Capa da publicação Transplante de órgãos: evolução normativa e o crime de tráfico
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Transplante de órgãos no Brasil.

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02/07/2020 às 11:00
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5 TRÁFICO DE ÓRGÃOS: um crime abominável

O tráfico significa “modo amplo à circulação de mercadorias em geral, e de modo mais estrito, o comércio ilícito, seja de entorpecentes, plantas, animais ou mesmo de humanos”[21]

O que se faz necessário compreender é que o convívio em sociedade trouxe a necessidade do surgimento das leis para regular as relações. Mas esse fato não impede que pessoas tentem se beneficiar, mesmo infringindo as regras de conduta impostas.

E assim, a criminalidade cresce através dos traficantes de órgãos, fazendo com que o Tráfico de Órgãos se torne, hoje, o terceiro crime mais rentável no mundo, perdendo somente para o tráfico de drogas e de armas, segundo a Polícia Federal, afetando mais de 20 milhões de pessoas e movimentando de US$ 7 milhões a US$ 12 milhões  a cada ano.

Mais grave ainda, segundo publicação portuguesa “o tráfico de seres humanos, muitas vezes para recolha de órgãos para transplantação, é a segunda prática criminosa mais lucrativa, a seguir ao tráfico de armas, segundo a ONU.” Os dados foram apresentados, em maio de 2018, no seminário "Tráfico de órgãos humanos" que decorreu na Assembleia da República Portuguesa e reuniu especialistas da área da saúde e da justiça.[22]

Neste Seminário, observou-se que segundo a Organização Mundial de Saúde, a Índia, Paquistão e China são os países onde há mais turismo de transplante, locais onde pessoas desesperadas não se importam de mutilar o seu corpo e vender um órgão por retorno em dinheiro.

Tráfico de órgãos é o mercado ilícito de órgãos humanos, onde o crime ocorre de forma organizada com o intuito de obter lucro, violando as leis vigentes.

Paulo Airton Pavesi em seu Blog: “A verdade. Nada mais que a verdade.” mostra a dimensão do tráfico de órgãos:

O tráfico de órgãos não só aquele que estamos acostumados a pensar que existe, como por exemplo, o paciente que é levado à morte em um hospital público para que os órgãos sejam vendidos, ou ainda uma criança raptada para tais fins. Se um paciente está em primeiro lugar na fila, não há motivos para que se prolongue a espera por meses. Significa que alguém pagou para obter um órgão prejudicando aquele que tem direito. Isto também é tráfico de órgãos.[23]

Essa prática tão reprovável acontece ao nosso redor, sem nos darmos conta. Basta dizer que pessoas somem misteriosamente todos os dias, e muitas delas, nunca mais voltam. Geralmente, pessoas que vivem à margem da sociedade, como moradores de rua, que somem e ninguém reclama por eles.

Mas também, os traficantes podem agir de uma forma inimaginável, que é justamente dentro dos hospitais.

Atualmente, tem-se um cadastro nacional com os nomes dos pacientes receptores que seguem uma ordem, e é justamente aí que os traficantes atuam ardilosamente. Eles possuem uma lista paralela, que beneficia aqueles que tem poder aquisitivo, e que pagam o que for para receberem o órgão que precisam.

A legislação vigente é omissa em muitos casos. A efetiva aplicação da Lei é insuficiente e até inexiste em determinadas situações.

A Lei de Transplantes que rege essa matéria é imensamente desrespeitada e até substituída pela aplicação do Código Penal Brasileiro quando convém a determinadas pessoas como, por exemplo, um médico que faz a retirada dos órgãos com o paciente ainda vivo.

Essas situações precisam ser revistas para que a Constituição Federal seja efetivamente cumprida com igualdade para todos.

5.1 TRÁFICO DE ÓRGÃOS NO BRASIL

O artigo 1º da Lei de Transplantes, Lei 9.434 de 04 de fevereiro de 1997 dispõe sobre a gratuidade da doação de órgãos:

Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei.[24]

Porém, no Brasil, o comércio de órgãos iniciou-se no final da ditadura militar, na década de 70. Pessoas de baixa classe social e de visão política em desacordo com a ditadura eram vítimas do tráfico de órgãos, tecidos e cadáveres. [25]

Mesmo sendo considerado o país que mais realiza transplante gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mais de 90% dos procedimentos, as dificuldades que o sistema enfrenta também são visíveis.

Além da escassez de órgãos, ocorrem problemas com relação à estrutura hospitalar, aos profissionais envolvidos nas etapas do transplante e à logística para transporte dos órgãos, fazendo com que as etapas fiquem bastante comprometidas.

Os erros nos exames de diagnósticos para determinar a morte encefálica, fizeram com que o Conselho Federal de Medicina (CFM) normatizasse a Resolução 1.480/97, que estabeleceu que todos os profissionais, e em especial os médicos, devem estar familiarizados com o diagnóstico do paciente para não ocorrer falhas nos procedimentos. [26]

Toda essa situação chama muita a atenção de criminosos que vêem a possibilidade de obter vantagem, fazendo com que o tráfico de órgãos seja considerado o crime do século XXI.

O caso considerado zero no Brasil foi o Caso Pavesi, no qual uma criança de 10 anos teve os órgãos traficados após uma sucessão de erros de diagnóstico.

5.2 COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO DO TRÁFICO DE ÓRGÃOS NO BRASIL

Em 2004, a Câmara dos Deputados realizou uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), tendo como presidente o ex-deputado Neucimar Fraga, e como relator o então deputado Federal Pastor Pedro Ribeiro, para investigar o tráfico de órgãos no Brasil, após várias denúncias sobre este crime.

Tal evento pôde comprovar a existência de organizações criminosas que atuam no tráfico de órgãos no Brasil.

Observou-se que, por vezes, homicídios ou desaparecimentos de crianças e jovens estavam interligados ao tráfico de órgãos.

Outro ponto constatado foi a situação de extrema pobreza de pessoas que “vendiam” seus órgãos. Muitos relataram que, ao ver os filhos passando necessidade, enxergaram nesta prática a possibilidade de conseguirem dinheiro para prover a família.

E com todo este cenário, o aliciamento era muito bem organizado pela máfia.

Porém o artigo 15 da Lei 9434/97 versa sobre a punição de tal ato:

Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano:

Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação. [27]

Assim, comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano é crime no Brasil, segundo a Lei de Transplantes, com pena de três a oito anos de prisão e multa, sendo também punido quem faz a intermediação da venda.

Apesar de ser crime vender os próprios órgãos, muitas vezes o doador/vendedor é uma vítima, pois o seu consentimento não o retira desta condição, por ser este, aliciado pelos traficantes de órgãos.

A CPI do Tráfico de Órgãos instaurada tomou conhecimento de vários casos, mas investigou profundamente três de grande repercussão no Brasil.

O primeiro foi de aliciamento e tráfico de seres humanos, pessoas de baixa renda recrutadas para vender um rim. Caso ocorrido em Pernambuco, quando uma quadrilha de tráfico de órgãos que negociava compra e venda de rins, foi desarticulada pela Polícia Federal.

As pessoas eram aliciadas no Brasil para a venda de um dos rins em Durban, na África do Sul, para receptores de Israel, pois segundo apurou a Polícia Federal de Pernambuco, os israelenses por motivos religiosos, eram impedidos de realizar a cirurgia em seu país, caso conhecido como “Operação Bisturi”.

Gedalya Tauber, também conhecido como Gaudy, natural da Polônia, ex-major do Exército israelense encabeçava a quadrilha, e entrava em contato com pessoas da periferia de Recife oferecendo dinheiro pela cirurgia que ocorreria na África do Sul, com todas as despesas pagas, para a retirada de um dos rins.

Os potenciais doadores eram encaminhados para realizar exames pré-operatórios ainda em Recife, e se os resultados fossem positivos, rapidamente eram providenciados passaportes e passagens pelo grupo de Gedalya Tauber.

Ao chegarem a Durban, os exames eram refeitos e a cirurgia se realizava. Quando retornavam ao Brasil, ou ainda na África, as pessoas recebiam o dinheiro. E esses aliciados se tornavam captadores de novos potenciais doadores, recebendo quantias em dinheiro para isso.

Em 24 meses, a quadrilha de Gedalya promoveu 38 transplantes de doadores brasileiros no hospital de Durban.

O ex-deputado Neucimar Fraga, presidente da CPI à época, relatou como atuava essa quadrilha:

"Em Pernambuco, a CPI, em 2004, descobriu uma máfia que eles vieram para o Brasil, era formada por dois israelenses, um espanhol, um americano e sete brasileiros, entre eles médicos e militares da polícia de Pernambuco, com envolvimento de agências de viagem. Eles induziam os moradores, principalmente da periferia do Recife, a vender um dos seus rins. Essas pessoas eram levadas para a cidade de Durban, na África do Sul, e chegavam a receber até 30 mil dólares por um rim. E, ao chegar ao Brasil, como o dólar na época estava numa cotação alta como está agora, chegava na periferia com 100 mil reais, 120 mil reais, reformava casa, comprava um carro, e isso aguçava a curiosidade das outras pessoas. O que você fez? Ganhou na loteria? Não. Vendi um dos meus rins. Como? Tenho dois. Posso vender um."[28]

De acordo com o relatório da CPI, todos que participaram diretamente do esquema foram réus em ação penal pelo crime do Art. 288 do Código Penal (formação de quadrilha) e o crime do Art. 15 e 16 da Lei nº 9434/97, Lei dos Transplantes. Os vendedores de rins foram denunciados apenas pelo crime do Art. 15 da Lei de Transplantes, mesmo os que não puderam realizar o transplante por condições clínicas ou que desistiram da venda em si, uma vez que a negociação já consuma o tipo delituoso pelo qual foram processados, independente da retirada ou não do órgão.

Ainda de acordo com o relatório da CPI, o relator Deputado Pastor Pedro Ribeiro reconhece:

Apesar de a ação da Polícia Federal ter resultado na prisão da quadrilha, e denúncia de mais de 30 pessoas que venderam seus rins, calcula-se que o número possa ser maior, uma vez que se soube que a ação dos criminosos já ocorria há pelo menos 1 ano. Segundo informações dadas pelo Superintendente da Polícia Federal em Pernambuco, Wilson Salles Damázio, a antropóloga Nancy Scheper-Hughes, especialista na análise do tráfico de órgãos, elogiou muito o Brasil na ação efetiva de combate à quadrilha e noticiou que essa quadrilha realizou cerca de 300 operações, tendo como base a Turquia, África do Sul e Israel, já sendo conhecida há 3 anos.[29]

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O segundo caso foi de quatro pacientes em que a documentação médica mostrava estarem vivos, mas, ainda assim, eram submetidos a nefrectomia bilateral, ou seja, eram retirados os dois rins, e quando eles reagiam na mesa de cirurgia, segundo depoimentos de enfermeiros, o médico efetuava manobras com o intuito de causar o óbito do paciente. Em uma dessas manobras, conforme relata uma enfermeira à CPI, um paciente se debatia violentamente, e com o bisturi, o médico perfurou o coração e assim ocorreu a morte do paciente. Caso ocorrido em Taubaté, São Paulo, cometido por quatro médicos.

O trecho do depoimento ouvido na CPI revela tal fato:

"No caso de Taubaté, teve a enfermeira, que era chefe da enfermagem do hospital, ela testemunhou na CPI e teve casos onde o paciente que foi diagnosticado com morte cerebral, ao ter os órgãos retirados, ele reagiu com estímulos e a enfermeira disse: 'Doutor, mas esse paciente não está morto'. E ela disse na CPI que o médico pegou o bisturi, foi em cima do coração, perfurou o coração e disse: 'Ele está morto, sim. Pronto! Acabou a cena.” [30]

A depoente declarou que não fez essa denúncia à época dos fatos, por temer represálias e também por medo de perder o emprego.

Perícias realizadas pelo Conselho Regional de Medicina (CRM) do Estado de São Paulo constataram que os pacientes que passaram pela cirurgia para a retirada dos rins, apresentavam sinais de atividade cerebral, e exames de arteriografia mostravam fluxo sanguíneo, o que é incompatível com o diagnóstico de morte encefálica.

Tais fatos ocorreram em 1986, ficando conhecido nacionalmente como Caso Kalume, por ser este o sobrenome do denunciante da tragédia, que era o então diretor da Faculdade de Medicina de Taubaté (Unitau), Roosevelt Kalume, que procurou o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) para informar a existência de um programa ilegal de retirada de rins de cadáveres para doação e transplantes, que ocorria sem o seu conhecimento e autorização, por uma equipe médica da Faculdade de Medicina de Taubaté que usava o extinto Hospital Santa Isabel de Clínicas (Hosic) para tais atos.

O caso de Taubaté passou a ter uma conotação mais relevante porque, a partir dele, o Código de Ética Médica foi reformado e se introduziu o conceito de morte cerebral e os princípios de retirada de órgãos, e também ajudou na discussão a respeito da elaboração da atual lei que regulamenta os transplantes de órgãos no país, a Lei 9.434, de 04 de Fevereiro de 1997.

Os médicos foram absolvidos das acusações de tráfico de órgãos e eutanásia nos procedimentos administrativos e éticos do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) em 1988, e do Conselho Federal de Medicina (CFM), em 1993, pois, segundo os conselhos, são critérios julgados em instâncias diferentes, sendo uma penal e a outra ético-profissional, sendo então, permitido o exercício da medicina.

A demora para o julgamento ocorreu porque a investigação policial levou mais de dez anos para ser concluída, pelo fato de os réus estarem em liberdade, e também das defesas interporem vários recursos na tentativa de anular o processo, que foram negados, segundo o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Os médicos acusados de matar quatro pacientes no hospital de Taubaté, no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, em 1986, foram condenados a 17 anos e 6 meses de prisão no dia vinte de outubro de 2011, no Fórum Central da cidade de São Paulo.

O juiz, porém, permitiu que recorressem da sentença em liberdade, por entender que havia os pressupostos para tanto.

O terceiro caso é o Pavesi, que deu origem à CPI. Denominado Caso Zero, trouxe à tona denúncias de irregularidades no esquema de transplantes de órgãos em Poços de Caldas/MG.

O pai da vítima, uma criança de 10 anos à época, procurou os deputados para denunciar o homicídio do filho.

No dia 19 de abril de 2000, em Poços de Caldas/MG, Paulinho brincava com amigos na área de lazer que ficava no topo do prédio onde morava, a uma altura de 10 metros, quando se apoiou na grade de proteção que rodeava a área e escorregou, não sendo possível evitar a queda no teto da cabine onde ficavam os porteiros do edifício.

Com o acidente, ele sofreu impacto na cabeça, ferimentos no nariz e inchaço nos olhos, permanecendo consciente após o fato, mas precisou realizar cirurgia por ter coágulos no cérebro.

E então veio o diagnóstico de morte encefálica e a doação dos órgãos foi autorizada pelo pai, Paulo Airton Pavesi, que só desconfiou que algo errado poderia ter ocorrido, quando, ao ir no setor financeiro do hospital pagar a conta, descobriu que procedimentos e materiais referentes à doação foram cobrados indevidamente, fato que não ocorre quando a pessoa é doadora de órgãos, pois não cabe à família arcar com os custos do procedimento.

Mediante a recusa do hospital em retirar esses gastos da fatura, e após muita insistência do pai do menino, decidiu-se pela redução do valor, mas a cobrança indevida continuou.

Por denúncia do pai do menor, uma sindicância foi realizada no hospital e revelou várias irregularidades, inclusive no que diz respeito às doações e ao prontuário que estava incompleto, sendo diversas vezes alterado durante as investigações, e exames de Paulinho, que, simplesmente desapareceram, como a arteriografia que provaria que ele não teria mais função cerebral e realmente estaria morto.

No Brasil muitos casos já foram investigados, um dos crimes mais divulgados foi o caso do menino Paulo Veronesi Pavesi, o Paulinho, na época com 10 anos. Os médicos comunicaram os pais da morte encefálica e a família consentiu a doação dos órgãos, depois de um ano através de uma investigação para apurar valores cobrados indevidamente pelo hospital, o pai do menino foi comunicado que seu filho foi assassinado pelos médicos e que desde o momento que deu entrada para o tratamento, o menino foi visto como um doador. Esse caso é mais um entre muitos da tragédia silenciosa que acontece diariamente no Brasil e no mundo. Os médicos envolvidos no caso de Paulinho não estão presos. Os mesmos foram condenados pela justiça, mas absolvidos pelo Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, onde o caso ficou conhecido como o caso de “Poços de Caldas”. [31]

Foi comprovado que os órgãos foram repassados a uma lista de transplante paralela, e não a oficial, ficando óbvio tratar-se de tráfico, como no caso das córneas, que foram retiradas e encaminhadas para Campinas em São Paulo, quando, por se tratar de um procedimento regionalizado, deveriam ter sido transplantadas em pacientes da lista de espera de Minas Gerais.

Conforme o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), uma parte dos médicos envolvidos responde pelo crime de remoção ilegal de órgãos e tecidos e a outra parte foi acusada de homicídio e responde a uma ação penal de competência do júri. Um médico chegou a ser condenado pela retirada das córneas em outro processo, mas teve a prescrição punitiva reconhecida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o que equivaleu à sua absolvição. [32]

Vários adiamentos de decisões ocorreram durante o processo, o que fica bastante claro no trecho da reportagem veiculada pelo g1.globo.com, no ano de 2016:

No processo que tramitava em Poços de Caldas (MG), foi determinado que os médicos fossem submetidos a júri popular em outubro de 2011. Houve recurso contra a sentença de pronúncia, mas os desembargadores do Tribunal de Justiça, em outubro de 2012, decidiram manter o júri.O julgamento deveria ter acontecido em julho de 2014 e a sessão chegou a ser iniciada em Poços de Caldas, mas, a pedido do Ministério Público, foi transferido para a capital mineira em razão de propagandas feitas pelo Conselho Regional de Medicina (CRM) e Associação dos Médicos na cidade, em favor dos profissionais.

Uma liminar concedida pela Justiça suspendeu pela terceira vez o júri popular do "Caso Pavesi", que seria realizado em março de 2015 em Belo Horizonte (MG).

A decisão aconteceu após um pedido de habeas corpus feito pelo advogado de um dos médicos, o nefrologista Álvaro Ianhez, alegando que o depoimento do pai do menino, Paulo Airton Pavesi, que atualmente vive na Inglaterra, seria ilegal, já que estava previsto para acontecer em videoconferência, via internet.[33]

Em 2017, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) anulou a sentença de 1ª instância que condenava os três médicos por envolvimento na retirada ilegal dos órgãos de Paulinho, por dois votos a um. Dois desembargadores entenderam que o processo deveria novamente ser analisado para que os acusados respondessem, especificamente pelo crime de homicídio doloso, ou seja, quando há intenção de matar, e um desembargador votou contra essa decisão.

Sendo assim, com a anulação desta sentença, o processo retornou a Poços de Caldas/MG, para novo julgamento em 1ª instância.[34]

Hugo Leandro Silva, em seu artigo “Tráfico de órgãos no Brasil: uma análise da Lei 9.434/97 a partir do princípio da dignidade da pessoa humana”, mostra como este crime silencioso não tem as punições necessárias quanto aos praticantes dessa barbárie:

No Brasil muitos casos já foram investigados, um dos crimes mais divulgados foi o caso do menino Paulo Veronesi Pavesi, o Paulinho, na época com 10 anos. Os médicos comunicaram os pais da morte encefálica e a família consentiu a doação dos órgãos, depois de um ano através de uma investigação para apurar valores cobrados indevidamente pelo hospital, o pai do menino foi comunicado que seu filho foi assassinado pelos médicos e que desde o momento que deu entrada para o tratamento, o menino foi visto como um doador. Esse caso é mais um entre muitos da tragédia silenciosa que acontece diariamente no Brasil e no mundo. Os médicos envolvidos no caso de Paulinho não estão presos. Os mesmos foram condenados pela justiça, mas absolvidos pelo Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, onde o caso ficou conhecido como o caso de “Poços de Caldas”. [35]

Após a denúncia feita, Paulo Airton Pavesi foi ameaçado pela máfia do tráfico de órgãos e se viu obrigado a pedir asilo na Itália, que foi concedido após ser ouvido naquele país e, assim, adquiriu a cidadania italiana.

Ele acredita que o crime de tráfico de órgãos ainda ocorra, mas que os casos não são denunciados, e diz:

"Ninguém pode discutir transplante. Você só pode falar bem. Se você for questionar alguma coisa, você é tachado de maluco. Se você publicar hoje no jornal que existe tráfico de órgão, no dia seguinte você vai receber um monte de ameaça, um monte de pressão para que você volte atrás." [36]

Depois disso, outros sete casos semelhantes foram descobertos e investigados, levando à condenação, em primeira instância, de alguns médicos que, em sede de recurso acabaram também soltos.

Palavras de Paulo Pavesi sobre a ação dos médicos investigados:

"Existe uma lei, existem protocolos, eles simplesmente ignoram os protocolos, protocolo de diagnóstico de morte encefálica nunca é cumprido. Eles pegam uma pessoa em coma, eles pegam a pessoa como morta, quando, na verdade, tem um protocolo para verificar a morte. Isso foi comprovado mais de oito vezes só nesse grupo, só nesse caso. Os exames de morte encefálica desapareceram todos, de todos os casos. Eles não fazem os exames como devem ser feitos. Aí que está o homicídio, ele pega uma pessoa em coma e transforma em doador. É mais rentável.” [37]

E se o comércio de órgãos fosse legalizado? Esse questionamento causa espanto na maioria das pessoas. Mas o corpo não seria um bem pessoal sobre o qual cada um tem o poder de dispor como quiser?  Essa indagação traz à baila, posições a favor e contra.

Há uma corrente que defenda a legalização, justamente, para que o cometimento do crime deixe de ocorrer.

Posição esta, defendida por Paulo Airton Pavesi, que inclusive fez uma petição sobre a Legalização da Venda de Órgãos Humanos.

Para Joel Pinheiro, filósofo e estudioso de bioética, a proibição da venda dos órgãos reduz as chances do paciente de conseguir o transplante, ao mesmo tempo em que tira do vendedor uma possibilidade de aliviar a pobreza. [38]

A Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002 que institui o Código Civil, diz em seu artigo 14 caput e parágrafo único:

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.[39]

Entende-se que a pessoa pode dispor gratuitamente de seu corpo para fins científicos após a morte, ou seja, pode doá-lo para universidades ou laboratórios científicos, ou para fim altruístico, que é quando se faz o bem para outrem, no caso, a doação de órgãos. E ainda pode, conforme o parágrafo único, da referida lei, revogar este ato de disposição a qualquer tempo, ou seja, se a pessoa decidir não mais dispor de seu corpo, ela tem amparo legal para tanto.

Já Roberto Sales, coordenador da Frente Parlamentar de Incentivo à Captação e à Doação de Órgãos, tem posição contrária à proposta de legalização do comércio de órgãos, mas estuda a proposição de projetos de lei para beneficiar doadores e suas famílias. Segundo ele, o doador poderia receber, ao longo da vida, um benefício de um salário mínimo, por exemplo, para realizar exames, comprar medicamentos e outros acompanhamentos relacionados à cirurgia. [40]

5.3 TRÁFICO DE ÓRGÃOS NO MUNDO

Ao redor do mundo, o tráfico de órgãos acontece de forma efetiva. E existem modalidades para que tal crime ocorra.

Veridiana Domingos e Carolina Ferraz, no site O Gusmão, em seu artigo “O déficit de órgãos no mundo e o bom exemplo do Irã”, mostram muito bem esse mercado macabro, começando com a definição de turismo de transplante. Esta é a modalidade na qual as pessoas são levadas para outros países para venderem ou comprarem órgãos:

O turismo de transplante é a modalidade que mais cresceu nos últimos anos e se desenrola no mercado negro. Ele diz respeito à compra de um transplante de órgãos no exterior que inclui o acesso a um órgão, ignorando leis, regras e processos de algum ou de todos os países envolvidos na operação. Isto é, o vendedor é pago para sair de seu país e tem seu órgão transplantado, em um segundo país, para outro receptor. A legalidade desta operação é posta em xeque quando os chamados brokers (aqueles que aliciam e realizam a transação financeira e toda a logística da operação) fraudam um documento atestando o parentesco entre aqueles envolvidos na transação. A grande parte destas operações de turismo de transplante envolve pelo menos três fronteiras: aquela atravessada pelo vendedor, a atravessada pelo receptor e a fronteira de onde acontece a operação. [41]

As autoras ainda indicam o tráfico de pessoas com fins de remoção de órgãos:

Existe também o tráfico de pessoas com fins de remoção de órgãos. Esta modalidade é a mais complexa e ampla em termos de número de pessoas envolvidas e fronteiras cruzadas. Antes do tráfico de órgãos, há o tráfico de pessoas que por si só já tem características e disposições legais específicas. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), a definição para tráfico de pessoas deve ser feita a partir da identificação de três principais elementos de uma cadeia processual: recrutamento, transporte e controle. O tráfico de pessoas consiste neste processo em que o indivíduo recrutado (forçosamente ou por meio de promessa de recompensa) é levado a outro país para que lá exerça atividades ilícitas (muitas vezes, sem saber que essa é a finalidade da viagem), como prostituição, trabalho escravo ou, por exemplo, o transplante de órgãos. Isto demonstra que o consentimento (usualmente possível como tendo uma recompensa financeira como contrapartida) do indivíduo é irrelevante para dizer se é ilícito, já que o cruzamento da fronteira por si só seria ilegal bem como os fins implícitos na operação.

As três modalidades mencionadas dizem respeito a um comércio ilegal de órgãos, operado no mercado paralelo, já que desrespeita as fronteiras e legislações nacionais e internacionais. Todas dizem respeito ao que entendemos por tráfico de órgãos. [42]

Nancy Sheper-Hughes, americana, professora e antropóloga em Berkeley desde a década de 1990, estuda o tráfico humano para remoção de órgãos, fundou em 1999, a organização Organs Watch, onde atua como diretora.

Suas pesquisas começaram em Pernambuco, Brasil, no ano de 1987, época em que queria entender boatos de que crianças eram sequestradas por estrangeiros e tinham os corpos eviscerados e abandonados em lugares ermos ou perto de hospitais. Também descobriu a venda ilegal de órgãos por pessoas vivas, como o rim ou parte do fígado.

E a partir daí, desvendou redes criminosas internacionais de tráfico de órgãos, passando a colaborar com a Polícia e a Justiça de vários países para a apuração e condenação de tal crime.[43]

O esquema criminoso está impregnando no mundo todo e desafia as mais rigorosas constituições botando em cheque a eficiência da norma jurídica mundial. Segundo a ONU a cada ano 15 mil rins são vendidos no mercado negro e segundo Nanci Sheper – Hughes de acordo com suas pesquisas a primeira pessoa da família a vender um órgão é o pai, depois a mãe e posteriormente o filho mais velho. No mercado negro um rim é vendido por cinco mil reais na América Central, Filipinas e em alguns lugares no Sul da Ásia. [44]

Com todas as descobertas realizadas sobre o tráfico internacional de órgãos, em Istambul, Turquia, no ano de 2008, um grupo de médicos de todo o mundo, preocupados com a situação de desespero de vários pacientes que precisam do transplante, e com a perversidade dos traficantes de órgãos que atuam em um momento tão delicado da vida das pessoas, se reuniram para desenvolver estratégias de prevenção ao tráfico de órgãos e ao turismo de transplante e elaboraram um documento denominado “A Declaração de Istambul”, que propõe um conjunto de princípios e propostas destinadas a promover os transplantes com doador vivo e falecido em todo o mundo, de uma forma segura, para proteger a saúde e o bem-estar dos receptores e doadores, com objetivo de acabar com a exploração de pessoas mais vulneráveis. [45]

O Brasil passou a ser signatário desta Declaração, que prevê princípios e diretrizes políticas que os Estados deverão seguir para implementar técnicas repressoras da compra e venda de órgãos, em 07 de fevereiro de 2012, através da Portaria nº 201.

A Declaração de Istambul prevê que tráfico de órgãos:

“consiste no recrutamento, transporte, transferência, refúgio ou recepção de pessoas vivas ou mortas ou dos respectivos órgãos por intermédio de ameaça ou utilização da força ou outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade, ou da oferta ou recepção por terceiros de pagamentos ou benefícios no sentido de conseguir a transferência de controle sobre o potencial doador, para fins de exploração através da remoção de órgãos para transplante”. [46]

Alinhado ao padrão mundial de marcos legais cada vez mais rigorosos contra o tráfico de seres humanos, o Brasil ampliou a abrangência da legislação nacional e aumentou as penas para esse crime. Em 2016, aprovou a Lei Nº 13.344 e endureceu a prisão de traficantes de pessoas, elevando-a para quatro a oito anos e multa. Essa condenação judicial poderá ser aumentada de um terço até a metade do tempo de reclusão, caso a vítima tenha sido retirada do território nacional. Esta criminalização se estende ao tráfico de órgãos.

Diz o artigo 13 da Lei 13.344/2016, alterando o Código Penal:

O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte art. 149-A:

“Tráfico de Pessoas

Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:

I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;

II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;

III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;

IV - adoção ilegal; ou

V - exploração sexual.

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º A pena é aumentada de um terço até a metade se:

I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;

II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;

III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou

IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.

§ 2º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.”

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Sobre a autora
Débora Messias Amaral

Adv e profa Universitária na FADI/UNIPAC e na FAME/FUNJOBE em Barbacena/MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Débora Messias. Transplante de órgãos no Brasil.: Evolução e o abominável crime de tráfico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6210, 2 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83608. Acesso em: 28 mar. 2024.

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