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Os instrumentos de solução de conflitos consumeristas no Mercosul

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06/05/2006 às 00:00
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Os conflitos nas relações de consumo não podem mais ser tratados somente sob o ponto de vista do ordenamento jurídico interno, mormente após o recrudescimento do processo de integração entre os países.

1. INTRODUÇÃO

            Os conflitos nas relações de consumo não podem mais ser tratados somente sob o ponto de vista do ordenamento jurídico interno, mormente após o recrudescimento do processo de integração entre os países.

            Com a integração, houve um aumento nas relações de consumo entre o Estados membros do MERCOSUL, motivado pelas facilidades que a formação de um bloco econômico proporciona. Se, há pouco tempo atrás, ainda se discutia o surgimento e a extensão de aplicação das legislações consumeristas dentro de cada país, hodiernamente se questiona a sua incidência nas relações de consumo estabelecidas entre partes – consumidor e fornecedor – de diferentes países.

            A natural evolução do Direito do Consumidor e o prioritário tratamento que vem sendo dispensado aos consumidores nas legislações dos Estados culminaram por chancelar o entendimento de que é necessário proteger o consumidor contra os abusos dos fornecedores, sobretudo quando se trata de consumo transfronteiriço, em que aquele fica ainda mais vulnerável. Entretanto, não basta a edição de leis que confiram direitos materiais aos consumidores, sendo imperiosa a outorga de instrumentos jurídicos, jurisdicionais ou não, que reconheçam e efetivem esses direitos, tendentes a pacificar os conflitos nessa seara.

            A par disso, o presente trabalho tem como objetivo precípuo a análise dos instrumentos jurídicos hábeis à solução dos conflitos que envolvam relações de consumo no âmbito dos quatro países membros do MERCOSUL. Assim, após uma breve análise das normas consumeristas dos ordenamentos jurídicos internos do Brasil, da Argentina, do Paraguai e do Uruguai, trata-se especificamente da questão do conflito de jurisdições entre esses países, das ações coletivas, dos Juizados Especiais Cíveis e da arbitragem, interna e internacional, como instrumentos para pacificação de litígios estabelecidos entre consumidor e fornecedor.


2. O DIREITO DO CONSUMIDOR NO MERCOSUL: BREVES CONSIDERAÇÕES

            O surgimento da preocupação com a proteção do consumidor foi corolário de um intenso e demorado processo, que teve suas bases no reconhecimento de que, após as mudanças operadas pela industrialização e pelo consumo, o consumidor, na relação com o fornecedor, não gozava mais da liberdade de contratar, tão infamada pelo direito contratual clássico, tornando-se vulnerável. Com isso, passou a haver uma preocupação internacional com a relação de consumo, que teve como ponto culminante o rompimento da idéia de liberalismo contratual e a criação de mecanismos para proteção da parte hipossuficiente.

            Nesse contexto, [01] emerge uma nova política nacional e internacional de intervenção [02] do Estado nos contratos de consumo e de proteção aos consumidores, que evidencia as falhas do direito comum e que redefine os limites da noção de liberdade contratual do consumidor.

            Alicerçados nesse novo movimento de proteção aos consumidores, e desvencilhando-se do dogma do liberalismo contratual, os países do MERCOSUL [03] passaram a editar leis específicas sobre as relações de consumo, reconhecendo que estas não podem ser tratadas de maneira similar às relações comerciais comuns. Tais legislações deram à matéria regramento próprio, a fim de melhor proteger os consumidores contra os abusos cometidos pelos comerciantes.

            No Brasil, a proteção ao consumidor está inserida na própria Constituição Federal de 1988, em seus arts. 5º, inc. XXXII, e 170, inc. V. O inc. XXXII do art. 5º da Constituição prevê que "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor", impondo ao Estado o dever de intervir nas relações de consumo que se estabelecem entre consumidor e fornecedor, então mitigando a regra do laissez-faire, laissez passeur. O art. 170, inc. V, da Constituição Federal trata da defesa do consumidor como um princípio da ordem econômica. [04]

            Atendendo ao disposto no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que prevê que o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaboraria o Código de Defesa do Consumidor, foi promulgada, em 11 de setembro de 1990, a Lei n.º 8.078/90, cuja redação foi fortemente marcada pelo direito comparado, notadamente o direito norte-americano e a legislação harmonizadora da União Européia. [05] Com a entrada em vigor dessa Lei, as relações de consumo, que antes recebiam regulamento pelo direito civil comum, passam a ter regulamentação própria, de forma a melhor atender os interesses do consumidor. [06]

            A Constituição da República Argentina, promulgada em 1994, aborda a "defesa do consumidor" em seu capítulo segundo, ao tratar dos denominados "novos direitos e garantias". Prevê, no art. 42, que são direitos do consumidor a proteção da saúde, da segurança e dos interesses econômicos, a informação adequada e verdadeira sobre produtos e serviços postos no mercado de consumo, em atendimento aos princípios da liberdade de escolha, do equilíbrio das relações de consumo e da dignidade de tratamento aos consumidores. No art. 43, § 2.º, a Constituição Argentina traz um rol de legitimados a promover as ações judiciais na defesa dos interesses difusos e coletivos dos consumidores.

            Em nível infraconstitucional, vige, na Argentina, a Ley de Defensa del Consumidor, de n.º 24.240, promulgada em 1993 e alterada pelas Leis n.º 24.568/1995, n.º 24.787/1997 e n.º 24.999/1998.

            Em muitos pontos, a legislação argentina e a brasileira apresentam similitudes. Esta, no entanto, apresenta um maior grau de proteção e de abrangência, sobretudo no concernente à reparação dos danos causados por vícios e defeitos dos produtos.

            A Constituição Nacional do Paraguai faz expressa referência a políticas de defesa do consumidor nos seus arts. 27, 38 e 72. Legislação infraconstitucional sobre a matéria, contudo, apenas veio a ser promulgada em 1998, com a Lei n.º 1.334, denominada Ley de Defensa del Consumidor y del Usuário, que é baseada no projeto do Protocolo de Defesa Comum do Consumidor no Mercosul, elaborado pelo Comitê Técnico n.º 7 em 1997 e que acabou não sendo aprovado.

            Observa-se, também, que muitos artigos da legislação consumerista paraguaia reproduzem dispositivos do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor e também da lei argentina.

            O Uruguai, diversamente do que ocorre nos demais Estados Partes do MERCOSUL, não prevê expressamente a proteção ao consumidor em sua Constituição Nacional, de 1997. Somente nos arts. 24, 44 e 52 é que se pode ver a matéria sendo abordada, o que é feito de maneira muito branda. Além disso, esse país foi o último do Bloco a promulgar uma legislação específica sobre defesa do consumidor, o que fez em 1999, com a Lei n.º 17.189, que entrou em vigor em junho de 2000, e acabou sendo revogada e substituída pela Lei n.º 17.250, a Ley de Defensa del Consumidor, publicada em 17 de agosto de 2000. [07] Até a entrada em vigor da Lei n.º 17.189 (atualmente revogada), as relações de consumo eram reguladas pelo Código Civil de 1969, que havia sofrido apenas algumas alterações.

            Aquilata-se, pois, a partir da análise do ordenamento jurídico dos países membros do MERCOSUL, que todos eles possuem legislação específica em matéria de direito do consumidor.

            Não há, contudo, entre esses países, tratado internacional ou legislação específica interna que disponha sobre os instrumentos para solução dos litígios consumeristas. Dessa sorte, para o consumidor buscar um direito violado decorrente da relação de consumo, tem de recorrer às mesmas vias existentes para a solução de conflitos de direito comum.


3. O CONFLITO DE JURISDIÇÕES

            A forma ortodoxa para dirimir conflitos consumeristas é a submissão do conflito ao Poder Judiciário. No entanto, a problemática que inicialmente se impõe, diante da existência de um litígio que envolva relação de consumo estabelecida entre consumidor de um país e fornecedor de outro país do MERCOSUL, é saber qual deles terá jurisdição para julgar a causa.

            A matéria tem de ser enfrentada a partir de três pressupostos: 1) identificar a situação jurídica conflituosa; 2) localizar o país em que o conflito se verificou; e, por fim, 2) determinar o direito aplicável à espécie.

            A identificação da jurisdição que atuará no caso concreto se faz pela aferição do elemento de conexão entre as diversas ordens jurídicas envolvidas, que tanto poderá se fundar nos sujeitos envolvidos (um nacional e um estrangeiro, por exemplo), no objeto do litígio (bens situados noutro Estado) ou no próprio ato jurídico (contrato celebrado em um país para ser executado em outro). [08]

            No que concerne à matéria afeta a direito do consumidor, a dificuldade de identificação do elemento de conexão ganha destaque. Isso porque, afora as dificuldades já apontadas pela doutrina com relação à prevalência desta ou daquela circunstância em matéria obrigacional, [09] ainda faz-se necessário identificar a natureza do vínculo entre as partes, o qual, dependendo do caso, poderá revestir-se em uma obrigação contratual ou extracontratual, cada qual dotada de particularidades.

            A posição adotada pelo Direito Brasileiro foi a de regular tais conflitos pela lei do país em que se constitui a obrigação. Nessa esteira, o disposto no art. 9.º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), que assim prevê:

            "Art. 9.º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.

            § 1.º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.

            § 2.º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente."

            Quando o conflito de interesses disser respeito à obrigação derivada de contrato, aplicar-se-á, quanto à forma externa e aos demais requisitos de validade, a lei do local da constituição do ato negocial. Essa regra é cogente e, conforme adverte a doutrina, não é possível às partes, a pretexto de regular o contrato, instituir normas contrárias aos ditames de ordem pública reconhecidos pelas ordens jurídicas nacionais envolvidas.

            As obrigações derivadas do contrato reputam-se constituídas, conforme a LICC (art. 9.º, § 2.º), no lugar em que realizada a proposta. Isso porque, embora o dispositivo refira-se ao local em que reside o proponente, é de se entender que o emprego do termo "residir" está aí empregado no sentido de "achar-se" ou "estar" e não no sentido usual de "estabelecer morada ordinária". [10] Como tal, considera-se constituído o contrato no local em que se encontra o proponente quando da efetivação da proposta, em consonância com o que dispunha o art. 1087 do CCB/16, [11] reproduzido pelo art. 435 do CCB/2002, ora vigente. [12]

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            Em matéria de relação de consumo, entretanto, a solução preconizada pela LICC não é a mais indicada. O contrato é geralmente pactuado na sede do fornecedor, de modo que a legislação aplicável para reger as obrigações decorrentes do contrato acaba sendo, na maioria das vezes, a do local da contratação, quase sempre desconhecida do consumidor.

            No concernente ao dano derivado de vício de inadequação ou de insegurança do produto - que é a maior causa de litígios consumeristas na seara transfronteiriça -, deve-se atentar para a circunstância de que a responsabilidade civil do fornecedor decorre exclusivamente da lei (responsabilidade civil legal, e não contratual), prescindindo de relação contratual ou da ocorrência de ato ilícito. Em face disso, é inaplicável a regra antes enunciada, que se refere ao conflito de leis que regem as obrigações contratuais. Com efeito, a obrigação que surge para a cadeia de fornecedores pela ocorrência de vício no produto deriva de regra legal, não tendo por base o contrato. Prova disso é a extensão da responsabilidade para a cobertura de danos causados a não-consumidores ou mesmo a responsabilidade do produtor, com o qual o consumidor não possui qualquer relação contratual subjacente. Não responde o fornecedor por conta do contrato de consumo existente, mas pela colocação do produto no mercado.

            Portanto, no caso de dano ao consumidor decorrente de vício do produto, deverá atuar a jurisdição do Estado em que ocorrido o dano ou prejuízo do qual emerge a obrigação de reparar, nos termos do que dispõe o art. 9.º, caput, da LICC. [13]

            Idêntica regra de sobredireito é observada nos demais países do Bloco, pois Argentina, Paraguai e Uruguai são signatários dos Tratados de Montevidéu de 1889 e 1940, que prescrevem que as obrigações que nascem independentemente de convenção se regem pela lei do lugar onde se produziu o fato lícito ou ilícito de que procedem [14], sendo aplicável a jurisdição desse local. [15]

            É preciso salientar que a competência para a demanda seguirá as regras do local em que for proposta, admitindo-se, pois, no caso de ação proposta sob a Justiça brasileira, [16] a opção pelo local do dano (art. 100, V, letra "a", do CPCB) ou pelo domicílio da parte demandada (art. 94 do CPCB).

            Casos haverá, contudo, em que a competência será concorrente entre os países do MERCOSUL, ou seja, quando mais de um país seja competente para julgar determinado litígio. Nessa hipótese, caso o Brasil seja competente, mas a contenda seja dirimida por Justiça estrangeira, a sentença proferida por esta somente poderá ser executada em território nacional depois de homologada pelo Superior Tribunal Federal, na forma do art. 102, inc. I, letra "h", da Constituição Federal. [17]

            Nesses casos, o cumprimento das sentenças proferidas pelas partes obedecerá o Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa (Protocolo de Las Leñas) [18] e o Protocolo de Medidas Cautelares, que prevêem a adoção de mecanismos de cooperação entre os Estados Partes.

            Tais instrumentos têm como principal vantagem favorecer as medidas interjurisdicionais, facilitando as atividades probatórias e as de simples trâmite, bem como o reconhecimento de sentenças estrangeiras e o acesso às jurisdições dos demais países que integram o Bloco.

            Assim, por exemplo, se um consumidor brasileiro adquirir um produto no Paraguai que lhe cause danos, poderá ingressar com uma ação indenizatória neste país, onde lhe deverá ser garantida igualdade de tratamento e todas as facilidades que têm os cidadãos deste país. [19]

            A ressalva a ser feita, nesse tocante, diz com o Uruguai, que ainda não internalizou o Protocolo de Las Lenãs em seu ordenamento interno. A eficácia dessas regras, no entanto, encontram-se, em sua maior parte, nas mãos dos tribunais nacionais, a quem incumbirá dar primazia às regras do bloco em relação às leis internas, como condição de sobrevivência do próprio sistema jurídico comunitário. [20]

            Atentos a isso e visando a facilitação da solução de conflitos no âmbito do MERCOSUL, os membros do Bloco assinaram, em 1995, o Protocolo de Santa Maria, que visa resolver o conflito de jurisdições derivados das relações de consumo. Esse Protocolo estabelece, para os casos que regula, que tem jurisdição o juiz da Comarca onde se situa o domicílio do consumidor e que é aplicável a lei vigente neste país. A sua internalização pelos países do Bloco está condicionada, contudo, à aprovação do "Regulamento Comum MERCOSUL de Defesa do Consumidor", em sua totalidade, pelo Conselho do Mercado Comum.

            Como fracassou a tentativa de aprovação desse Regulamento, que operaria a unificação das legislações consumeristas, deverão ser alterados os dispositivos condicionantes da sua vigência, a fim de que possa ser internalizado pelos Estados-Partes e, por conseguinte, ter aplicação aos conflitos consumeristas que surjam no âmbito desses países. De qualquer forma, merecem ser analisadas as importantes modificações que a vigência desse Protocolo introduzirá.

            De acordo com o art. 1.º, número 1, a referida regra de sobredireito incide nas relações de consumo quando o contrato for de (a) venda a prazo de bens móveis corpóreos, (b) de empréstimo a prazo ou de outra operação de crédito ligada a financiamento de bens ou (c) quando o contrato tiver por objeto prestação de serviço ou fornecimento de bem móvel corpóreo. Em todos os casos, para a aplicação do Protocolo, a celebração do contrato deve ter sido precedida, no Estado do domicílio do consumidor, de uma proposta específica ou de uma publicidade precisa, e que o consumidor tenha realizado os atos necessários à conclusão do contrato.

            Há, assim, uma injustificada limitação no âmbito material de aplicação do Protocolo, que, em regra, somente incidiria quando o fornecedor fizesse proposta ou publicidade no domicílio do consumidor e quando o contrato tivesse por objeto bem móvel corpóreo. Quando, por exemplo, a transação tivesse por objeto bem imóvel ou bem móvel incorpóreo, não teria incidência o Protocolo. Também não seria aplicado no caso do consumidor turista que adquire determinado produto em outro país do MERCOSUL sem que tenha havido publicidade ou proposta no seu país.

            Como se vê, a vigência desse Acordo será um importante passo na efetivação da proteção do consumidor no âmbito do MERCOSUL. Em face disso, o Comitê Técnico n.º 7 tem trabalhado para conferir aplicabilidade ao Protocolo de Santa Maria e ampliar a extensão material da sua incidência, a fim de que todos os conflitos consumeristas sejam a ele submetidos, e não somente aqueles decorrentes de relação de consumo em que houve publicidade por empresa estrangeira no domicílio do consumidor.

            Enquanto não entra em vigor esse Protocolo, continua-se aplicando as regras gerais de Direito Internacional Privado antes mencionadas para solucionar os conflitos de leis e de jurisdições na seara do direito do consumidor.


4. AS AÇÕES COLETIVAS

            As ações coletivas foram criadas a partir da constatação de que as ações individuais comuns não eram suficientes para tutelar interesses supraindividuais, tais como a saúde, os interesses do consumidor, os relativos a defesa e conservação do meio ambiente, do patrimônio histórico e cultural, aos bens de valor artístico, estético, paisagístico, cujo dano jurídico afeta mais de uma pessoa. [21]

            Para introduzir essa nova espécie de ação no sistema processual dos países, não foi necessário criar um novo procedimento, mas apenas introduzir algumas inovações no ordenamento jurídico, como a legitimação ativa, os efeitos e os limites da coisa julgada material, quando se tutela interesses coletivos lato sensu. [22]

            A fim de constatar as hipóteses de cabimento de ações coletivas, incluídas nestas as ações civis públicas, em favor do interesse dos consumidores, imperioso conceituar e fazer a distinção entre direitos individuais homogêneos, direitos individuais heterogêneos, direitos coletivos e direitos difusos. [23]

            Os interesses individuais heterogêneos são aqueles direitos pertencentes a cada indivíduo isoladamente, que não possuem ligação ou semelhança alguma com os direitos de outrem.

            Os interesses individuais homogêneos são interesses de grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, que compartilham prejuízos divisíveis, cuja lesão decorre de origem comum (por exemplo, quando os consumidores adquirem produtos fabricados em série com o mesmo defeito).

            Por interesses coletivos em sentido estrito, deve-se entender aqueles interesses transindividuais de natureza indivisível, de que sejam titulares interessados determináveis (o grupo, categoria ou classe de pessoas) ligados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica de base (p. ex., quando os consumidores se submetem à mesma cláusula ilegal de um contrato de adesão).

            Os interesses difusos são aqueles em que os interessados indetermináveis estão unidos por uma mesma circunstância de fato em relação a um dano indivisível (ex.: todos aqueles que assistem a uma propaganda enganosa veiculada pela televisão). [24] O que legitima a defesa de interesses difusos de consumidores é o fato de a lei consumerista ser de interesse social, assumindo caráter de lei intervencionista. Na verdade, o que gerou a proteção jurídica dos direitos difusos e coletivos, dentre os quais os dos consumidores, foi a identificação desses direitos e a percepção de que não recebiam tutela adequada no sistema processual clássico. [25]

            Essa diferenciação tem importância fundamental para verificar a tutela jurídica que será concedida. No que concerne aos direitos individuais heterogêneos, ocorrendo vícios de inadequação ou de insegurança nos produtos, o consumidor, para buscar a reparação civil, terá de propor uma ação civil individual. Vale dizer, o interesse individual heterogêneo do consumidor será defendido por legitimação ordinária. Já, em se tratando de direitos coletivos lato sensu, sua defesa pode ser realizada individualmente por cada consumidor ou por meio de uma ação coletiva.

            No Brasil, os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos são conceituados, respectivamente, nos incisos I, II e III do parágrafo único do art. 81 da Lei n.º 8.078/90. No art. 82, há previsão de um rol de legitimados para propor demandas judiciais a título coletivo: o Ministério Público, a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, destinadas à defesa dos interesses e direitos dos consumidores.

            Os "órgãos da administração pública", de que trata o artigo, são aqueles encarregados da proteção ao consumidor: em nível federal, o SNDE e o DNPDC; em nível estadual, os Procons; e, em nível municipal, as comissões, conselhos e defesa do consumidor ou afins.

            Todos esses legitimados poderão propor em nome próprio, no interesse das vítimas ou dos seus sucessores, como substitutos processuais, [26] a ação civil coletiva de responsabilidade. [27] Todavia, essa legitimação também é concorrente, uma vez que não obsta o ajuizamento da ação individual (legitimação ordinária).

            Tratando-se de ação civil coletiva em que se discute a responsabilidade civil por vícios de inadequação e/ou de insegurança que tenham causado danos a uma coletividade de consumidores, a eventual procedência do pedido resultará em condenação genérica, que apenas fixará a responsabilidade do réu pelos danos causados. [28] Os efetivos danos patrimoniais e extrapatrimoniais serão apurados em ulterior liquidação de sentença, que poderá ocorrer de forma individual ou coletiva, como pressuposto para a execução da sentença. [29]

            A ação coletiva não obsta a propositura de ações individuais pelos consumidores. No entanto, neste caso, os efeitos da coisa julgada na ação coletiva julgada procedente deixará de beneficiar os autores de ações individuais que não requererem a suspensão desta no prazo de 30 dias da ciência do ajuizamento da ação coletiva. [30]

            A sentença de procedência ou improcedência de uma ação coletiva faz coisa julgada erga omnes, no caso de interesses individuais homogêneos ou interesses difusos; ou ultra partes, mas limitadamente ao grupo, classe ou categoria, no caso em que se defenda direitos coletivos stricto sensu. Em qualquer das duas hipóteses, não fará coisa julgada a sentença da ação coletiva quando o pedido for julgado improcedente por falta de provas. [31]

            A lei consumerista argentina prevê, no seu art. 52, [32] quase os mesmos legitimados do Brasil para a propositura de ações no interesse dos consumidores, não incluindo nesse rol, contudo, a União, os Estados, os Municípios. A lei argentina também não faz diferenciação entre a tutela dos interesses individuais e dos interesses coletivos lato sensu, o que leva a entender que a legitimação extraordinária se dará tanto em se tratando de interesses individuais heterogêneos como de interesses coletivos em sentido amplo.

            O art. 54 da Lei Argentina de Defesa do Consumidor prevê que a sentença prolatada em uma ação que não tenha sido promovida pelo consumidor ou usuário (legitimação extraordinária, portanto) somente fará coisa julgada em relação a este se for julgada procedente e afetar interesses coletivos. [33] Vale dizer, trata-se de coisa julgada secundum eventum litis, que só se verifica em havendo benefício ao consumidor.

            Observa-se, assim, que a legislação argentina é mais benéfica, em relação aos efeitos da coisa julgada, do que a legislação brasileira, já que, no Brasil, a sentença de improcedência de uma ação coletiva faz coisa julgada em relação ao consumidor, salvo no caso de improcedência por falta de provas.

            A lei consumerista paraguaia também disciplina a tutela judicial dos direitos dos consumidores e, à semelhança da legislação Argentina, prevê, como legitimados para a propositura da ação, o consumidor ou usuário, as associações de consumidores que cumpram determinados requisitos, a autoridade competente nacional ou local e a Fiscalía General de la República. [34]

            A exemplo do que ocorre no Brasil, dispõe a lei paraguaia, no seu art. 43, [35] que a defesa dos interesses do consumidor será exercida coletivamente quando forem invocados direitos difusos ou coletivos. Esses interesses transindividuais são conceituados nos arts. 44 e 4.º, alínea "i", da Lei nº 1.334/98, [36] de forma muito similar à definição da lei brasileira. Todavia, não faz qualquer referência aos direitos individuais homogêneos, e, por conseguinte, a violação destes direitos individuais, no Paraguai, não enseja a propositura de ação coletiva.

            A lei consumerista paraguaia, contudo, faz uma restrição quanto à legitimidade e à propositura das ações coletivas em razão da matéria, à medida que as ações de reparação de danos ou prejuízos somente poderão ser propostas pelos consumidores ou usuários afetados (art. 43, segundo parágrafo). [37] Essa restrição acaba por limitar em muito a utilização das ações coletivas, pois, certamente, na maioria dos casos em que são afetados interesses transindividuais dos consumidores, há danos ou prejuízos causados por vícios de inadequação ou insegurança dos produtos.

            A Lei de Defesa do Consumidor do Uruguai não prevê a tutela coletiva dos direitos dos consumidores. Mais uma vez a lei consumerista uruguaia se mostra menos protetiva e abrangente do que as legislações dos outros três países membros do MERCOSUL.

            Assim, a tutela dos interesses difusos dos consumidores deve buscar suas bases no Código General de Proceso. Prevê a legislação processual que o Ministério Público tem legitimação ativa para propor demandas na defesa de interesses coletivos ou difusos (art. 42 do CGP). Em relação aos efeitos e aos limites da cosa juzgada, o Código Processual segue os delineamentos da lei consumerista brasileira, dispondo que a sentença tem eficácia erga omnes, salvo no caso de improcedência da ação coletiva por insuficiência de provas (art. 220 do CGP).

            De qualquer sorte, em que pesem as diferenças de proteção nos quatro países, a tutela dos interesses coletivos e difusos deve atuar mais como instrumento preventivo do que repressivo, de modo a impedir danos aos consumidores, geralmente irreversíveis.

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Sobre o autor
Fabrício Castagna Lunardi

advogado em Santa Maria (RS), especializando em Direito Civil pela Universidade Federal de Santa Maria

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUNARDI, Fabrício Castagna. Os instrumentos de solução de conflitos consumeristas no Mercosul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1039, 6 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8278. Acesso em: 22 dez. 2024.

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