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Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil

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28/12/1997 às 00:00
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3. Cidadania: participação consciente

Para além da questão relativa à definição normativa das possibilidades de participação nos desígnios da sociedade e sua organização em Estado, restam as condições sócio-políticas em que se insere o tema cidadania. Parte do problema já foi analisada: refiro-me à uma postura conservadora de parte do Poder Judiciário, limitando a evolução social do país (e o quadro de miséria vigente entre nós aponta a necessidade urgente de reformas sociais). FARIA confessa desapontamento semelhante: "à medida que surgem novos tipos de conflitos, a maioria das leis vai envelhecendo. Embora os legisladores respondam ao desafio da modernização das instituições de direito com a criação de novas leis, a cultura técnico-profissional da magistratura parece defasada, insensível, portanto, aos problemas inerentes à aplicação de leis mais modernas em sua concepção" (1992: 9)

A posição assumida pelo Judiciário constitui um dado forte nas mazelas da máquina estatal brasileira. Era inevitável, portanto, que, mais cedo ou mais tarde, o Judiciário fosse colocado nos debates nacionais, o que aos poucos vem ocorrendo. Durante anos, foi um Poder intocado, como que posto para além do bem e do mal. Houve, contudo, excessos. Por certo, garantir independência aos juízes é um princípio de democracia; mas não expô-los à opinião pública é permitir o exercício do arbítrio de quem, possuindo o poder de interpretar as normas, pode até mesmo negá-las. Este debate, contudo, deve ser criterioso: a muitos interessa apenas garantir que o Judiciário não obstaculizará suas ações ilegítimas. Permiti-lo seria um enorme retrocesso. Mas esquecer-se que também no Judiciário se praticam atos reprováveis constitui, no mínimo, ingenuidade. A discussão, portanto, exige bom senso e respeito à primazia dos interesses da sociedade sobre os interesses individuais.

Há também o problema do acesso dos pobres à Justiça. CARNEIRO, pretendendo analisar "a pobreza crítica de milhões de latinoamericanos", refere-se a uma correlata "pobreza política", vale dizer, não há "nenhum acesso ao poder político e nenhuma oportunidade de participação" (apud OLIVEIRA F°, 1995: 23). É o terceiro obstáculo, já referido: como se pode ter cidadania (participação consciente nos desígnios de Estado) com indivíduos que não possuem condições mínimas de compreender seus direitos e deveres? Afinal, como diz CARNEIRO, "para exercitar direitos e cumprir obrigações pessoais e sociais, para participar de uma democracia sólida, madura e ativa, é necessário que as pessoas tenham a possibilidade de informar-se, de conhecer, quer dizer, de participar." Porém, na realidade, os pobres "não tem oportunidade de conhecer seus direitos, não possuem acesso aos serviços apropriados e disponíveis. Para eles, a lei, o Direito, é algo inacessível, amedrontador, olhado com bastante reserva, pois sempre que os pobres tem contato com a lei e a justiça, é em geral no campo do direito penal, e sempre para sancioná-lo, coibi-lo; em nenhum momento o pobre encara a justiça como um serviço social capaz de outorgar-lhe benefícios - as experiências pessoais, os abusos de autoridades mostram a realidade expressada."(Idem: 25)

Milhões de brasileiros vivem em pobreza política: não se lhes permitiu uma educação apta a desenvolver um senso político e crítico. Especificamente quanto ao Direito, este enorme contingente populacional vive em ignorância jurídica, desconhecendo informações elementares que lhes tocam o cotidiano, como a Lei do Inquilinato, normas sobre o poder de prisão, direitos trabalhistas etc. Chamar-lhes de cidadão, neste contexto, é pura retórica dentro de um mito de democracia participativa que não possui condições mínimas de ser implementada por não estar alicerçada em uma efetiva (possibilidade de) participação popular. Curiosamente, os "esforços de redemocratização" (denominandos assim os atos e processos de transição entre os regimes militares, autoritários, para regimes civis, pretensamente democráticos) pelos quais passaram - e/ou passam - os países da América Latina, não foram acompanhados por uma popularização do conhecimento jurídico, permitindo a formação de cidadãos conscientes de seus poderes, suas faculdades, e de suas obrigações. Ao contrário, este conhecimento continua sendo um privilégio daqueles que podem pagar a assessoria de qualificados profissionais do Direito (e quanto mais qualificados, mais bem remunerados).

Como se só não bastasse, CARNEIRO também reconhece que "existem em nossas instituições judiciais inegáveis dificuldades que impedem o acesso dos mais despossuídos ao sistema judicial. As experiências demostram que os processos são lentos, burocráticos, gerando decisões inoperantes, e que terminam por causar frustrações e ressentimento a tais setores" (Op. cit.: 26) Há que se acrescer, por óbvio, o problema do custo de estar em juízo, principalmente no que se refere à possibilidade de se fazer representar por um bom advogado, capacidade que, justamente em razão da limitação econômica, os pobres rarissimamente podem exercitar. CARNEIRO, assevera que a atenção para as demandas dos pobres, por parte de advogados nomeados pela Ordem dos Advogados ou pelos Tribunais para defender gratuitamente as pessoas pobres, por parte dos Defensores Públicos, escrivães, funcionários do judiciário, é "escassa, negligente e descuidada" (Idem: 29-31).


4. O MITO DA CIDADANIA

A cidadania entre nós, vê-se, não é uma realidade: é uma promessa. E se não temos cidadania (e, por conseqüência, cidadãos), se não temos participação consciente (um amplo contingente de pessoas conscientes e dispostas a participar da e) na condução da sociedade organizada em Estado, não temos democracia.

Destaque o elemento humano. É preciso não esquecer que, para além da definição jurídica de "cidadão", estamos nos referindo a seres humanos (e a uma sociedade). É a qualidade política de cada um desses indivíduos que marca a qualidade política da sociedade (num somatório não aritmético). ALTHUSSER, escorando-se em MARX, adverte que "a sociedade não é composta de indivíduos"; "o que a constitui é o sistema de suas relações sociais, onde vivem, trabalham e lutam seus indivíduos". Realça-se a questão da formação do ser humano pela e na sociedade(7); afinal "cada sociedade tem seus indivíduos, histórica e socialmente determinados" (1978: 30; grifei)(8).

A questão da cidadania não é apenas normativa e doutrinária, mas sociológica: apura-se também no plano dos fatos que compõem (e afetam) a vida dos seres humanos. Assim, importa também verificar a cidadania efetivamente experienciada pela sociedade, pois, para além das teorias e das normas, está a vida de cada ser humano que constitui a sociedade. De pouco adianta propagar que cada um é um agente de seus destinos político, social, econômico, jurídico (o mito da cidadania), se não há condições jurídicas e mesmo pessoais para que isto ocorra. Este ser humano que se crê agente é, antes de mais nada, um objeto de cultura: ela o precede e o forma. Pensamos agir com liberdade, mas agimos segundo parâmetros de "normalidade" desse tempo histórico (repetindo atos e pensamentos que nos são anteriores e podendo influenciar a história apenas em certos limites - variáveis de caso a caso, mas, via de regra, extremamente reduzidos). Confira-se FIGUEIREDO (1994): o tempo histórico forma o indivíduo, constrói seu pensamento, marca a tendência de seus comportamentos, seus desejos principais, suas "necessidades". Sob o enfoque da psicologia, FIGUEIREDO demonstra o acerto das afirmações de MARX sobre as influências das condições materiais, econômicas, sociais sobre o o ser humano.

Assim, o ser humano medieval (europeu) acreditava em (vivia com) fadas, feiticeiros, magos, maldições etc: um tempo de luta religiosa (contraste de seitas em um mundo que crescia) e de forte influência da Igreja Católica: a vida como mera provação, entre Deus e o diabo (luta marcada pelo sacrifício e pelo sofrimento; o prêmio: a salvação eterna; o castigo: o inferno). O agnosticismo de nosso tempo, por sua vez, segue também a história: a religião foi substituída do centro das atenções e referências pela ciência e pela economia (e a vida eterna pelo conforto, riqueza, sucesso). Sim! Somos seres feitos de história(9), formados em um tempo e lugar, em uma sociedade e sua prática social; não só nosso comportamento, mas nossa visão de mundo (a forma como a realidade se manifesta em nós) nos são anteriores em suas linhas mestras. Cada ser humano compreende a si e à realidade em que se insere (na forma como crê que seja esta realidade e esta inserção) a partir de referenciais que lhe são exteriores e anteriores (que lhes foram dados).(10)

No caso brasileiro, deixando de dar formação educacional (crítica e política) a parte da população, mantém-se a prática espoliatória que beneficia uma elite (narcísica, incompetente, inconseqüente) em desproveito de milhões de pessoas (miseráveis e trabalhadores das classes baixas). Permite-se uma certa ordem de privilégios para uma classe intermediária (classe média), que, na estrutura social, funciona como suporte para as classes dominantes: fornece-lhe profissionais que administram seus interesses (nestes incluídos tanto os negócios particulares, quanto os "negócios de Estado", ou seja, a administração do aparelho de Estado, sempre no estrito respeito à conservação de seus benefícios), assim como assimila (motivada pelo desejo de conservar sua própria parcela - ainda que limitada - de benefícios) a fobia - e a luta - contra um possível "levante" das massas exploradas.

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A este quadro de dominação e a exploração serve o "mito da cidadania": nossa sociedade é induzida a crer-se democrática e os indivíduos a crerem-se cidadãos; segundo este discurso (falso, nos termos vistos), haveria entre nós respeito ao Direito (não só às normas estabelecidas, como aos "elevados princípios de justiça") e oportunidades de participação. Mas examinando-se os indivíduos isoladamente, encontrar-se-á apenas uma pequena minoria que possui condições pessoais e sociais de, efetivamente, conhecer e utilizar-se das possibilidades (limitadas, como viu-se) de participação consciente nos desígnios de Estado. A consolidação do (verdadeiro) Estado Democrático de Direito, em contraste, exige muito mais. Há que repensar nossas posturas: a pretensa inocência da alienação política provou, durante anos, ser uma irresponsável adesão à continuidade do sistema espoliativo que polvilhou nosso país de miseráveis, despreparados, até mesmo, para perceberem que o trabalho(11) e a organização das iniciativas poderia ser uma possibilidade de superação do estado em que se encontram. Assim, muitos se entregam às seduções do vício (que aliviaria) e da criminalidade (onde crêem poder exercitar algum poder).

Os que possuem uma visão crítica precisam posicionar-se e buscar conquistas que efetivem a democracia. Trabalhar quer no plano político (na luta pela construção de um sistema educacional capaz de criar seres humanos aptos a compreender, de forma crítica e participativa, a realidade social e política; a alteração das legislações que cuidam da participação popular na Administração Pública e da defesa dos direitos previstos etc), quer no plano jurídico (criando organizações não governamentais para o exercício dos meios processuais disponíveis, concretizando uma defesa dos direitos individuais, coletivos ou difusos previstos, bem como defesa dos bens e interesses públicos; alteração das práticas judiciárias e administrativas de Estado, onde a busca de formalismo determina que se tratem de forma igual fracos e fortes, espoliados e espoliadores).

Este o desafio que se coloca diante de nós; assumí-lo é uma opção de justiça, opção humanista, evolucionária (em lugar de revolucionária).


NOTAS

(1) Ser ativo politicamente e não apenas "súdito", mero objeto de macro-políticas (onde ninguém possui rosto, história pessoal ou opinião; uma parte não individualizada das estatísticas).

(2) Conferir: Folha de São Paulo, 12.fev.95, caderno Brasil, p. 18 e Veja, 27.set.95, p. 40-42.

(3) Completa o autor: "estamos perdendo terreno para a diarréia. Na décima economia do mundo ocidental, a paralisia infantil continua matando e aleijando no Nordeste. [...] Só no Estado de São Paulo 1,7 mil mulheres morrem, anualmente, de câncer de colo uterino que por um simples exame preventivo poderia reduzir o número de óbitos à metade." (Idem: 136)

(4) Note a impunidade no "caso Riocentro", a anistia dos torturadores do período militar brasileiro (levada ao extremo de impedir a apuração das circunstâncias do "desaparecimento" de vários cidadãos). Na esteira parecem ir os massacres do Carandiru, Corumbiara e Eldorado de Carajás.

(5) O jornal "Estado de Minas" (24.set.1995), noticia 120 casos, registrados pela Promotoria de Defesa dos Direitos Humanos, de torturas, extorsões e espancamentos, somente no ano de 1995. Veja (1.nov.1995) denuncia que a tortura é empregada como principal método de investigação pela polícia brasileira, relatando diversos casos em que foi barbaramente empregada. Liste-se, ainda, o massacre de "trabalhadores sem-terra" em Corumbiária, RO.

(6) Denuncia AGUIAR: "a grande sabedoria de um ordenamento jurídico é conceder no periférico e manter no essencial" (1984: 35). Aqui o sistema apenas prevê a participação direta dos cidadãos.

(7) Já tive oportunidade de abordar, mais detidamente, esta questão da formação (condicionamento) do indivíduo pela (e na) sociedade (cf. 1995: capítulos 2 a 8)

(8) Minha adesão a ALTHUSSER é limitada. Não acredito, p.ex. que a exploração de seres humanos seja privilégio do capitalismo: regimes auto-denominados comunistas e socialistas exibiram-na também; não comungo, portanto, da confiança do autor no Partido.

(9) Não só, é claro.

(10) Neste tempo, as condições históricas requerem a formação de indivíduos politizados (conscientes da importância de participar dos desígnios da sociedade mundial); porém, procura-se forçar a acomodação dos trabalhadores em nome do emprego e do desenvolvimento; os trabalhadores abrem mão de direitos sociais, mas as elites conservam festas caras, compras milionárias de objetos de arte, iates, propriedades suntuosas etc. Por outro lado, a "vida moderna", construída de trabalho alienado e consumo, desiludiu: vivemos um surto de depressão: crescem as "culturas alternativas" (místicas ou não), o consumo de drogas (do alcóol e tabaco aos entorpecentes), e a busca por entretenimento (alienante, frise-se).

(11) Não se esqueça que a ausência de educação lhes franqueia apenas postos desqualificados de trabalho.


Referências Bibliográficas

AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1984.

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BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucinal e a Efetividade de suas Normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1993.

BELLO, Raquel Discacciati. "A Participação Popular na Administração Pública". [artigo ainda não publicado]

CARVALHO NETTO, Menelick. A Sanção no Procedimento Legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992.

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ENCARNAÇÃO, João Bosco da (coord.) Seis Temas sobre o Ensino Jurídico. São Paulo: Cabral: Robe, 1995)

FARIA, José Eduardo. Justiça e Conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.

FIGUEIREDO, Luís Cláudio. A Invenção do Psicológico: quatro séculos de subjetivação (1500-1900). São Paulo: EDUC: Escuta, 1994.

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MUNIZ, Marco Antônio (org.). Direito e Processo Inflacionário. Belo Horizonte, Del Rey, 1994.

OLIVEIRA Fº, Paulo de (org.). Parolagem: ensaio e crítica. São Paulo: Editorial Livros, 1995.

SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1990.

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Sobre o autor
Gladston Mamede

professor da Faculdade de Ciências Humanas da Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC), doutor em Filosofia do Direito pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAMEDE, Gladston. Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 22, 28 dez. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Publicado na Revista de Informação Legislativa. Brasília, n 134, páginas 219-229, abr./jun. 1997

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