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Notas sobre a alienação do trabalho intelectual e o novo dilema de Promoteu

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01/05/2006 às 00:00
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1. PROMETEU E A ALIENAÇÃO DO TRABALHO

Conta a mitologia grega, retratada na obra Teogonia, de Hesíodo, que Prometeu roubou o fogo de Zeus para dá-lo aos mortais. Este fato atraiu a ira do Deus Supremo do Olimpo, que condena Prometeu à tortura de ter seu fígado permanentemente devorado por uma águia, além de ser submetido a exercer eternamente o trabalho fatigante. Aos mortais, Zeus estende a condenação eterna ao trabalho. Nenhum homem poderá furtar-se do trabalho. Segundo Hesíodo, o homem na idade do ferro está movido pelo instinto da luta (eris). É através do trabalho, que a luta pela sobrevivência torna-se emulsão fecunda e feliz; ao contrário, manifesta-se por meio de violência, acaba sendo a perdição do próprio homem. Contudo, o trabalho tem uma dimensão muito maior do que o papel moralista apresentado por Hesíodo. O trabalho é uma manifestação criativa e criadora.

Para MARX, e também para ENGELS, "o primeiro pressuposto de toda história é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos" (MARX; ENGELS, 1986:27). Mas o primeiro ato histórico destes indivíduos, pelo qual se distinguem dos animais, não é o ato de pensar, mas o de produzir seus meios de vida. Segundo MARX, o animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. "É ela". Por outro lado, o homem faz da sua atividade vital mesma um objeto do seu querer e da sua consciência. Tem, portanto, "atividade real consciente". "A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal" (MARX, 1989a:156). É precisamente por isso que o homem é um ser genérico, não só na medida em que teórica e praticamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto das demais coisas, o seu objeto, mas também porque se relaciona consigo mesmo como um ser universal e por isto livre. Só por isto, a sua atividade, o seu trabalho, é atividade livre. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, imediatamente, sua própria vida material.

"No engendrar prático de um mundo objetivo, no trabalhar a natureza inorgânica o homem se prova como um ser genérico consciente, isto é, um ser que se relaciona com o gênero como a sua essência própria ou //se relaciona// consigo como ser genérico. Claro que o animal também produz. Constrói um ninho, moradas para si, tal como a abelha, castor, formiga, etc. Só que produz apenas o de que precisa imediatamente para si ou seu filhote; produz unilateralmente, ao passo que o homem produz universalmente; produz apenas sob domínio da necessidade física imediata, ao passa que o homem produz mesmo livre da necessidade física e só produz verdadeiramente sendo livre da mesma; só produz a si mesmo, ao passo que o homem reproduz a natureza inteira; o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, ao passo que o homem se defronta livre com o seu produto. O animal forma só segundo a medida da necessidade //Bedürfnis// da species a qual pertence, ao passo que o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer species e sabe em toda a parte aplicar a medida inerente ao objeto; por isso o homem também forma segundo as leis da beleza." (MARX, 1989a:156-7, grifos nossos)

O modo de produção pelo qual os homens produzem os meios necessários para sua subsistência, e conseqüentemente a sua própria reprodução, depende, antes de tudo, da natureza. O trabalhador nada pode criar sem a natureza. A natureza é o mundo exterior sensorial. "Ela é o material no qual o seu trabalho se realiza efetivamente, no qual é ativo, a partir do qual e mediante o qual produz" (MARX, 1989a:151).

"Mas assim como a natureza oferece o[s] meio[s] de vida do trabalho no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos quais se exerça, assim também oferece por outro lado o[s] meio[s] de vida no sentido mais estrito, a saber, o[s] meios [s] de subsistência física do trabalhador mesmo." (MARX, 1989a:151)

Todavia, quanto mais o trabalhador se apropria do mundo exterior através do seu trabalho, deste universo concebido por MARX como "natureza sensorial", tanto mais ele se priva de meio[s] de vida segundo um duplo aspecto, primeiro, "que cada vez mais o mundo exterior sensorial cessa de ser um objeto pertencente ao seu trabalho", um meio de vida do seu trabalho; o segundo aspecto consiste no fato de que cada vez cessa de ser meio de vida no sentido imediato, "meio para a subsistência física do trabalhador".

"(...) Não se deve considerar tal modo de produção de um único ponto de vista, a saber: a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, muito mais, de uma determinada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos. Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção." (MARX; ENGELS, 1986:27-8)

Mas como foi dito anteriormente, o homem é dotado de consciência. Contudo, não se trata de consciência pura. Segundo MARX e ENGELS, desde o início "pesa sobre o espírito a maldição de estar contaminado pela matéria"; matéria que se apresenta de diversas formas, como camadas de ar em movimento de sons, em suma, "de linguagem".

"(...) A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem e a consciência real, prática, que existe para os outros homens e, portanto, existe também para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade de intercâmbio com outros homens. (...)" (MARX; ENGELS, 1986:43)

A linguagem, portanto, é uma forma de se relacionar com o ambiente, e a relação do homem com o seu ambiente é a sua consciência.

"(...) A consciência, portanto, é desde o início um produto social, e continuará sendo enquanto existirem homens. (...)" (MARX; ENGELS, 1983:43)

Os homens desenvolvem a sua consciência no interior do desenvolvimento histórico real. No exercício prático de reprodução da vida real. Logo, "não é consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência". Para melhor elucidar o processo histórico, MARX inverte a dialética de HEGEL:

"Meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, – que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de idéia, – é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que material transportado para a cabeça do ser humano e por ela interpretado." (MARX, 1980:16)

A história nada mais é do que a sucessão de diferentes gerações, onde cada uma explora as condições materiais de produção geradas pelas gerações anteriores. Com a divisão social do trabalho, iniciada na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em diversas famílias opostas às outras, altera-se a relação do homem com os outros homens, do homem com a natureza, e do homem consigo próprio. Com a divisão social do trabalho, estabelece-se a distribuição desigual dos meios de produção. Dos meios de produção e reprodução da própria vida humana.

"O desenvolvimento de todos os ramos da produção – criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos – tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção. Ao mesmo tempo, aumentou a soma de trabalhos diários correspondentes a cada membro das gens, da comunidade doméstica ou da família isolada. Passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra, os prisioneiros foram transformados em escravos. Dadas as condições históricas gerais de então, a primeira grande divisão social do trabalho, ao aumentar a produtividade deste, e por conseguinte a riqueza, e ao estender o campo da atividade produtora, tinha que trazer consigo – necessariamente – a escravidão. Da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados." (ENGELS, 1985a:128)

Além disso, a divisão social do trabalho foi acompanhada da propriedade privada. Na realidade, divisão do trabalho e da propriedade, "são expressões idênticas":

"(...) a primeira enuncia em relação à atividade, aquilo que se enuncia na segunda em relação ao produto da atividade." (MARX; ENGELS, 1986:46)

A divisão social do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que surge, a divisão entre o trabalho material e o espiritual:

"(...) A partir deste momento, a consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da praxis existente, sem representar algo real; desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc., "puras". (...)" (MARX; ENGELS, 1986:45)

A produção da idéias, das imagens e representações da consciência humana estão desde o início entrelaçadas com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens. São expressões da vida real. São representações da linguagem da vida real. A linguagem da política, das leis, da religião, da moral, o representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, "aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material".

"(...) Os homens são os produtores de suas representações, de suas idéias etc., mas os homens reais, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formulações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens, é o seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico." (MARX; ENGELS, 1986:37)

Chegamos, pois, à ideologia que, em análise preliminar, constitui-se nas falsas representações que os homens fazem da vida real e, portanto, de si mesmos. Contudo, antes de ingressarmos no debate em torno da ideologia, devemos relacionar outro ponto importante neste processo, a "alienação".

Segundo MARX, é precisamente ao trabalhar no mundo objetivo, no "ambiente" que o cerca, que o homem se prova de maneira efetiva como um ser genérico. A sua vida genérica é produto de sua obra ativa, da sua ação enquanto produtor. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, é a sua duplicação no produto de seu trabalho:

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"(...) ao se duplicar não só intelectualmente tal como na consciência, mas operativa, efetivamente e, portanto, ao se intuir a si mesmo num mundo criado por ele. (...)" (MARX, 1989a:157)

A alienação é um movimento que deve ser entendido a partir desta atividade criadora do homem, nas condições em que ela se realiza. "Deve ser entendido, sobretudo, a partir daquela atividade que distingue o homem de todos os outros animais, isto é, daquela atividade através da qual o homem produz os seus meios de vida e cria a si mesmo: o trabalho humano" (KONDER, 1967:25-6).

A alienação é um produto da objetivação do trabalho. Com a materialização no trabalho no mundo sensível, com a sua transformação em coisa, o produto do trabalho humano se transforma em algo alheio, independente do próprio homem. O homem perde o domínio da sua ação criadora. O produto do trabalho humano objetivado defronta o próprio homem de forma opressiva. Mas não é somente isto. Com o progressivo avanço da divisão social do trabalho processou uma atomização da espécie. Criou-se uma cisão entre o indivíduo como tal e o seu ser genérico, e esta cisão começou a ser manifestar com a diferenciação entre trabalho intelectual e material, entre a vida pública e privada do ser humano.

"(...) O poder social, isto é, a força produtiva multiplicada que nasce da cooperação de vários indivíduos exigida pela divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos, porque sua cooperação não é voluntária, mas natural, não como ser próprio poder unificado, mas como uma força estranha situada fora deles, cuja origem e cujo destino ignoram, que não podem mais dominar e que, pelo contrário, percorre agora uma série particular de fases e de estágios de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que, na verdade, dirige este querer e agir." (MARX; ENGELS, 1986:49-50)

Por fim, com o desenvolvimento do capitalismo, e fundamentalmente do capitalismo industrial, o homem definitivamente separa-se dos instrumentos de reprodução dos seus meios de vida. O produto do trabalho humano objetivado assume a forma genérica e abstrata da mercadoria. Para o trabalhador, o produto do seu trabalho acaba perdendo o significado. Surge uma classe cujo o meio de sobreviver no mundo capitalista é a vender no "mercado" a sua própria força de trabalho, na medida em que se encontra "alienada" dos meios de produção: o proletariado. O produto da ação produtiva do proletariado não mais lhe pertence, pelo contrário, massifica-se na constituição de uma coletividade de mercadorias que se opõe ao próprio trabalho proletário: o capital.

"O trabalhador se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em produção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz só mercadorias; produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral" (MARX, 1989a:148)

Assim como Prometeu, o proletariado foi condenado ao fatigante trabalho eterno. Também foi condenado a ter suas vísceras devoradas por uma ave de rapina, a burguesia. Mas como Prometeu, a condição para a sua libertação é a libertação de toda a humanidade, é a libertação do trabalho.

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Sobre o autor
Sandro Ari Andrade de Miranda

Advogado no Rio Grande do Sul, Doutorando em Sociologia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Sandro Ari Andrade. Notas sobre a alienação do trabalho intelectual e o novo dilema de Promoteu. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1034, 1 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8332. Acesso em: 26 abr. 2024.

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