Natureza jurídica do vício decorrente do “casamento infantil”

28/05/2020 às 22:20
Leia nesta página:

O artigo tece considerações sobre a recente vedação ao matrimônio envolvendo menores de dezesseis anos. Parte dessa alteração pontual para analisar a necessidade de mudança/revogação tácita de outros dispositivos do código civil que tratam da matéria.

Até o advento da lei 13.811, publicada em 12 de março de 2019, o ordenamento jurídico pátrio admitia – melhor dizendo, tolerava – o chamado “casamento infantil”, contraído quando um dos cônjuges ainda não atingira a idade núbil de 16 anos[1]..

Uma nota faz-se desde logo necessária no tocante à nomenclatura utilizada: o termo “casamento infantil” não é tecnicamente apropriado ao instituto em análise.

Cediço que todos com idade superior a 12 anos já não são mais taxados de “crianças” e sim como adolescentes, na forma da lei[2]. Poder-se-ia, então, denominar o instituto “casamento infanto-juvenil”.

Todavia, fato é que menores com idade entre dezesseis e dezoito anos são ainda adolescentes. E o casamento contraído por estes é admitido por lei, exigindo-se apenas a autorização dos representantes legais ou suprimento judicial.

Em verdade, a diferença entre menores e maiores de dezesseis anos se funda precipuamente na capacidade civil, sendo aqueles absolutamente incapazes[3] e estes relativamente capazes[4]. Então, talvez a nomenclatura mais precisa fosse “casamento envolvendo absolutamente incapaz” ao invés de “casamento infantil”.

Entretanto, preferimos prosseguir com a expressão já consagrada – “casamento infantil” –  mormente porquanto, além de adotada pela doutrina e pela própria lei ora analisada, a nomenclatura traz um maior impacto negativo para o leitor, sendo certo que o que se pretende aqui é buscar a extinção definitiva de tal realidade no Brasil.

Pois bem. Prossigamos.

O Código Civil pátrio, em seu artigo 1.520, autorizava o matrimônio contraído por um ou ambos os consortes com idade inferior a dezesseis anos, quando (i) para evitar a imposição ou cumprimento de pena criminal, ou ainda, (ii) em caso de gravidez. Fora dessas hipóteses excepcionais, o ato[5] era inválido, anulável.

E já à época, tal norma gerava divergências. Discutia-se se o casamento seria admissível caso a gravidez fosse da menor de dezesseis anos ou se também possível quando o menor de dezesseis fosse o pai, ainda que a consorte grávida já tivesse idade núbil.

Vê-se, pois, que o “casamento infantil” jamais foi pacífico no Brasil, mas, como se disse, apenas tolerado em hipóteses excepcionalíssimas.

A rejeição cada vez maior ao instituto decorre, decerto, da própria evolução da sociedade. Se outrora era “comum” o casamento entre pessoas de mais tenra idade – sobretudo mulheres (meninas), prometidas quando ainda crianças e que contraíam núpcias muitas vezes até de modo forçado com homens bem mais velhos – com o passar do tempo e evolução de ideologias, o abandono da noção patriarcal de família foi natural, passando o matrimônio a ser algo próprio de pessoas mais maduras.

Com efeito, pesquisas sugerem que menores de 18 anos geralmente são jovens demais para transições sexuais, conjugais e reprodutivas. Casar-se nesta tenra idade pode ainda ter outros grandes impactos negativos para as jovens e seus filhos. A título de exemplo, o casamento precoce reduz a probabilidade de conclusão do ensino médio, que em muitos países é aos 18 anos de idade. Além disso, considera-se que, com menos de 18 anos, os jovens não adquiriram a capacidade — nem a maturidade — para consentir livre e plenamente ao casamento.

A gravidade da situação torna-se ainda mais evidente em países como o Brasil, que comporta as mais diferentes realidades sociais dentro de seu vasto território. Em 2017, nosso país infelizmente já ocupava o quarto lugar no ranking global de casamentos infantis, sendo o primeiro colocado em toda a América Latina, conforme levantamento do Banco Mundial[6]. Já em 2019, a Organização das Nações Unidas apurou que, no território brasileiro, 36% da população feminina ainda se casava antes dos 18 anos de idade[7], não apenas em municípios mais longínquos e rurais, onde a realidade patriarcal é severa, mas também nas zonas urbanas.

Por isso, vindo ao encontro da evolução social e na busca de extinguir a realidade retro descrita, a lei 13.811 de 2019 houve por bem proibir, em absoluto, o casamento envolvendo menores de 16 (dezesseis) anos de idade. Conferiu, para tanto, nova redação ao art. 1.520 do Código Civil, suprimindo quaisquer exceções legais permissivas. Veja-se:

Art. 1º O art. 1.520 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) , passa a vigorar com a seguinte redação:

“ Art. 1.520. Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código.” (NR)

Porém, em que pese seu intento louvável, a citada legislatura andou mal ao limitar-se à alteração apenas do sobredito dispositivo legal. Deixou de abordar de modo expresso diversos outros enunciados conexos, e que também dispunham de algum modo sobre o “casamento infantil”. Fez gerar, assim, algumas divergências consideráveis.

Certo é que alguns dispositivos, mesmo não arrolados de forma expressa pela novel legislatura, tiveram sua validade incontestavelmente afetada, posto que incompatíveis com a nova redação dada ao artigo 1.517. É o caso do art. 1511 do Código Civil, que impedia a anulação de “casamentos infantis” realizados por motivo de gravidez. Da mesma forma o art. 1.553 do mesmo diploma, que permitia a posterior confirmação do casamento contraído por aquele que não atingira a idade núbil.

Com efeito, se o casamento de menores de 16 (dezesseis) anos hoje não é mais permitido em nenhuma hipótese, evidente que este não mais poderá ser considerado válido de modo algum. E tampouco poderá ser posteriormente confirmado. Decerto que tais dispositivos restaram revogados a teor do que dispõe o art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro[8], ainda que de forma tácita, a reboque da vedação inserida no art. 1.520 do código civil.

Outros efeitos da citada lei 13.811/2019, porém, restam inconclusivos diante da omissão do Legislador. E isto porque aquela não tocou em quaisquer dos dispositivos que tratam dos vícios decorrentes do casamento contraído por absolutamente incapazes, a saber, arts. 1.550, inciso I; art. 1.551; 1.552; 1.553; e 1.556, §1º, todos do código civil.

Resta assim analisar se tal omissão decorreu da vontade do legislador em manter os efeitos já anteriormente previstos em lei, mesmo após a vedação ao casamento infantil (“silêncio eloquente”), ou se houve verdadeira omissão involuntária.

A nosso sentir, é forçoso concluir pelo equívoco legislativo quanto à omissão, como passaremos a expor.

Infere-se dos sobreditos dispositivos que o casamento contraído por quem ainda não atingira a idade núbil, mesmo fora das hipóteses permissivas, seria anulável. Ou seja, tratar-se-ia de um ato passível de ser sanado ou confirmado, por ser alijado de vício de interesse unicamente privado.

E esta realidade, data venia, não pode prevalecer na atualidade. 

Porém, para melhor adentrar aos motivos do posicionamento aqui adotado, releva antes tecer brevíssimas considerações entre atos nulos e anuláveis.

Como bem sabido, nulidade e anulabilidade situam-se no campo da validade dos atos jurídicos, diferenciando-se precipuamente no tocante ao interesse envolvido e na possibilidade ou não de o vício ser sanado.

Enquanto nulidades violam interesses público e privado, anulabilidades envolvem tão somente interesses de ordem privada. Por sua maior gravidade, nulidades não convalescem no tempo, podendo ser suscitadas e reconhecidas a qualquer tempo, enquanto as anulabilidades, presumidamente menos graves, são passíveis de convalidação caso não suscitadas tempestivamente.

Ambos os referidos vícios de validade são tratados tanto na parte geral do código civil, no capítulo atinente às invalidades dos negócios jurídicos (arts. 166 a 184), como, de forma especial, no tocante aos diferentes negócios jurídicos típicos e, ainda, de modo mais peculiar – e muitas vezes diverso da parte geral – na parte atinente ao direito de família.

Nesse contexto, e notadamente no que diz respeito ao “casamento infantil”, o direito de família dispunha de modo diverso da parte geral[9], posto que tratava como meramente anulável aquele matrimônio (art. 1.550, I, do CC) ainda que contraído fora das hipóteses permissivas. Permitia, assim, a convalidação e até mesmo a confirmação daquele ato (art. 1553 do CC), além de restringir o rol dos aptos a suscitar a invalidade (art. 1.552, do CC)[10].

Ao fazê-lo, a lei civil prestigiava unicamente a vontade das partes envolvidas, ainda que absolutamente incapazes, tratando a questão como de interesse eminentemente privado. Por via de consequência, acabava por minorar a proteção ao(s) menor(es) envolvido(s).

Proibindo em absoluto matrimônio contraídos por absolutamente incapazes, a lei 13.811/2019 demonstrou que a inadmissibilidade do ato em questão não interessa apenas às partes envolvidas, mas a toda a sociedade, que deve garantir a crianças e adolescentes que não ingressem na vida adulta, com as responsabilidades e obrigações a ela inerentes, de modo apressado e prematuro.

E de outro modo não poderia sê-lo. Estudos realizados pelo Banco Mundial demonstram que o casamento e a gravidez precoces têm efeitos negativos profundos para o menor, sobretudo para as mulheres: maiores riscos para a saúde, menor escolaridade, renda mais baixa na idade adulta e maior número de filhos, os quais contribuem para pobreza, menor autonomia e menor capacidade de decisão no lar, além de maiores riscos de violência doméstica. E impacto não se restringe apenas aos consortes; alcança também seus descendentes. Crianças geradas por mães muito jovens apresentam riscos mais elevados de mortalidade antes dos cinco anos e desnutrição, acarretando também possíveis consequências negativas durante a vida adulta[11].

Nessa toada, impositivo concluir que o matrimônio infantil não dá causa a mero vício de anulabilidade, sanável, mas sim a uma nulidade insanável, de interesse público – interpretação que traz maior coerência ao ordenamento civil como um todo, na medida em que alia o direito de família à parte geral, garantindo, como se disse, maior proteção ao(s) incapaz(es) envolvido(s) – finalidade precípua da seara das invalidades legais relacionada à menoridade civil. Observa-se, outrossim, a própria diretriz de proteção integral insculpida no art. 227 da Constituição Federal e pormenorizada no Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Com efeito, a sobredita doutrina de proteção integral prega que, em determinadas situações, é preciso sobrepujar a própria vontade da criança quando se tem em vista a proteção desta em último grau. Em outras palavras, se o menor deseja praticar ato que lhe acarretará algum prejuízo, caberá ao Estado proibir-lhe a prática, ainda que contra a vontade do infante.

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Cediço que o matrimônio espelha emanação do próprio direito da personalidade dos consortes que desejam unir-se perante a sociedade e constituir família. Tal emanação, porém, in casu, contrapõe-se à necessidade de proteção daqueles que ainda não são aptos a tomar decisões de tamanha grandeza em fase precoce de vida, sobretudo quando estas decisões são aptas a acarretar consequências tão danosas, como demonstrado.       

Por outro lado, veja-se, a invalidade absoluta do casamento infantil não traz qualquer prejuízo ao menor que realmente desejar unir-se em matrimônio, bastando que aguarde alcançar a idade núbil para se casar de modo válido e eficaz.

Destarte, por todo o exposto, infere-se que a partir do advento da lei 13.811, de 12 de março de 2019, e da alteração por ela inserida no ordenamento, é forçoso concluir pela revogação tácita de todos os dispositivos que afirmam a anulabilidade decorrente do casamento contraído por aquele que ainda não atingiu a idade núbil.

Deve-se concluir pela absoluta nulidade do instituto em análise, aplicando-se ao caso, por conseguinte, as normas já previstas na parte geral do código civil, tudo de modo a garantir a coerência do ordenamento, respeitar a intenção da norma alteradora e, em ultima ratio, majorar a proteção aos absolutamente incapazes envolvidos.    


[1] A idade núbil é fixada no art. 1517 do Código Civil, que assim dispõe, verbis: “O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil”.

[2] Art. 2º da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente): “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.

[3] Art. 3º do Código Civil: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos”.

[4] Art4º do Código Civil: “São incapazes, relativamente, a certos atos ou à maneira de os exercer: (…) I – os maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos”.

[5] A expresão “ato” é aqui utilizada em seu sentido lato – fato jurídico que decorre da vontade humana – posto que não pretendemos adentrar, desse artigo, na discusso acerca da natureza jurídica do matrimônio, se um contrato, um negócio juridico não contratual, ou uma instituição social.

[6]ONU NEWS in AGÊNCIA BRASIL. Brasil é o quarto país no ranking global de casamento infantil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-03/brasil-e-quarto-pais-no-ranking-global-de-casamento-infantil

[7] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS. Casamento infantil – o que falta para erradicar essa prática. Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-casamento-infantil-o-que-falta-para-erradicar-essa-pratica

[8] Art. 2º.  Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§1º  A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

[9] Em sua parte geral, o código civil taxa como “nulos” quaisquer negócios jurídicos celebrados por absolutamente incapazes (art. 166, inciso I).

[10] Segundo a lei, nem mesmo outros parentes que não os ascendentes ou representantes legais do menor poderiam requerem a invalidação judicial do casamento infantil.

[11] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS. Casamento infantil – o que falta para erradicar essa prática. Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-casamento-infantil-o-que-falta-para-erradicar-essa-pratica

Sobre o autor
Raphael Wider

Formado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e após atuar como advogado pleno no setor contencioso estratégico do escritório Siqueira Castro Adv. busquei a advocacia autônoma para que pudesse me dedicar, em paralelo, ao estudo para concursos públicos. Pós-graduação em Direito Privado pela Univ. Gama Filho. Atuação como advogado majoritariamente na seara cível.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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