8. Suspensão do poder familiar
O novo Código manteve, praticamente intactas, as hipóteses de suspensão e extinção do poder familiar, salvo o acréscimo de normas de remissão a outras de mesma natureza. A suspensão impede, temporariamente, o exercício do poder familiar.
São três as hipóteses de suspensão do poder familiar dos pais, a saber (art. 1.637): a) descumprimento dos "deveres a eles (pais) inerentes"; b) ruína dos bens dos filhos; c) condenação em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão. As duas primeiras hipóteses caracterizam abuso do poder familiar.
Os deveres inerentes aos pais, ainda que não explicitados, são os previstos na Constituição, no ECA e no próprio Código Civil, em artigos dispersos, sobretudo no que diz respeito ao sustento, guarda e educação dos filhos. De modo mais amplo, além dos referidos, a Constituição impõe os deveres de assegurarem aos filhos (deveres positivos ou comissivos) a vida, a saúde, a alimentação, o lazer, a profissionalização, a dignidade, o respeito, a liberdade, a convivência familiar e comunitária, e de não submetê-los (deveres negativos ou de abstenção) a discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A suspensão pode ser sempre revista, quando superados os fatores que a provocaram. No interesse dos filhos e da convivência familiar, apenas deve ser adotada pelo juiz quando outra medida não possa produzir o efeito desejado, no interesse da segurança do menor e de seus haveres.
9. Extinção do poder familiar
A extinção é a interrupção definitiva do poder familiar.
São hipóteses exclusivas: a) morte dos pais ou do filho; b) emancipação do filho; c) maioridade do filho; d) adoção do filho, por terceiros; e) perda em virtude de decisão judicial.
A morte de um dos pais faz concentrar, no sobrevivente, o poder familiar. A emancipação dá-se por concessão dos pais, mediante instrumento público, dispensando-se homologação judicial, se o filho contar mais de 16 anos. A natureza da adoção, que imita a natureza e impõe o corte definitivo com o parentesco original, leva ao desaparecimento do poder familiar.
A perda por decisão judicial, por sua vez, depende da configuração das seguintes hipóteses: a) castigo imoderado do filho; b) abandono do filho; c) prática de atos contrários à moral e aos bons costumes; d) reiteração de faltas aos deveres inerentes ao poder familiar. A quarta hipótese não existia no Código anterior.
Quanto ao castigo imoderado, por sua relevância, merece ser destacado abaixo. A moral e os bons costumes são aferidos objetivamente, segundo standards valorativos predominantes na comunidade, no tempo e no espaço, incluindo as condutas que o Direito considera ilícitas. Não podem prevalecer os juízos de valor subjetivos do juiz, pois constituiriam abuso de autoridade. Em qualquer circunstância, o supremo valor é o melhor interesse do menor, não podendo a perda do poder familiar orientar-se, exclusivamente, no sentido de pena ao pai faltoso.
Por sua gravidade, a perda do poder familiar somente deve ser decidida quando o fato que a ensejar for de tal magnitude que ponha em perigo permanente a segurança e a dignidade do filho. A suspensão do poder familiar deve ser preferida à perda, quando houver possibilidade de recomposição ulterior dos laços de afetividade.
10. O castigo "moderado" dos filhos
Como resquício do antigo pátrio poder, persiste na doutrina e na legislação a tolerância ao que se denomina castigo "moderado" dos filhos. O novo Código, ao incluir a vedação ao castigo imoderado, admite implicitamente o castigo moderado. O castigo pode ser físico ou psíquico ou de privação de situações de prazer.
Deixando de lado as discussões havidas em outros campos, sob o ponto de vista estritamente constitucional não há fundamento jurídico para o castigo físico ou psíquico, ainda que "moderado", pois não deixa de consistir violência à integridade física do filho, que é direito fundamental inviolável da pessoa humana, também oponível aos pais. O artigo 227 da Constituição determina que é dever da família colocar o filho (criança ou adolescente) a salvo de toda violência. Todo castigo físico configura violência. Note-se que a Constituição (art. 5.º, XLIX) assegura a integridade física do preso. Se assim é com o adulto, com maior razão não se pode admitir violação da integridade física da criança ou adolescente, sob pretexto de castigá-lo. Portanto, na dimensão do tradicional pátrio poder era concebível o poder de castigar fisicamente o filho; na dimensão do poder familiar fundado nos princípios constitucionais, máxime o da dignidade da pessoa humana, não há como admiti-lo. O poder disciplinar, contido na autoridade parental, não inclui, portanto, a aplicação de castigos que violem a integridade do filho.
Notas
1 Com influência no recente Código Civil da província canadense de Québec (1994), arts. 597. a 612. O artigo 699 refere-se a "direito e dever" de guarda, sustento e educação, que podem ser delegados. Sobre a Lei francesa de 4 de março de 2002, cf. Claude Lienhard, Les Nouveaux Droits du Père, Paris: Delmas, 2002, passim.
2 Family Law. St. Paul: West Publishing, 1991, p. 191.
3 Para José Artur Rios (cf. verbete "autoridade", no Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986), forte em Max Weber, autoridade não se confunde com poder, que é a coação física ou psíquica exercida sobre grupos ou indivíduos que a ela são forçados a se submeter. A autoridade pode ser chamada de poder legítimo, pois é a ascendência sobre outros indivíduos, fundada na legitimidade.
4 Registre-se, ainda, a tentativa de encontrar "expressão neutra" compreensiva da transformação havida no instituto, a exemplo de "poderes e deveres parentais" sugerida por Luiz Edson Fachin. Fachin, Luiz Edson. Em nome do pai, estudo sobre o sentido e alcance do lugar jurídico ocupado no pátrio dever, na tutela e na curatela. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Direito de família contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 585-604.
5 Patria potestas in pietate debet, non in atrocitate, consistere.
6 Orlando Gomes (Direito de Família, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 389) considera o múnus um ministério correspondente a um cargo privado, que deve ser exercido no interesse do filho.
7 Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 129.
8 Aqui não é o espaço adequado para discorrer, mais largamente, sobre tese que tenho sustentado de não constituírem numerus clausus os três tipos de entidades familiares, pois todas as uniões de pessoas com finalidades afetivas, com intenções sexuais ou não, e que assim se comportam socialmente, enquadram-se no conceito de "família", previsto no artigo 226 da Constituição, não sendo necessário nem constitucionalmente sustentável equipará-las a sociedades de cunho econômico ou lucrativo ("sociedades de fato").
9 Sobre a experiência francesa da mediação para promoção da guarda compartilhada, v. GANANCIA, Danièle. Justiça e mediação familiar: uma parceria a serviço da co-parentalidade. Revista do Advogado, AASP, n. 62, mar. 2001, p. 7-15.
10 Ainda sobre a guarda compartilhada, na perspectiva da psicanálise, cf. NICK, Sergio Eduardo. Guarda compartilhada: um novo enfoque no cuidado dos filhos de pais separados ou divorciados. In: BARRETO, Vicente (Org.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 127-168.
11 O título do Capítulo VII do Título VIII é justamente "Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso".