7. O princípio da função social do contrato no novo código civil: ‘um ideal a trilhar’
O artigo 421 do novel Código Civil assim estabelece:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Induvidosamente, o artigo em comento guarnece dois princípios antagônicos, quais sejam: enquanto a ‘liberdade de contratar’ deriva do princípio clássico da autonomia da vontade, típico do liberalismo individualista do século XIX, a expressão ‘função social’ decorre do ideal de Justiça Social, consectária do Estado Social.
De que forma, pois, conciliá-los?
Ora, se certo é, como já ficou assentado, que não há incompatibilidade entre os princípios, mas apenas concorrência, é perfeitamente possível a aplicação harmônica de ambos, desde quando se perceba que a ‘função social’ se traduz num limite positivo na moderna liberdade de contratar, inclusive limitando a liberdade contratual em si, ou seja, a própria possibilidade de fixar o conteúdo contratual.
Nesse sentido, eis a lição do eminente civilista Paulo Luiz Netto Lôbo [12]: "No novo Código Civil a função social surge relacionada à "liberdade de contratar", como seu limite fundamental. A liberdade de contratar, ou autonomia privada, consistiu na expressão mais aguda do individualismo jurídico, entendida por muitos como o toque de especificidade do Direito privado. São dois princípios antagônicos que exigem aplicação harmônica. No Código a função social não é simples limite externo ou negativo, mas limite positivo, além de determinação do conteúdo da liberdade de contratar. Esse é o sentido que decorre dos termos "exercida em razão e nos limites da função social do contrato". (art. 421)".
Na contemporaneidade, no contexto de uma sociedade massificada e plural ao extremo, não é mais aceitável, sob qualquer ótica a analisar, que o contrato seja um instrumento de ruína do contratante mais fraco, levando-o à miséria ou mesmo entregando sua liberdade em razão de eventual inadimplência contratual, sem qualquer direito de defesa. Veja-se, por oportuno, diversos exemplos que infringem os direitos humanos privados, segundo o magistério do doutrinador Fernando Rodrigues Martins [13], a saber: a prisão civil em matéria de alienação fiduciária em garantia; a edição da Resolução 980/84 que, em sede de contrato de ‘leasing’, o desnaturou para compra e venda e, como tal, impossibilitou que os arrendatários pagassem somente o aluguel, elidindo o direito de escolha ao final do contrato (art. 6º II do CDC); o leilão extrajudicial do bem imóvel adquirido nos termos do Dec.-lei 70/66, sem a interferência do Poder Judiciário; a resolução do contrato de trato sucessivo, ainda que adimplido em larga escala, dentre outros.
Portanto, tal perfil contratual deve ser repudiado.
Hodiernamente, o que se busca é a realização de um contrato que detenha a função social, ou seja, de um contrato que além de desenvolver uma função translativa-circulatória das riquezas, também realize um papel social atinente à dignidade da pessoa humana e à redução das desigualdades culturais e materiais, segundo os valores e princípios constitucionais.
Busca-se o contrato constitucionalizado, isto é, o contrato que concilie a livre iniciativa à justiça social, posto que permeado pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e o da livre iniciativa.
Para tanto, impõe-se uma ‘mentalidade constitucionalística’...
8. Conclusão
A abertura do sistema jurídico civil deu-se na passagem do Estado Liberal para o Estado Social. No Brasil, a partir da década de 1930, à vista da eclosão de fatores vários, dos mais variados matizes, inúmeras leis especiais começaram a tutelar ou regra institutos civilísticos, de forma inédita ou mais amiudada, surgindo assim um direito civil especial (‘micro-sistemas jurídicos’), ao derredor do direito civil comum, este inserido no Código Civil de 1916.
O descompasso entre a civilística clássica (Código Civil), típica do liberalismo jurídico, e a realidade insurgente no País, provocou o esgarçamento ou ‘fragmentação’ do Direito Civil, cujo apogeu deu-se com a promulgação da Carta Magna/88.
Nesse contexto, o modelo clássico de contrato entrou em crise, mas apenas uma crise de rejuvenescimento, de vivificação, pois, mediante a utilização da técnica legislativa conhecida como ‘cláusula geral’, valores estranhos ao ordenamento jurídico vigente foram, paulatinamente, ingressando no próprio ordenamento, atualizando e remodelando vetustos institutos, pela via da sistematização, graças à ação corajosa e vanguardista de uma parcela da doutrina e da jurisprudência, bem como de alguns diplomas legais.
Como visto, e na esteira da vivificação do contrato, a cláusula geral da função da propriedade, de matriz constitucional, atinge e afeta também o contrato, entendido este como uma faceta do princípio da livre iniciativa, o qual, como sabido, também deve obedecer aos ditames da justiça social e da função social da propriedade (art. 170 III da CF). Malgrado a função social do contrato não tenha previsão constitucional explícita, efetivamente tem uma previsão implícita, pois o contrato, em sendo um desdobramento da livre iniciativa e, devendo esta respeitar á função social da propriedade, de maneira tangencial o contrato se acha afetado pela mesma cláusula da função social.
Destarte, arrematou-se que o princípio da função social do contrato, estampado no art. 421 do Novo Código Civil, é um ‘mandado de otimização’, sendo que a função social ali prevista é um fator limitador positivo, não somente da liberdade de contratar, mas também da liberdade contratual, que diz respeito à fixação do conteúdo contratual.
Por fim, o estudo propugna por um contrato que realize a função social, na medida em que busque conciliar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º inciso III) e o da livre iniciativa (art. 170 caput), servindo ao mesmo tempo como um instrumento de circulação de riquezas e um instrumento realizador do ideal de Justiça Social, basicamente tutelando a pessoa humana, que é o valor supremo da nossa Lei Maior.
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Notas
01
SANTOS, Eduardo Sens dos. O Novo Código Civil E As Cláusulas Gerais: exame da função social do contrato. In: Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002, v.10, p.12.02
TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Relações de Direito Civil na Experiência Brasileira. In: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Editora: Coimbra, v. 48, 2000, p. 325.03
GOMES, Orlando. A Caminho dos Micro-sistemas. In: Novos Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 40-50.04
PASQUALOTTO, Adalberto. O Código de Defesa do Consumidor Em Face do Novo Código Civil. In: Revista de Direito do Consumidor. Saão Paulo: Revista dos Tribunais, julho-setembro, 2002, v. 43, p. 96.05
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. ‘Dicionário Aurélio Eletrônico’. vol. 2.0. Verbete ‘cláusula’.06
Op. cit., p.16.07
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional. 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 274.08
MEIRA, Silvio. O Instituto dos Advogados Brasileiros e a Cultura Jurídica Nacional. In: O Direito Vivo. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1984, p. 285.09
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 3ª edição. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2000, p. 151.10
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucioanl Positivo. 14ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 116.11
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LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios Sociais dos Contratos no Código de defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002, v. 42, p. 191.13
MARTINS, Fernando Rodrigues. Direitos Humanos do Devedor. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho-setembro, 2001, v. 39, p. 151-152.