O presente trabalho tem por base um caso concreto apresentado a registro perante o 4º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca da Capital/SP, onde uma determinada associação, através de Assembléia Geral de seus associados, visava instituir uma fundação.
Até aí, nenhum problema, pois nada impede que uma associação seja a instituidora de uma fundação.
Ocorre, entretanto, que à medida em que a qualificação do título foi sendo efetuada, constatou-se que o que se pretendia, na verdade, era a transformação da entidade, de associação em fundação, o que a nosso ver, s.m.j., é incompatível, pois, embora a associação e a fundação pertençam a um mesmo gênero – ambas são pessoas jurídicas de direito privado – são espécies totalmente heterogêneas, sendo a associação uma reunião de pessoas e a fundação uma reunião de patrimônios. Este um dos óbices para a consecução do registro pleiteado.
Ainda que inexista no ordenamento jurídico norma que vede tal operação, cabe observar que a matéria de REGISTRO versa direito público, necessitando expressa previsão legal.
Além do mais, e, sobretudo, mesmo que se admitisse tal "transformação", a interessada deixou de observar a regra do artigo 62 da Lei nº 10.406/02 (NCC), que exige, para a criação de uma fundação, escritura pública ou testamento, em que pese tenha sido o registro autorizado, previamente, pela Curadoria de Fundações.
Como se sabe, dentre os requisitos de validade do negócio jurídico, está a forma prescrita ou não defesa em lei (inciso III do artigo 104).
Segundo Carlos Roberto Gonçalves, "Há dois sistemas no que tange à prova como requisito de validade do negócio jurídico: o consensualismo, da liberdade de forma, e o formalismo ou da forma obrigatória. O direito romano e o alemão eram, inicialmente, formalistas. Posteriormente, por influência do cristianismo e sob a necessidade do intenso movimento comercial da Idade Média, passaram do formalismo conservador ao princípio da liberdade de forma.
No direito brasileiro a forma é, em regra, livre. As partes podem celebrar o contrato por escrito, público ou particular, ou verbalmente, a não ser nos casos em que a lei, para dar maior segurança e seriedade ao negócio, exija a forma escrita, pública ou particular. O consensualismo, portanto, é a regra, e o formalismo, a exceção" (Direito Civil Brasileiro, Volume 1, Editora Saraiva, 2.003).
Com efeito, dispõe o artigo 107 do CC/02: "A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir".
É nulo o negócio jurídico quando "não revestir a forma prescrita em lei" ou "for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade" (CC/02, artigo 166, IV e V). Em alguns casos a lei reclama também a publicidade, mediante o sistema de Registros Públicos (CC/02, artigo 221). Cumpre frisar que o formalismo e a publicidade são garantias do direito.
Na mesma esteira do artigo 166, IV e V, do Código Civil, retrotranscritos, estabelece o artigo 366 do CPC: "Quando a lei exigir, como da substância do ato, o instrumento público, nenhuma outra prova, por mais especial que seja, pode suprir-lhe a falta". Por sua vez, estatui o artigo 154 do mesmo diploma: "Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial".
A forma especial ou solene é exigida pela lei como requisito de validade de determinados negócios jurídicos. Em regra, a exigência de que o ato seja praticado com observância de determinada solenidade tem por escopo assegurar a autenticidade dos negócios, garantir a livre manifestação de vontade, demonstrar a seriedade do ato e facilitar a sua prova.
Ainda de acordo com Carlos Roberto Gonçalves, "a forma especial pode ser única ou múltipla (plural). Forma única é a que, por lei, não pode ser substituída por outra. Exemplos: o artigo 108 do Código Civil, que considera a escritura pública essencial à validade das alienações imobiliárias, não dispondo a lei em contrário; o artigo 1.964, que autoriza a deserdação somente por meio de testamento; os artigos 1.535 e 1.536, que estabelecem formalidades para o casamento, etc...
Forma múltipla ou plural diz-se quando o ato é solene mas a lei permite a formalização do negócio por diversos modos, podendo o interessado optar validamente por um deles. Como exemplos citam-se o reconhecimento voluntário de filho, que pode ser feito de quatro modos, de acordo com o artigo 1.609 do Código Civil; a transação, que pode efetuar-se por termo nos autos ou escritura pública (CC, artigo 842); a instituição de fundação, que pode ocorrer por escritura pública ou por testamento (artigo 62);...".
No caso apresentado, a ata de "criação" da fundação não obedeceu nenhuma das duas formas previstas em lei, o que, por si só, já seria motivo bastante para o indeferimento do registro postulado.
De acordo com a referida ata, pretendia-se transferir para a fundação todo o patrimônio da associação, o que, no nosso entender, esbarraria também na regra contida no artigo 64 da novel legislação civil, que indica que, uma vez "constituída a fundação por negócio jurídico entre vivos, o instituidor é obrigado a transferir-lhe a propriedade, ou outro direito real, sobre os bens dotados...". A pergunta que se fez foi: "o que haveria de ser transferido se o patrimônio já pertencia à própria entidade?".
Lembre-se que a lei exige, para a instituição de uma fundação, a dotação de bens livres, sendo o termo "patrimônio" muito mais abrangente, já que compreende bens, direitos e obrigações.
Caio Mário da Silva Pereira ensina que "a existência de qualquer ônus ou encargo, que pese sobre eles (bens), poria em risco a própria existência do ente, na eventualidade de virem a desaparecer, ou de se desfalcarem sensivelmente, frustrando desta sorte a realização dos objetivos" (em "Instituições de Direito Civil", Volume I, Editora Forense, 1.978, página 306). Evidentemente, sempre haveria o risco de as obrigações superarem sobremaneira os bens livres, já que umas e outros não foram discriminados no instrumento sob análise.
Segundo De Plácido e Silva, "os bens dizem-se livres quando não estão sobrecarregados de qualquer ônus, compromisso ou obrigação. São livres sob qualquer aspecto, não pesando sobre eles qualquer ônus reais ou qualquer direito alheio, que possa restringir a ação de seu titular" ("Vocabulário Jurídico", Editora Forense, 1.993).
Já Edson José Rafael, ex-curador de fundações em São Paulo, em sua obra "Fundações e Direito – 3º Setor", da Editora Melhoramentos, página 93, salienta: "não nos parece possível criar uma fundação quando o patrimônio do instituidor já esteja comprometido com credores que, assim, ficariam sem as garantias necessárias para o recebimento dos respectivos créditos. Se, por má-fé ou engodo do instituidor, for constituída uma fundação, com visível fraude contra credores, podem estes valer-se de ação anulatória, desconstituindo judicialmente aquilo que legalmente não puder ter nascido".
Na nossa ótica, o único caminho a ser trilhado com sucesso para alcançar o registro requerido seria a lavratura de uma escritura pública onde a associação criasse, efetivamente, uma fundação transferindo-lhe seu patrimônio líquido, consignando-se que, por via de conseqüência, aquela seria extinta, passando a fundação, assim, a ser sua sucessora para todos os fins e efeitos de direito.
Finalizando, cabe observar que, em Piracicaba/SP, existe um caso semelhante, já julgado pela Corregedoria Permanente, cuja decisão entendeu pela impossibilidade da transformação de associação em fundação (Processo nº 333/2.005), estando o mesmo em grau de recurso, e onde o ilustre 2º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos relata posicionamento no mesmo sentido manifestado pelo Ministério Público, tanto em Minas Gerais como no Paraná.