil da Universidade Federal de Sergipe (UFS), mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista em Novo Direito Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1028, 25 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8262. Acesso em: 23 dez. 2024.

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