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Ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a superação democrática do Estado constitucional moderno

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O texto estuda a superação democrática do Estado Constitucional Moderno e sua insuficiência como organização de Poder Público, além de discutir algumas das propostas para sua substituição.

            Não exageremos: o privado não é sempre bonito e o público não é sempre feio.

Giovanni Sartori


            Palavras-chave: Superação do Estado Constitucional Moderno; Sociedade sem estados; Novo Contrato Social; Sociatismo; Capitalismo Democrático; Insuficiência do Estado Constitucional Moderno; Democracia Ecológica; Democracia Radical; Democracia Internacional; Ciberdemocracia ou Democracia eletrônica; Globalização; Trans-nacionalização.


            Resumo: Este artigo procura contribuir para a formação da base teórica destinada à superação democrática do Estado Constitucional Moderno, estabelecendo uma seqüência lógica para a análise das evidências de sua insuficiência como organização de Poder Público, além de discutir algumas das propostas atuais para sua substituição.

            Abstract: This article seeks to contribute to the development of the theoretical foundation for democratic overcoming of the Modern Constitutional State, establishing a logical sequence for analyzing the evidence of its inadequacy as an organization of the Public Power. It also discusses some of the current proposals for its replacement.


INTRODUÇÃO

            O artigo que ora se publica é fruto de investigação realizada na Universidade de Alicante, por ocasião do estágio de Pós-Doutorado, realizado pelo autor com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES/MEC de agosto de 2005 a fevereiro de 2006, e que estará formando um livro dedicado a discutir a superação democrática do Estado Constitucional Moderno em diversos aspectos, procurando estimular a produção teórica neste sentido.

            As bases metodológica e teórica do presente artigo vêm sustentadas pelas propostas apresentadas por vários autores e em várias obras, com a investigação amparada pelas seguintes hipóteses:

            a)O Estado Constitucional Moderno - e sua base teórica - são insuficientes para enfrentar a complexidade da Sociedade transnacional contemporânea;

            b)A diversificação da Democracia é fundamental para o novo modelo de organização político-jurídica que substituirá o Estado Constitucional Moderno;

            c)A Democracia deve ser considerada uma proposta de civilização, e não o Estado Constitucional Moderno, já ultrapassado e insuficiente para servir como Poder Público no mundo atual;

            d)Haverá um novo Poder Público. Um espaço público construído com base em teorias contemporâneas e democráticas de solidariedade;

            e)O Constitucionalismo pode ser mantido, desde que conforme as novas formulações destinadas a organizar o novo espaço público de poder transnacional;

            f)A Solidariedade e a participação democráticas terão papel destacado nas novas formulações teóricas destinadas a organizar um Poder Público pós-moderno;

            g)A insuficiência do Estado Constitucional Moderno tornou-se ainda maior após a queda do regime comunista do leste europeu, o que ensejou um forte incremento no processo de globalização.

            As hipóteses declinadas acima foram elaboradas a partir da constatação que se vive, atualmente, numa época de transformações sem precedentes. Os avanços tecnológicos se produzem, como nunca, a uma velocidade vertiginosa. O que valia há algum tempo atrás, agora parece inservível. Deve-se ressaltar que a globalização se manifesta de forma diferente conforme as pessoas, grupos ou situações. Para alguns, é um processo apaixonante e vivem com otimismo o presente, tratando de situar-se na nova ordem e de rentabilizar todas as oportunidades oferecidas. Outros se encontram desorientados e desnorteados diante de mudanças tão rápidas e olham com receio o presente, que parece apontar para um futuro incerto. Finalmente, há quem contempla com medo o presente e o futuro e busca segurança tentando voltar a um passado que já não existe, com o risco constante de voltar-se para posições anacrônicas, obsoletas.

            Nunca como em nossos dias pode-se ser tão consciente da inter-relação entre povos e culturas diferentes, graças a tecnologias como a Internet, capazes de conectar com o outro extremo do planeta.

            Mas, se contemplado globalmente o mundo, não se pode deixar de chamar atenção à falta de mudanças realmente importantes para a humanidade. Continuamos vivendo em um mundo cheio de desigualdades e, apesar da produção cada vez maior de riqueza, esta se encontra cada vez mais concentrada em menos mãos. O fato é que se está criando um mundo no qual a cobiça de uns poucos, deixa muitos nos estertores da história. Sociedades que, enquanto vivem um progresso tecnológico e possibilidades econômicas nunca vistas, fabricam e reproduzem a exclusão. [01]

            Exclusão esta que ampara a necessidade de se buscar uma análise político-jurídica sobre a atual crise que se abate sobre as instituições modernas e sobre o Estado Constitucional Moderno como representação da organização do Poder Público.

            O Estado Constitucional Moderno, surgido a partir das revoluções burguesas do Século XVIII, sustentado pelas teorias do Poder Constituinte, da Tripartição do Poder, da Democracia Representativa e destinado a atender os interesses da burguesia liberal capitalista, está no cerne de toda a discussão a ser desenvolvida no presente artigo e será a matriz política com a qual vai-se operar.

            Para efeitos conceituais o Estado Constitucional Moderno é gênero, do qual Estado Liberal, Estado Social, Estado de Bem Estar, Estado Contemporâneo e todas as outras denominações dadas às variações de seu âmbito de atuação são espécies. Ou seja, há uma só matriz político-jurídica, com vários modelos que foram surgindo a partir de decisões – ou necessidades – ideológicas.

            É claro que este raciocínio pode ser acusado, como proposta de método de análise, com essa objetividade, de simplificar uma questão muito complexa, mas a intenção é buscar evidências científicas que, de um modo geral e sem complicações desnecessárias, demonstrem que a construção político-jurídica denominada Estado Constitucional Moderno é insuficiente para o atual momento que vive a civilização humana na terra. E que já o era na medida em que a complexidade das relações políticas, sociais e econômicas passou a aumentar em progressão geométrica. Principalmente a partir dos avanços tecnológicos tornados possíveis a partir das comunicações por satélite e da popularização dos micro-processadores, popularmente chamados de computadores pessoais.

            O valor principal a ser utilizado para a sustentação da tese da necessidade da superação democrática do Estado Constitucional Moderno é a Democracia.

            A Democracia Participativa, a Democracia Ecológica, a Ciberdemocracia, a Democracia Econômica, entre outras propostas, estão contempladas e discutidas ao longo deste artigo, como forma de chamar atenção para as possibilidades de uma Cidadania Democrática Mundial. A internacionalização da Democracia e, a partir dela, a internacionalização do Estado a partir de uma nova construção político-jurídica. O Estado Constitucional Moderno construído teoricamente para existir soberano no seu interior e para se relacionar conflitivamente com o seu exterior, deve sair de cena, substituído por um novo Estado que, ao que tudo indica, será o mediador das relações políticas, sociais e econômicas locais e regionais com aquelas globalizadas, ou mundializadas.

            É importante destacar que não basta reformar o Estado Constitucional Moderno por "outro" modelo, reformado, de Estado Constitucional. Reformar o Estado Constitucional Moderno, como está sobejamente demonstrado, não resolve os problemas, gravíssimos, ligados à exclusão, à miséria e à concentração da riqueza em mãos de poucos. [02]

            O fato é que, como já prediziam alguns autores, entre eles Alvim Tofler no seu livro A Terceira Onda, a construção de uma nova civilização sobre os destroços da velha envolve o projeto de novas estruturas políticas mais apropriadas em muitas nações ao mesmo tempo. Isto é um projeto penoso e, contudo, necessário, de âmbito mental estonteante e que certamente levará décadas – se não séculos – para concluir. [03]

            Todas as estruturas deverão ser modificadas, não porque são de esquerda ou de direita ou porque sejam controladas por este ou aquele grupo ou classe, mas porque são cada vez mais impraticáveis – não mais adequadas para as necessidades de um mundo radicalmente mudado, principalmente após a derrocada do comunismo no leste europeu.

            É importante registrar que, para construir o novo Estado a partir da Democracia, é preciso superar a pressuposição amedrontadora, mas falsa, de que a diversidade aumentada traz automaticamente a tensão e o conflito social. Pode ser exatamente o contrário. O conflito na Sociedade não é apenas necessário, ele é desejável. Providenciados os arranjos sociais adequados, a variedade pode contribuir para uma civilização segura e estável, ao contrário da proposta endógena que orientou o Estado Constitucional Moderno até agora. [03]

            A necessidade de superação do Estado Constitucional Moderno acompanha o que vem acontecendo com todas as estruturas da convivência política, que surgiram de crises, de uma crise anterior, se consolidaram durante determinado tempo e, por fim, cederam seus lugares a outras novas que, por sua vez, acabaram por entrar em decadência. Isto é assim porque o Estado, como toda estrutura de convivência, é fruto de uma cultura anteriormente descrita. Políbio, com sua teoria cíclica, e nos tempos modernos o genial Giambattista Vico, com sua doutrina dos corsi e ricorsi e depois Marx, ao aplicar a dialética no sentido histórico-materialista, corrigiram o enfoque otimista do progresso indefinido que surge da controvérsia literária entre os modelos antigos e modernos. As crises do Estado Constitucional Moderno demonstram que cada modelo de Estado sempre foi uma reforma do anterior. Este sempre continha reminiscências passadas e caricaturas futuras. O esquema: Estado Liberal de Direito – Estado Social de Direito – Estado Democrático de Direito (todavia não realizado) parece corroborar essa afirmativa, já que são espécies do mesmo gênero. [04]

            A partir destas constatações é que se desenvolve o raciocínio sobre a necessidade de superação democrática do Estado Constitucional Moderno, com a preservação do espaço público, do Poder Público, a ser concebido sobre outras bases teóricas.


1.1 - A UTOPIA DA SOCIEDADE SEM ESTADOS: A NECESSIDADE DO PODER PÚBLICO.

            Dalmo Dallari é, provavelmente, o autor brasileiro que tratou esse assunto com maior profundidade em seu O Futuro do Estado [05], quando trata especificamente das teorias sobre o futuro do Estado e do mundo sem estados.

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            Dallari assinala que a corrente mais importante, por sua influência prática e que sustenta a idéia de um mundo sem estados é a anarquista, sendo que seus principais representantes são originários do marxismo-leninismo. Mas, segundo ele, não há, no presente, elementos concretos que permitam afirmar que o mundo está caminhando para a extinção do Estado. O autor indica que o mundo sem estados não é plausível, sendo apenas um ideal utópico e sem apoio na realidade. [06]

            A posição de Dallari é a que serve de escopo ao presente artigo, ou seja, a superação democrática do Estado Constitucional Moderno não elimina o Estado como Poder Público, mas o substitui por outra construção político-jurídico, concebida a partir de pressupostos democráticos e levando em consideração a profunda mudança na delimitação do âmbito de atuação da nova construção político-jurídica.

            É interessante notar que os autores tidos como de "esquerda", são mais "estatalistas", no sentido de preservar o Estado Constitucional Moderno, que outros mais identificados com a "direita". Esta constatação, observada por determinado ângulo, é contraditória, pois foram os liberais capitalistas os maiores beneficiados pelo Estado Constitucional Moderno. Os socialistas apenas se instalaram nas estruturas públicas, mas não se pode dizer que o instrumento funcionou a seu favor.

            Autores de orientação liberal, como Robert Nozick, por exemplo, foram mais longe na direção da eliminação do Estado do que muitos outros, de orientação socialista. A sua obra publicada em 1974, Anarchy, state and utopia [07], teve enorme repercussão intelectual nos Estados Unidos. Vale a pena, para se começar a discutir o tema, resumir o sentido de sua investigação à qual se referem todos os que procuram dar um fundamento filosófico às críticas que fazem ao modelo de Bem Estar, assim como suas alternativas.

            Nozick se inscreve na perspectiva anarquista libertária, contestando a refutação final da legitimidade de toda forma de Estado. Para desenvolver seu argumento, Nozick raciocina, como Hobbes ou Locke, a partir do estado de natureza. Mas tenta mostrar contra eles que não é necessário formular a hipótese de um Contrato Social – fundando o Estado político exterior à Sociedade – para fugir dos inconvenientes desse estado de natureza (a guerra de todos contra todos ligada à incerteza da distinção entre o "meu" e o "teu"). Trata-se, para ele, de pensar a emergência de um modelo Estado Constitucional Moderno Mínimo a partir de uma inteligência estritamente econômica do social.

            O que Nozick prega, na verdade, é uma espécie de "Capitalismo Asséptico".

            Essa "reescrita" da emergência do Estado mínimo permite a Nozick permanecer fiel ao princípio anarquista de recusa de toda violação do território do indivíduo. O Estado Mínimo que ele define é globalmente o produto de uma explicação em termos de mão invisível (invisible-hand explanation): é compreendido a partir de uma percepção estritamente econômica e individualista das relações sociais. A escolha já não é, portanto, a seus olhos, entre o Estado-protetor clássico e a anarquia. Ele chega a definir logicamente um Estado Mínimo que seja um não-Estado, no sentido contratualista e político do termo: não é exterior à Sociedade e não produz nenhum Direito próprio.

            Nozick traduz o pensamento liberal que ensaia propor a superação do Estado Constitucional através da revisão do conceito de Poder Público invasivo, mesmo nos modelos de Estado Mínimo. Ao substituir o princípio da redistribuição, próprio do Estado-Providência, pelo da compensação, Nozick fornece a base de uma crítica da ilegitimidade do modelo de Providência. A seu ver, é quase fortuito que o princípio de compensação para os "independentes" se traduz por um mecanismo de redistribuição da oferta de proteção. [08]

            Como contraponto a Nozick o melhor exemplo é o de Boaventura de Souza Santos, que em várias de suas obras defende a superação democrática do Estado Constitucional Moderno, mas substituído por outra construção político-jurídica estatal que preserve o espaço público a partir da internacionalização da Democracia e que seja teorizada com base em um novo Contrato Social pós-moderno, que considere a complexidade e a diversidade da Sociedade mundializada.


1.2 – UM NOVO CONTRATO SOCIAL?

            É importante estimular o raciocínio de nossos cientistas da Política e do Direito para a possibilidade de um novo Contrato Social.

            Os riscos advindos da obsolescência do Contrato Social Moderno são muito graves para se permanecer de braços cruzados. É fundamental encontrar alternativas de sociabilidade que neutralizem e previnam os riscos oriundos da obsolescência do Estado Constitucional Moderno e desbravem o caminho a novas possibilidades democráticas. A tarefa não é fácil: o desequilíbrio social gerado pela crise do Contrato Social Moderno é tão profundo que desequilibra inclusive a resistência aos fatores de crise ou a reivindicação de emancipação que deveria dar sentido à resistência democrática. Boaventura de Souza Santos acrescenta que já não é simples saber, com clareza e convicção, em nome do que e de quem resistir, inclusive supondo que se conheça aquilo contra o qual se resiste, o que também não é fácil. [09]

            As teorias do Estado Constitucional Moderno alcançaram sua plausibilidade e foram introduzidas na realidade social graças à teoria política moderna, entre elas a do Contrato Social. Basta mencionar nomes como Hobbes, Locke, Montesquieu e Rousseau. Ou pensar no conceito de Estado, o princípio da divisão de poderes, o princípio das maiorias e a proteção das minorias ou outras similares, para trazer à memória este arcabouço teórico. Estas teorias, que fizeram possível a realização do Estado Constitucional Moderno, não resistem, sem dúvidas, a uma reflexão sobre a situação originada por ele. Não só por estarem superadas cientificamente, mas também por serem responsáveis pela realidade atual. [10]

            Para a necessidade de um novo Contrato Social tem-se como ponto de partida a insuficiência irreflexiva do postulado da proeminência da coisa pública: o Poder Público não existe como simples resultante dos interesses privados, mas supõe um pacto social – ou Contrato Social - hígido que preceda e sobre-passe todos os contratos particulares. [11] Ao abandonar-se esse postulado e com a redução do Poder Público a uma função de mercado, o espaço público fica imediatamente ameaçado de desaparecimento, pois não há mercado capaz de fixar o valor do interesse público e delimitar o espaço da solidariedade. Atualmente, só um novo Contrato Social poderá recuperar o espaço público perdido. [12]

            O que se quer indicar é que as teses formadoras do Estado Constitucional Moderno responderam adequadamente aos requerimentos da Sociedade do seu tempo, através da classe dominante: a burguesia. Neste sentido, a partir do constitucionalismo moderno a teoria político-jurídica esteve conectada com a realidade social dominante. [13]

            Só que, atualmente, da mesma forma que o crescente poder estatal da Europa do Século XVIII reorientou a direção dos protestos populares desde os problemas locais até questões nacionais, as novas tecnologias atuais da comunicação, principalmente, mas não só, permitem um contato em escala intercontinental entre as pessoas, através de redes em constante formação. [14]

            Este conjunto de novas realidades está erodindo de forma extraordinária os alicerces que até agora sustentaram a teoria liberal do Estado Constitucional Moderno. Basta olhar o mundo atual e, particularmente, o funcionamento efetivo dos estados atuais para se comprovar até que ponto estão obsoletas as teorias em torno do Estado Constitucional Moderno. A ordem internacional deixou de ser, na prática, baseada nos estados para se converter num sistema complexo no qual aparecem, lado a lado com eles, estruturas e organizações de diversos tipos, tais como as forças do mercado, as forças ou organizações geopolíticas, as instituições de Direito Internacional ou as próprias ONGs, que vêm adquirindo um protagonismo cada vez mais intenso nos assuntos de escala mundial, influindo com sua atividade, de forma notória, na ação dos estados e, principalmente, na atividade da própria ONU.

            O resultado de tudo isso constitui o progressivo desaparecimento dos elementos teóricos constitutivos do Estado Constitucional Moderno: centralização territorial, monopólio efetivo por poder tripartido, a sujeição de todos os poderes seculares ao Estado e o questionamento, cada vez maior, dos seus instrumentos de legitimação, como o Poder Constituinte e a Democracia Representativa Parlamentar. Em seu lugar se observa o aparecimento de processos centrífugos nos quais é produzida a dispersão de competências e poderes entre vários grupos e instituições, e isso tanto de um ponto de vista material como jurídico-formal. Isso provoca um crescente questionamento sobre a validade da distinção clássica entre instituições públicas e privadas, entre Estados e Sociedade Civil. No momento atual, até os mais sagrados interesses do Estado Constitucional Moderno ficam submetidos à contestação e à restrição por parte de atores fora do espaço público.

            O Contrato Social Moderno não alcança a profusão social da pós-modernidade. [15]

            A grande questão é como fazer um Contrato Social no e para o Século XXI. Em que bases. Como estabelecer um Contrato Social transnacional, se em nossa Sociedade atual o estado de natureza está na ansiedade permanente quanto ao presente e ao futuro, no iminente desgoverno das expectativas, no caos permanente, nos atos mais simples da sobrevivência ou convivência. [16]

            Fernado Gustavo Knoerr, em seu capítulo intitulado Representação Política e Globalização, na obra denominada Repensando a Teoria do Estado, organizada por Ricardo Marcelo Fonseca, leciona que o Estado Constitucional Moderno não é mais soberano, mas um sócio, um parceiro do capital privado que não conhece fronteiras e por isso perdeu sua condição de espaço público, o que ocasiona o citado desgoverno de expectativas.

            Chega a ser possível, nesse contexto, até mesmo afirmar o surgimento de um "anti-contratualismo moderno", traduzido na volta do exercício direto do poder por entes privados. Não se pode esquecer que no contratualismo clássico partia-se de um acordo firmado apenas por indivíduos absolutamente iguais, o que já não ocorre, principalmente em se considerando que desta avença participa também o capital internacional.

            Nesta etapa de crise do contratualismo moderno não há mais indivíduos, mas grupos privados (de trabalhadores, de indústrias, de empresários, de interesses "globalizados") exercendo o poder político na mais evidente defesa de interesses egoísticos. [17]

            Daí que se deve definir do modo mais amplo possível os termos de uma reivindicação cosmopolita capaz de romper o círculo vicioso das fases do contratualismo moderno. Esta reivindicação deve reclamar, em termos gerais, a reconstrução e reinvenção de um espaço-tempo que permita e promova a deliberação política. Um novo espaço público, nas palavras de Boaventura de Souza Santos. [18]

            O objetivo final seria a construção de um novo Contrato Social, muito diferente do da modernidade. Deve ser um contrato muito mais inclusivo e que abarque não só os homens e os grupos sociais, mas também a natureza. Em segundo lugar, será um contrato mais conflitivo, porque a inclusão deve ser promovida segundo critérios tanto de igualdade como de diferença. Em terceiro lugar, ainda que o objetivo final do contrato seja a construção do espaço-tempo da deliberação democrática, este contrato, diferentemente do contrato social moderno, não pode limitar-se ao espaço-tempo nacional e estatal: deve incluir os espaços-tempo local, regional e global. Por último, o novo contrato não se baseia numa clara distinção entre Estado e Sociedade, entre economia, política e cultura ou entre público e privado: a deliberação democrática, enquanto exigência cosmopolita, não tem sede nem forma institucional específicas. [19]

            O descrito acima remete a uma análise pautada na essência utópica da Democracia como parte de um novo Contrato Social pós-moderno. Por um lado, as democracias modernas propõem a idéia do Contrato Social e do consenso de todos os indivíduos. Produtos da vontade livre dos cidadãos. Por outro são empurradas, permanentemente, por forças não controláveis pelas instituições do Estado Constitucional Moderno, aquelas geradas pela economia capitalista globalizada e que desmentem a pretensão que se possa ter capacidade de autocontrole. É exatamente neste ponto que a Sociedade se habilita para criticar a Democracia Representativa Moderna e propor outras hipóteses de Contratação Social e outras possibilidades de representação política. [20]

            Várias funções tradicionais do Estado Constitucional Moderno não escapam à lógica da globalização. E as conseqüências deste fenômeno questionam profundamente a Soberania dos estados, já que dizem respeito às liberdades públicas, finalidade e condição de existência do Estado Constitucional Moderno. Compartilhar determinadas informações, a interligação dos arquivos e as escutas telefônicas são assuntos que se apresentam como simples colaboração técnica, sem levar-se em conta que são problemas que atingem os fundamentos do próprio Estado Constitucional Moderno, se levadas às últimas conseqüências. Questões como a de definir a informação que o Poder Público está autorizado a obter sobre os cidadãos, supõe, indiscutivelmente, pontos cruciais para um novo Contrato Social.

            Ao que tudo indica, um novo Contrato Social seria muito diferente do Contrato Social Moderno. Muito mais inclusivo, abrangendo também a natureza, a ecologia.

            Assim, seria preciso por em ação quatro novos pré-contratos sociais, que seriam os pilares de uma Democracia internacionalizada: um pré-Contrato Social para erradicar a pobreza; um pré-Contrato Social Ambiental para preservar o meio ambiente, um pré-Contrato Social Cultural para garantir educação a todos ao longo da vida e um pré-Contrato Social Ético que volte a dar sentido e perspectiva à aventura humana. [21] Os quatro pré-contratos sociais formariam um Contrato Social global, capaz de prever toda uma série de elementos complexos, próprios do momento atual em que se vive.

            Um novo Contrato Social pautado pelos pilares destacados acima significa reagir ao "pensamento único". É preciso colocar o ser humano no foco de todas as preocupações, sejam elas ligadas à globalização, ao meio ambiente, ao capitalismo, à Democracia. Os parâmetros serão muito mais inclusivos e humanos.

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Sobre os autores
Paulo Márcio da Cruz

doutor e pós-doutor em Direito do Estado, professor do mestrado e doutorado em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e Universidade de Alicante (Espanha)

José Francisco Chofre Sirvent

professor visitante do mestrado em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), professor titular do Departamento de Estudos do Estado da Universidade de Alicante (Espanha), doutor em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Paulo Márcio ; SIRVENT, José Francisco Chofre. Ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a superação democrática do Estado constitucional moderno. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1026, 23 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8276. Acesso em: 19 nov. 2024.

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