A tributação concentrada e a alteração da RMIT:
A opção legislativa da tributação concentrada é o resultado da aplicação de uma política fiscal que visa, sobremaneira, melhorar a eficiência da arrecadação tributária, aumentando a capacidade arrecadatória estatal, com diminuição da atividade fiscalizatória. Isso ocorre porque, ao alterar alguns dos elementos formadores da RMIT, selecionando determinadas atividades específicas e deslocando a responsabilidade tributária existente e verificada sobre tais atividades para algum ponto da cadeia produtiva, a autoridade fiscal reduz drasticamente o seu trabalho de fiscalização, reduz a chance de ocorrer a inadimplência tributária e aumenta a arrecadação, tudo de uma só vez.
Como visto acima, utilizou-se, grosso modo, do exemplo do ICMS incidente sobre uma operação de circulação de medicamentos por uma empresa que trabalha com a distribuição de medicamentos. Essa distribuidora, no contexto da cadeia produtiva, adquire diversos medicamentos de diferentes indústrias, para distribuir a diversas farmácias em diferentes locais que irão revender os produtos aos consumidores finais, ou mesmo distribui para hospitais, clínicas, postos de saúde, etc., que também repassarão os medicamentos aos consumidores finais. Pela aplicação da legislação tributária ordinária, cada uma dessas operações está sujeita à aplicação da RMIT do ICMS pelo regime de não cumulatividade típica desse tributo. No entanto, a autoridade tributária teria que fiscalizar cada uma dessas inúmeras operações tributárias diárias, gerando a ineficiência de tal método, tendo em vista a notória falta de pessoal para tal mister. Isso acarretaria, de forma inafastável, o aumento da sonegação fiscal e a queda da arrecadação tributária.
Percebeu-se, então, que é mais fácil e ágil concentrar a fiscalização sobre uma só etapa da cadeia produtiva, fazendo com que essa etapa eleita seja a responsável pelo pagamento do tributo de toda a cadeia de vendas subsequente, além da sua própria operação mercantil. No caso do ICMS, criou-se a figura da substituição tributária (ST), na qual o sujeito eleito para determinada operação paga, como substituidor tributário, o ICMS de todas as etapas posteriores à sua participação na cadeia produtiva. Houve, assim, um deslocamento do sujeito passivo (o responsável) e do critério temporal do tributo, alterando-se, assim, elementos tanto da hipótese, quando do consequente. No exemplo oferecido, a distribuidora de medicamentos tornou-se responsável pelo pagamento do ICMS-ST por toda a cadeia econômica posterior, ou seja, ela é quem paga o tributo estadual dos demais sujeitos da operação econômica, sendo que este é composto no preço destacado às demais etapas produtivas como incluso na tributação, constando no destaque da nota fiscal. Quando a farmácia vende ao consumidor final, ela farmácia não recolhe o ICMS, pois a sua quota parte já foi recolhida pela empresa distribuidora, na condição de responsável pelo pagamento do ICMS-ST.
O ICMS-ST é um dos exemplos vigentes em nosso país da utilização desse sistema, pois o mesmo ocorre com determinados produtos com as contribuições sociais do PIS e da COFINS, que a legislação federal determinada a mesma incidência concentrada, aqui chamada de “monofásica”, ou seja, incidente em somente uma das fases da cadeia produtiva. A alteração é meramente semântica, tratando-se de duas faces do mesmo instituto, que é o da tributação concentrada, que acaba incidindo sobre uma das operações tributárias em substituição do resto da cadeia produtiva.
Veja-se que, no caso apresentado, é muito mais fácil fiscalizar poucas distribuidoras de medicamento do que milhares de farmácias espalhadas por todo um Estado. A concentração da tributação em determinados segmentos econômicos cumpre a missão de melhorar a performance fiscal arrecadatória e a sua eficácia, já que concentra, igualmente, os esforços de fiscalização em poucos segmentos e, com isso, aumenta a arrecadação sobre aquele determinado setor.
Simples Nacional e a tributação concentrada.
Como visto, a estratégia da concentração tributária faz parte de uma política fiscal de melhoria da eficácia tributária, já que permite a seleção econômica de determinados segmentos para convergir a incidência tributária de toda uma cadeia produtiva, alterando-se a RMIT geral e abstrata de determinados tributos. A regra do sistema tributário do Simples Nacional, como visto, engloba ordinariamente o pagamento unificado de oito tributos, dentre os quais três deles a legislação prevê a concentração tributária de determinados produtos: o ICMS e as contribuições sociais PIS e COFINS.
No tópico anterior foi passado que o legislador elege o responsável pelo pagamento antecipado dos tributos (ICMS-ST e PIS/COFINS monofásicos) por toda a cadeia produtiva de determinados produtos. O problema é que a base de cálculo do contribuinte optante pelo Simples Nacional é o total de vendas, não lhe sendo permitido a apropriação de quaisquer créditos decorrentes de operações anteriores.
Portanto, para os fins de formação da base de cálculo do Simples Nacional, é normal que o responsável pela contabilidade pegue o somatório de vendas da empresa que exerce o comércio, por exemplo, e faça a aplicação da alíquota pertinente, emitindo a guia de pagamento unificado com o valor correspondente, de forma simples e ágil para esse fim.
Entretanto, como o ICMS-ST e as contribuições PIS e COFINS do regime monofásicos já foram pagas antecipadamente por toda a cadeia produtiva, sendo que, quando o produto adentrou no seu estabelecimento, a obrigação tributária já estava cumprida por outrem, ou seja, pelo responsável, já que houve alteração de algum dos elementos da RMIT competente. Desta forma, o contribuinte que paga a guia unificada do Simples Nacional sem realizar o desconto dos valores já pagos de modo concentrado, acaba pagando de forma duplicada esses tributos, dentro da divisão tributária disposta nas tabelas de segmentos econômicos da LC n. 123/2006.
Sobre o ponto, deve ser observado o art. 18 da referida LC, que estabelece o regramento geral acerca da base de cálculo e alíquotas das operações tributadas pelo Simples Nacional. A observação necessária sobre os produtos de tributação concentrada está alocada no §4ª-A, com o texto incluído pela redação da Lei Complementar n. 147/2014, que determina a obrigação de o contribuinte segregar, da base de cálculo, as receita decorrentes de operações ou prestações sujeitas à tributação concentrada em um única etapa (monofásica), bem como em relação ao ICMS que tenha sido recolhido por substituto tributário ou por antecipação com encerramento de tributação.
Ora, nada mais lógico do que o dever de se realizar a segregação dos valores destacados com tributação concentrada, uma vez que a obrigação tributária pertinente já foi satisfeita previamente, tais valores já foram pagos por outrem, pelo responsável, em uma das etapas de produção anterior. Não o fazer ocasionaria o dúplice pagamento desses tributos já pagos em razão das operações seguintes. Portanto, como a obrigação tributária pertinente à operação com o produto que a própria legislação determina o recolhimento de tributos de forma antecipada, concentrada, não seria razoável a manutenção desses valores na base de cálculo da obrigação tributária do Simples Nacional.
E não estamos aqui falando da geração de um crédito, tal qual operado nas relações de tributos não cumulativos, como o ICMS e as contribuições PIS e COFINS do regime não cumulativo, aplicado em operações de empresas optantes pela tributação do imposto de renda pelo Lucro Real. Aliás, a LC 123/2003, no seu art. 21, §9º, inclusive não admite a utilização de créditos que não sejam específicos do sistema do Simples Nacional, e, mesmo que sejam admitidos no sistema, o seu aproveitamento só pode ocorrer quando respeitada a competência tributária de cada uma das Fazendas Públicas envolvidas no sistema, ou seja, cada crédito eventualmente existente, só pode ser compensado com os valores pertinentes ao mesmo órgão competente pela geração daquele tributo (art. 21, §10). Simplesmente o valor do tributo já pago na operação anterior, por ocasião do deslocamento da responsabilidade em razão da concentração legal, deve ser segregado, excluído da base de cálculo para fins de apuração do tributo unificado do Simples Nacional.
E o problema prático referido no início dessa dissertação é o fato de que parte dos contribuintes optantes do Simples Nacional que revendem os produtos sujeitos à tributação concentrada, seja pela sistemática do ICMS-ST, seja pela incidência monofásica das contribuições sociais PIS e COFINS, simplesmente não sabem do dever de exclusão desses valores da base de cálculo do Simples Nacional; noutras palavras os contribuintes, por desconhecimento, acabam não gerindo a documentação fiscal demonstradoras das operações cujos valores podem ser segregados, ou os responsáveis pela contabilidade também deixam de realizar a segregação, ocasionando, obviamente, um aumento indevido da carga tributária.
Mas nem tudo é terra arrasada! Identificado que houve o pagamento indevido da guia unificada do Simples Nacional devido à não segregação dos valores dos tributos cobrados de forma concentrada, nos moldes do art. 18, §4º, o contribuinte pode requerer à autoridade fiscal competente, por meio de processo administrativo, no caso de tributos federais, o Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN), e as Secretarias das Receitas Estaduais no caso do ICMS-ST, a restituição desses valores pagos em duplicidade.
Veja-se que a própria LC 123/2003, no seu art. 21, §5º, prevê que O CGSN regulará a compensação e a restituição dos valores do Simples Nacional recolhidos indevidamente ou em montante superior ao devido. E, na sequência, o §6º da mesma regra prevê que tais valores serão corrigidos pela SELIC, incluindo juros de 1% quando da efetivação da restituição.
Particularmente, a aplicação do pagamento de juros remuneratórios não tem razão de ser no caso, tendo em vista que, como visto, é uma obrigação do contribuinte realizar a segregação dos valores já consolidados com a tributação concentrada apontada. Ora, na hipótese de o próprio contribuinte não realizar essa obrigação e gerar o pagamento indevido, o pagamento a maior e o consecutivo direito à restituição não foram gerados por ato da autoridade fiscal, mas por erro do próprio contribuinte. Portanto, parece que a Fazenda Pública suporta o pagamento dos juros remuneratórios por um ato que não pode ser atribuído à sua responsabilidade. O contribuinte erra e, ainda assim, acaba percebendo um valor a maior por conta disso. Enfim, a correção monetária pelo índice SELIC reequilibra o poder de compra do valor que ficou à disposição da Fazenda, mas os juros não tem motivação jurídica razoável para sua existência.
De qualquer sorte, fica aqui exposto que, embora o contribuinte não só possa, como deve, realizar a segregação dos valores já pagos a título de tributação concentrada (PIS e COFINS monofásicos e ICMS-ST), caso não o tenha realizado, pode requerer às autoridades fiscais competentes pela gestão dos respectivos tributos a restituição dos valores, de forma administrativa, demonstrado que houve o pagamento e que houve a aplicação das regras de tributação concentrada lançadas nos documentos fiscais pertinentes, restituição essa que é realizada em dinheiro (por inexistir créditos ordinários nas operações do Simples Nacional), devidamente corrigida pela SELIC, acumulada com o pagamento de juros de 1% na data da restituição.
Notas
[1] https://datasebrae.com.br/empresas-optantes-pelo-simples-nacional/
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 4ª ed. São Paulo : Noeses, 2011.