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A obrigatoriedade do exame de dependência toxicológica

02/05/2006 às 00:00
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INTRODUÇÃO

            O presente trabalho tem como objetivo tecer algumas considerações acerca da obrigatoriedade de ser determinada, pelo juiz de direito, a realização de exame de dependência toxicológica quando o acusado se declare usuário.

            Inicialmente faremos uma abordagem das questões incidentais, tendo em vista a interferência desta no julgamento da lide.

            Depois, trataremos a questão da importância das provas no processo penal.

            Estabeleceremos, na seqüência, os diversos graus existentes de usuários de substância entorpecente que a Organização Mundial de Saúde reconhece.

            E, por fim, analisaremos a exata interferência que o exame de dependência toxicológica exerce na dinâmica do direito processual penal.


QUESTÕES INCIDENTAIS

            Na terminologia jurídica ou na técnica forense denomina-se de questões incidentais aquelas que aparecem no curso do processo, podendo alterar seu normal procedimento, como, por exemplo, provocando sua suspensão ou interrupção, ou até mesmo seu próprio destino quanto ao mérito.

            No ensinamento de Antônio Scarance Fernandes, "incidente é o que cai em cima de algo em movimento, interrompendo o seu curso normal. O incidente processual seria, por conseguinte, aquilo que se insere no processo, podendo interromper seu movimento, podendo obstaculizar o seu caminhar".[01]

            Cumpre diferenciar a respeito de questão incidental e procedimento incidental.

            Questão incidental é toda aquela controvérsia que sobrevém no curso do processo e que deve ser decidida pelo juiz antes da causa ou questão principal, sendo acessória em relação à questão principal, ou seja, não há ocorrência de julgamento do mérito.

            Procedimento incidental, que também se denomina rito incidental, é o que se forma paralelamente àquele em que se desenvolve a relação processual para a resolução de controvérsias ou questões acessórias.

            Também não devem ser confundidos os conceitos de questão prejudicial e preliminar com questão incidental.

            Questão prejudicial é aquela que surge no curso do processo devendo ser julgada antes da questão principal, sendo, no entanto, estranha à lide penal devendo ser resolvida em juízo diverso do criminal.

            Questão preliminar é a que diz respeito ao direito processual porque possui natureza eminentemente processual; não impede o julgamento de mérito por parte do juízo, todavia, o contamina a ponto de causar nulidade.


IMPORTÂNCIA DAS PROVAS

            O Direito Processual Penal moderno visa a apuração de uma verdade, tanto quanto possível, próxima da real ou substancial, que não significa outra coisa senão a inadmissibilidade, na esfera penal, das ficções e presunções.

            Na persecução dessa "verdade real" a prova deve ser buscada com a devida cautela, a fim de resguardar-se os princípios e normas constitucionais insculpidas em nossa Carta Magna.

            Júlio Fabbrini Mirabete conceitua prova como a demonstração que deve gerar no juiz a convicção de que necessita para seu pronunciamento declarando a existência da responsabilidade criminal, reconhecendo a sua autoria e impondo a respectiva sanção penal.

            A prova visa demonstrar, no processo, a existência ou não de um fato, verdade, ou uma afirmação sobre a solução de um processo.

            Há que se salientar que não existe hierarquia de provas, nem provas especificadas para determinado caso. Tudo que for lícito, idôneo para determinado caso, deve ser admitido. Ademais o Código de Processo Penal acatando o parâmetro de não-taxatividade admite, expressamente, a produção de provas através de qualquer meio (artigo 332 do Código de Processo Penal).

            Tão importante é a prova pericial que o juiz somente poderá se opor a ela se constatada sua inteira desnecessidade à elucidação da verdade.

            Tourinho Filho sobre a prova pericial assim se expressa: "entende-se por perícia o exame procedido por pessoa que tenha determinados conhecimentos técnicos, científicos, artísticos ou práticos acerca dos fatos, circunstâncias ou condições pessoais inerentes ao fato punível, a fim de comprová-los".[02]

            No mesmo sentido a acepção oportuna de Mittermaier a respeito da realização da perícia: "Tem lugar o exame de peritos sempre que se apresentarem na causa principal questões importantes, cuja solução, para poder convencer o juiz exija o exame de homens, que tenham conhecimentos e aptidão técnicos especiais".


CLASSIFICAÇÃO DOS TIPOS DE USUÁRIO

            Inicialmente devemos estabelecer a diferença entre usuário e dependente.

            Consta do site do Instituto de Medicina Social e Criminologia de São Paulo a seguinte classificação recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para as pessoas que utilizam substâncias psico-ativas:

            Não-usuário: nunca utilizou;

            Usuário leve: utilizou drogas, mas no último mês o consumo não foi diário ou semanal;

            Usuário moderado: utilizou drogas semanalmente, mas não diariamente no último mês;

            Usuário pesado: utilizou drogas diariamente no último mês.

            Segundo as considerações de saúde pública, sociais e educacionais da Organização das Nações Unidas (ONU), constantes do site anteriormente mencionado, podemos distinguir quatro tipos de usuários:

            Usuário experimental ou experimentador: limita-se a experimentar uma ou várias drogas, por diversos motivos, como curiosidade, desejo de novas experiências, pressão de grupo etc. Na grande maioria dos casos, o contato com drogas não passa das primeiras experiências.

            Usuário ocasional: utiliza um ou vários produtos, de vez em quando, se o ambiente for favorável e a droga disponível. Não há dependência, nem ruptura das relações afetivas, profissionais e sociais.

            Usuário habitual ou "funcional": faz uso freqüente de drogas. Em suas relações já se observam sinais de ruptura. Mesmo assim, ainda "funciona" socialmente, embora de forma precária e correndo riscos de dependência. É aquele usuário conhecido vulgarmente como "viciado".

            Usuário dependente ou "disfuncional" (dependente, toxicômano, drogadito, farmacodependente, dependente químico): vive pela droga e para a droga, quase que exclusivamente. Como conseqüência, rompe os seus vínculos sociais, o que provoca isolamento e marginalização, acompanhados eventualmente de decadência física e moral.


O EXAME DE DEPENDÊNCIA TOXICOLÓGICA

            A Lei Federal nº 6.368/76 em seu artigo 22, § 5º diz expressamente: "No interrogatório, o juiz indagará do réu sobre eventual dependência, advertindo-o das conseqüências de suas declarações".

            Declarando-se dependente o agente, ou admitindo o uso de substância psico-ativa, é imprescindível a realização de exame pericial para constatação da capacidade plena de entendimento do caráter ilícito do fato e/ou de autodeterminação conforme esse entendimento.

            Se outro for o entendimento esposado teríamos uma indagação despojada de qualquer significado, quiçá apenas para satisfazer uma curiosidade; a advertência não teria qualquer relevância, pois estaria impossibilitada a sua prova.

            Não nos parece ser este o intuito do legislador, mormente porque o réu será advertido das conseqüências de sua afirmação, quais sejam: a submissão a um exame pericial em primeiro plano; em um plano secundário a análise de sua personalidade quando da fixação da pena nos termos do artigo 59 do Código Penal; e, em última análise a conseqüência penal de sua declaração, ou seja, a sua inimputabilidade ou semi-imputabilidade conforme o grau de dependência química constatada ou a imputabilidade caso esta dependência não exista.

            Caso exista ‘déficit’ de compreensão ou de possibilidade de atuar diversamente, por parte do agente, a solução penal adequada à espécie passa a ser outra que não a condenação. Se o agente era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, será absolvido e submetido a tratamento médico conforme se pode depreender da leitura do artigo 29 da Lei de Entorpecentes.

            A identificação do grau de envolvimento com a substância psico-ativa e da medida adequada a ser aplicada ao infrator depende de informação fornecida pelo perito da área.

            Ao aplicarmos o novo rito da Lei Federal nº 10.409/02 vemos que procedimento similar se apresenta, eis que seu artigo 38, § 1º explicita que o acusado poderá, em sua defesa prévia, argüir preliminares, invocar todas as razões de defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas que pretende produzir e assolar testemunhas. (grifos nossos).

            Por evidente que o acusado poderá declara-se dependente em sua defesa, confirmando o uso prolongado e/ou reconhecendo a sua condição de dependente de drogas ilícitas, requerendo a realização do pertinente exame pericial a fim de se apurar a existência de dependência toxicológica, bem assim a capacidade de compreender o caráter ilícito do fato e de se autodeterminar de acordo com tal entendimento.

            Também nesta hipótese a obrigatoriedade na realização do exame de dependência toxicológica nos parece evidente, pois se for invocada como razão de defesa e não for permitida a realização do exame pericial para obtenção da prova, haverá supressão de fase procedimental. Assim o cerceamento do direito de defesa restará configurado, bem como não se terá seguido o princípio do devido processo legal assegurado no artigo 5º, inciso LIV da Lei Magna.

            E se o agente cometer outros crimes que não os atinentes à Lei de Tóxicos? Em nosso entendimento se, em qualquer crime praticado o agente declarar-se dependente de substância que cause dependência física ou psíquica, impõe-se à realização do exame de dependência toxicológica.

            É indisputável que aumentam as possibilidades de prática pelo dependente de drogas de outras infrações penais, quer para garantir a aquisição continuada de substâncias, quer pelas alterações de consciência e capacidade sensorial advindas de seu uso.

            Devemos lembrar que o interrogatório do acusado é não só um meio de prova, mas como salienta Tourinho Filho, é mais propriamente um meio de defesa o qual, por conseguinte, não pode ser cerceado, consignando-se que a realização da perícia impõe o respeito à bilateralidade dos atos processuais.

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            O indeferimento da realização de exame de dependência toxicológica, qualquer que seja a infração penal, representará nulidade insanável, pois haverá evidente cerceamento do direito de defesa em afronta ao princípio da ampla defesa insculpido no artigo 5º LV da Lei Maior.

            Se adotarmos a tese de que cabe ao juiz, apreciando os elementos de prova existentes nos autos, aquilatar da necessidade, ou não, do referido exame, haverá nulidade relativa, que para ser reconhecida deverá o acusado demonstrar o prejuízo.

            A única hipótese em que a nulidade relativa não seria reconhecida ocorreria com a absolvição do acusado, pois caso haja uma condenação, ou mesmo se houver a prolação de uma sentença absolutória imprópria, o prejuízo restaria evidenciado.

            Com esta solução apenas estaríamos imprimindo uma maior demora na prestação jurisdicional em afronta ao princípio da celeridade processual inserido no artigo LXXVIII da Carta Política, com prejuízo não só para as partes, mas também para com toda a sociedade.


CONCLUSÃO

            Como pudemos observar, na hipótese do acusado durante seu interrogatório declarar-se dependente de substância psico-ativa, outra solução não resta ao magistrado senão a obrigatoriedade em determinar a instauração do competente exame pericial para constatar a veracidade da afirmação.

            Caso não seja realizado o exame pericial haverá prejuízo irreparável à defesa do acusado estando evidenciada a nulidade absoluta do processo pelo descumprimento do comando constitucional inserto em seu artigo 5º, inciso LV.


BIBLIOGRAFIA

            BECKER, Rodrigo Frantz. Ação Declaratória Incidental e Questão Judicial. Jus Navegandi, Teresina, a. 6, n. 55, mar. 2002. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/2729 .

            CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 2002.

            Dependência Química. Consultor Jurídico. 17 mar. 2003. Disponível em:

            DUARTE, Antônio Pereira. A Perícia Criminal como Elemento Instrutório no Processo Penal. Revista do Ministério Público Militar. Disponível em: .

            MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 2ª Edição, São Paulo, Editora Millenium, 2000, v.1.

            GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 6ª Edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1996.

            Infodrogas – Definindo Conceitos. Disponível em: .

            LEITE, Gisele. Sobre a Prova no Processo Penal Brasileiro. Jus Vigilantibus, Vitória, 17 out. 2003. Disponível em: .

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            MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de Processo Penal. Editora Atlas, vol. 2.

            REIS, Alexandre Cebrian Araújo e GONÇALVES, Vitor Eduardo Rios. Sinopses Jurídicas. Processo Penal – Parte Geral. 9ª Edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2005, vol. 14.

            FERNANDES, Antônio Scarance. Incidente Processual: Questão Incidental e Procedimento Incidental. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991.

            FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini. As Nulidades do Processo Penal. 7ª edição, São Paulo, Revista dos Tribunais.

            TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 20ª Edição, São Paulo, Editora Saraiva, 1998, v.1 e v.3.


NOTAS

            01 Incidente processual: questão incidental e procedimento incidental. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991, p. 29.

            02 Processo Penal de Fernando da Costa Tourinho Filho, volume3, 18ª ed., p. 224.

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Sobre o autor
Valmir Bigal

pós-graduando em Direito Processual Penal pela Escola Paulista de Magistratura, em São Paulo (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIGAL, Valmir. A obrigatoriedade do exame de dependência toxicológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1035, 2 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8312. Acesso em: 24 nov. 2024.

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