5. Das causas de mitigação do Princípio da Publicidade
5.1. Interesse Público
Todavia, importa dizer que haverá situações em que dito princípio constitucional terá sua aplicação restringida em favor de outros valores e/ou princípios de maior prevalência na ponderação do caso concreto. Uma das causas dessa mitigação poderá ser, por exemplo, o próprio interesse público, quando a manutenção de sigilo do que está sendo discutido nos autos é conduta que se impõe como medida indispensável aos interesses da coletividade. Por isso, a própria Constituição Federal consagrou esta possibilidade em seu art. 5º, inc. LX28, que trata da relativização do princípio da publicidade por força de imperativos de ordem social.
5.2. Direito à intimidade
No mesmo inciso constitucional acima aludido, encontra-se outra causa de mitigação do princípio da publicidade, qual seja o direito à intimidade, que prevalecerá na ponderação do caso material, toda vez que a invasão à esfera privada não representar qualquer benefício ao interesse público, consubstanciando-se em indevida e repudiável intromissão estatal na vida particular.
Ademais, RUI PORTANOVA leciona que busca-se, através da relativização da publicidade, "evitar a curiosidade geral, as conseqüências desastrosas, a perturbação da ordem, a apreensão do povo, o alarme, o tumulto, o apavoramento, a marca negativa e a afronta à dignidade das pessoas físicas e jurídicas, sejam de direito privado ou público" 29.
6. Questões polêmicas
Existem algumas situações processuais em que se debate acerca da incidência ou não da publicidade, face à natureza do ato ou medida praticada. Há por exemplo, quem defenda a inexistência de tal princípio na tutela antecipada concedida liminarmente. Contudo, pensa-se existir, sim, publicidade nesta medida. É que a publicização, a partir da qual decorrerá a abertura de prazo para a defesa, foi apenas postergada para garantia da efetividade das medidas de tutela de urgência. Nessas situações, postula-se que não há falar em supressão do princípio da publicidade, mas tão-somente em sua mera postecipação, tendo em vista a garantia da efetividade processual.
No que tange às medidas de arresto, seqüestro e busca e apreensão, a doutrina parece estar dividida quanto à derrogação ou não dos arts. 81530 (justificação prévia realizada em segredo e de plano quando ao juiz parecer indispensável para o deferimento de medidas cautelares), 82331 (estabelece simetria procedimental do seqüestro com o arresto) e 84132 (justificação prévia na medida de busca e apreensão), em função da exigência constitucional da publicidade.
PATRICIA TEIXEIRA DE REZENDE FLORES e ANDRÉA PÉCORA afirmam que "Celso Ribeiro Bastos manifesta-se no sentido de que essas medidas continuam a ser processadas de forma sigilosa" 33. Contra, pela derrogação dos artigos, CASTRO FILHO34.
Quanto à fraude à execução, houve grande discussão sobre a necessidade ou não de se registrar a penhora para caracterização da fraude à execução34. Alguns juristas entendiam que bastava a citação ou ajuizamento da ação para caracterizar a fraude à execução. Outra corrente, que a fraude à execução só se constituía com o registro da penhora. Um terceiro entendimento era no sentido de que fraude à execução somente se caracterizaria quando comprovada a inexistência de outros bens capazes de garantir a execução.
Hoje, contudo, a situação está pacificada. As reformas do Código de Processo Civil puseram fim à polêmica, ao disporem que "a penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de penhora, cabendo ao exeqüente, sem prejuízo da imediata intimação do executado (art. 699), providenciar, para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, o respectivo registro no ofício imobiliário, mediante apresentação de certidão de inteiro teor do ato e independentemente de mandado judicial" (§ 4º do artigo 659, introduzido pela Lei n.º 8.953/94 e alterado pela Lei n.º 10.444/02). Assim, o registro da penhora (ato administrativo) complementa a penhora (ato judicial). O registro oferece efeito erga omnes. Dessa forma, sem registro, a penhora só tem efeitos contra o devedor, mas não contra terceiros.
No que toca ao sigilo bancário, cumpre ressaltar que o Fisco defende o entendimento de que o seu poder fiscalizatório não pode ser mitigado pela vedação ao acesso às contas bancárias dos contribuintes com fundamento no art. 145, § 1º, da CF35, bem como nos artigos 197 e 198 do Código Tributário Nacional36, que assegura o direito de o Fisco receber de determinadas pessoas, dentre as quais, encontram-se as instituições financeiras (art. 197, inc. II, do CTN), mediante intimação escrita, "todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros" 37. Entretanto, há corrente que entende que os dados bancários são sigilosos, forte no artigo 5º, inc. X, da CF38, que propugna pela inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal (STF) pacificou esta situação, admitindo a quebra do sigilo bancário apenas quando houver autorização judicial ou por força das Comissões Parlamentares de Inquérito (Mandado de Segurança n.º 21.729-4/DF, cuja decisão do STF foi no sentido de considerar o sigilo bancário como direito individual, somente podendo ser quebrado por ordem judicial).
7. Estudo de caso de decisões judiciais
A seguir, com intuito de demonstrar que a jurisprudência pátria ainda busca consolidar a aplicação e alcance do conceito de publicidade no direito processual civil em seus julgados, colacionar-se-á três decisórios do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) que tratam de mesma temática, registro público de transexualismo, prolatados em lapso temporal de aproximadamente sete anos – de 1996 a 2003 –.
Ditos acórdãos exploram o tênue limite que separa a publicidade geral (preponderância do princípio da publicidade) da especial (preponderância do segredo de justiça), entendida aquela, como a que "a todos é franqueado acesso a que se faz em juízo" e esta, em que "tudo há de se passar com restrição ao público, cingindo-se a publicidade aos participantes da relação processual" na lição DANIEL FRANCISCO MITIDIERO39.
Em 12/09/1996, a Terceira Câmara Cível do TJRS prolatou acórdão na Apelação Cível n.º 596103135, de relatoria do Desembargador TAEL JOÃO SALISTRE, extinguindo o feito por entender que pedido de autorização judicial para mudança de sexo não tinha amparo legal em nosso ordenamento jurídico, conforme se verifica na ementa abaixo:
REGISTRO CIVIL MUDANCA DE SEXO. TRANSEXUAL. AUTORIZACAO JUDICIAL PARA SER REALIZADA CIRURGIA. EXTINCAO DO FEITO, POR IMPOSSIBILIDADE JURIDICA DO PEDIDO. 1. NAO TENDO SIDO DISCUTIDA A COMPETENCIA, NAO SE PODE COGITAR DO RESPECTIVO CONFLITO. 2. DENTRO DOS LIMITES DA VARA DOS REGISTROS PUBLICOS, O PEDIDO NAO TINHA AMPARO LEGAL, SENDO CASO DE EXTINCAO DO FEITO. 3. MESMO SE ENTENDENDO O COMANDO DA SENTENCA COM SENTIDO MAIS AMPLO, O CERTO E QUE A CIRURGIA PRETENDIDA QUE NAO E CORRETIVA E TEM EFEITO MAIS PSICOLOGICO, MESMO PORQUE O SEXO BIOLOGICA E SOMATICAMENTE CONTINUA SENDO O MESMO, NAO E PERMITIDA EM NOSSO PAIS. AINDA QUE DEVENDO O TRANSEXUAL SER TRATADO COM SERIEDADE, COM ACOMPANHAMENTO MEDICO DESDE A INFANCIA, E MESMO SABENDO QUE EM OUTROS PAISES ESSA CIRURGIA E REALIZADA, NAO SE PODE AUTORIZAR A SUA EFETIVACAO. 4. IMPOSSIBILIDADE JURIDICA DO PEDIDO. INVIABILIDADE DE APLICACAO DOS ARTIGOS 4, DA LEI DE INTRODUCAO AO CODIGO CIVIL, E 126, DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL, QUE NAO TEM O ALCANCE PRETENDIDO. 5. DECISAO EXTINTIVA DO FEITO MANTIDA. APELACAO NAO PROVIDA, POR MAIORIA.
(Apelação Cível Nº 596103135, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tael João Selistre, Julgado em 12/09/1996)
Portanto, em 1996, o Judiciário gaúcho externava posicionamento no sentido de extinguir feitos, que tinham por pleito a obtenção de autorização judicial para realização de cirurgia para mudança de sexo, por considerar o pedido juridicamente impossível.
Entretanto, em 18/12/1997, a mesma Câmara Cível, ao decidir o Recurso de Apelação n.º 597156728, interposto pelo Ministério Público, que examinava pleito judicial de alteração de nome e de sexo, adotando posicionamento mais flexível, deferiu os aludidos pedidos do requerente, todavia, determinando que a condição transexual do postulante fosse averbada em seus registros civis, resguardando, assim, a incidência do princípio da publicidade no caso concreto a fim de possibilitar que terceiros tivessem acesso à dita alteração de registro civil, conforme noticia a transcrição abaixo:
REGISTRO PUBLICO. ALTERACAO DO REGISTRO DE NASCIMENTO. NOME E SEXO TRANSEXUALISMO. SENTENCA ACOLHENDO O PEDIDO DE ALTERACAO DO NOME E DO SEXO, MAS DETERMINANDO SEGREDO DE JUSTICA E VEDANDO NO FORNECIMENTO DE CERTIDOES REFERENCIA A SITUACAO ANTERIOR. RECURSO DO MINISTERIO PUBLICO SE INSURGINDO CONTRA A MUDANCA DE SEXO, PRETENDENDO QUE SEJA CONSIGNADO COMO TRANSEXUAL MASCULINO, E CONTRA A NAO PUBLICIDADE DO REGISTRO. EMBORA SENDO TRANSEXUAL E TENDO SE SUBMETIDO A OPERACAO PARA MUDANCA DE SUAS CARACTERISTICAS SEXUAIS, COM A EXTIRPACAO DOS ORGAOS GENITAIS FEMININOS E A IMPLANTACAO DE PROTESE PENIANA, BIOLOGICA E SOMATICAMENTE CONTINUA SENDO DO SEXO MASCULINO. INVIABILIDADE DA ALTERACAO, SEM QUE SEJA FEITA REFERENCIA A SITUACAO ANTERIOR, OU PARA SER CONSIGNADO COMO SENDO TRANSEXUAL MASCULINO (sic), PROVIDENCIA QUE NAO ENCONTRA EMBASAMENTO MESMO NAS LEGISLACOES MAIS EVOLUIDAS. SOLUCAO ALTERNATIVA PARA QUE, MEDIANTE AVERBACAO, SEJA ANOTADO QUE O REQUERENTE MODIFICOU O SEU PRENOME E PASSOU A SER CONSIDERADO COMO SEXO MASCULINO EM VIRTUDE DE SUA CONDICAO TRANSEXUAL, SEM IMPEDIR QUE ALGUEM POSSA TIRAR INFORMACOES A RESPEITO. PUBLICIDADE DO REGISTRO PRESERVADA. APELACAO PROVIDA, EM PARTE. VOTO VENCIDO.
(Apelação Cível Nº 597156728, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tael João Selistre, Julgado em 18/12/1997)
Por sua vez em 2003, na apreciação de outro pleito judicial de alteração de nome e de sexo, ao se manifestar no Recurso de Apelação n.º 70006828321 interposto pelo Ministério Público indicado na ementa, a Oitava Câmara Cível do TJRS, dissentindo do entendimento esposado no acórdão da Apelação Cível nº 597156728, prolatado pela Terceira Câmara Cível, houve por bem vedar a extração de certidões referentes à situação anterior do postulante, portanto, mitigando o princípio da publicidade em favor da prevalência do segredo de justiça no caso concreto, como se percebe na ementa que segue, verbis:
APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO REGISTRO DE NASCIMENTO. NOME E SEXO. TRANSEXUALISMO. SENTENÇA ACOLHENDO O PEDIDO DE ALTERAÇÃO DO NOME E DO SEXO, MAS DETERMINANDO SEGREDO DE JUSTIÇA E VEDANDO A EXTRAÇÃO DE CERTIDÕES REFERENTES À SITUAÇÃO ANTERIOR. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO INSURGINDO-SE CONTRA A NÃO PUBLICIDADE DO REGISTRO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (SEGREDO DE JUSTIÇA)
(apelação cível nº 70006828321, oitava câmara cível, tribunal de justiça do RS, relator: Catarina Rita Krieger Martins, julgado em 11/12/2003)
Assim, diante desse singelo estudo de jurisprudência, quer-se demonstrar que a incidência do princípio da publicidade no processo civil é matéria que ainda enseja e continuará ensejando intenso debate até que sua aplicação esteja consolidada nos tribunais.
Conclusões
À luz do que foi examinado, pode-se afirmar que o princípio da publicidade tem sua incidência assegurada no processo civil em razão de seu matiz constitucional. Portanto, já não era sem tempo que as questões de cunho processual civil passassem a contemplar valores e princípios insertos em nosso Texto Constitucional.
Percebe-se que as normas infraconstitucionais, afetas ao processo civil, já prestam obediência ao dito princípio, o que pode ser festejado, tendo-se em conta a demonstração de que existe, pelo menos por parte dos legisladores, uma preocupação em assegurar a sistematicidade da ordem jurídica pátria, observando-se as diretrizes anotadas pela Carta Constitucional.
Todavia, no meio jurisprudencial, como se pôde verificar pela singela amostragem de decisórios do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ainda há muito a ser refletido sobre o binômio segredo de justiça/princípio da publicidade até que se possa afirmar a existência da consolidação de tais conceitos em nível de aplicação no caso concreto. De qualquer sorte, o debate está em franco andamento e é natural presumir que a pacificação jurisprudencial de tão relevante matéria leve ainda mais algum tempo.
Por fim, importa registrar que o princípio da publicidade é ferramenta de fiscalização da qualidade da prestação de serviço oferecida pelo Poder Judiciário, que deverá pautar suas decisões em consonância com os ditames constitucionais e legais. Nessa tarefa de controle dos atos do Judiciário, surge o advogado, desempenhando o papel de verdadeiro guardião do princípio da publicidade, norma de singular importância no aperfeiçoamento da democracia brasileira.
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