4 - Constituição codificada ou não codificada?
Da mesma forma, que optou-se por constituições rígidas e escritas, às Constituições codificadas demonstram maior vantagem na sistematização, possibilitando construção adequada de sua interpretação sistemática.
As Constituições não codificadas caracterizam-se pela existência de leis constitucionais esparsas, ao lado do texto base. A Constituição encontra-se fragmentada, sem organização sistemática de seu texto, que permita a manutenção de sua lógica interna, sobre a qual irá construir-se toda a interpretação.
Importante, neste momento, mais uma vez, ressaltar a idéia de que a Constituição não é apenas o seu texto escrito, uma vez que a lei comporta a interpretação que se faz dela, em um dado momento histórico. Impossível aplicar a lei, sem antes interpreta-la. Estas classificações estudadas até aqui, referem-se, portanto, a uma classificação do texto escrito, sobre o qual se construirá a constituição democrática, que será a interpretação que se oferecerá ao texto básico, construída de forma participativa e democrática pelos cidadãos e adequada ao momento histórico vivido.
Um texto codificado, estruturado de forma lógica em um único documento, permite a manutenção de um sistema normativo, que facilita o conhecimento e interpretação da Constituição.
As alterações, acréscimos e supressões que venham ocorrer, através do funcionamento do poder constituinte derivado de reforma, capaz de elaborar leis constitucionais, devem sempre se integrar ao texto sistematizado, mantendo-se assim a organização lógica do mesmo, o que facilita sua compreensão e interpretação.
5 - Constituição ortodoxa ou eclética?
Alguns autores adotaram essa classificação, para identificar constituições que se alinhavam a uma ideologia sócio-econômica específica, negando outras influências, como as Constituições socialistas e liberais, que podem ser consideradas ortodoxas, e as Constituições que sofrem influências de mais de uma ideologia ou programa político, social e econômico, as quais são consideradas ecléticas. (9)
Deve-se entender essa classificação, dentro de uma perspectiva histórica, de formação das Constituições Sociais. Essas constituições surgem no início do século, mais precisamente em 1917 no México e 1919 na Alemanha, fruto de processo histórico, onde, no século dezenove, construiu-se e desenvolveu-se de forma marcante e ameaçadora, para a proposta liberal e o capitalismo, uma teoria antagônica, que construída sobre bases cientificas e uma crítica contundente ao capitalismo, foi capaz de arrebatar a classe trabalhadora de vários países.
A existência de duas propostas de Estado, radicalmente opostas, faziam sugerir um ortodoxismo, onde de um lado se colocava o liberalismo, ou mais precisamente o capitalismo, e de outro o socialismo real, que visava a construção de uma sociedade comunista.
Pouco a pouco o mundo capitalista sentiu a necessidade de se adaptar a nova realidade histórica, para garantir sua sobrevivência, passando o Estado Liberal a incorporar, na sua legislação infra constitucional, parte das reivindicações socialistas, criando uma legislação previdenciária e trabalhista, admitindo, ainda, a intervenção do Estado no domínio econômico. Exemplo clássico é a lei Sherman de 1890, nos Estados Unidos da América do Norte. (10)
O liberalismo mostrava contradições, que só seriam superadas através da aceitação das mesmas. O liberalismo que defendia a não intervenção do Estado, nas questões sociais e econômicas, só seria salvo a partir da intervenção estatal na economia e do oferecimento de direitos sociais, através de um assistencialismo estatal, que não era efetivamente a proposta socialista, mas subtraía desta elementos que atenuassem a tensão social.
Do ortodoxismo liberal, o Estado Liberal transforma-se em modelos que podemos classificar de neoliberais, em sentido amplo, dando origem ao Estado Social ou Social-Liberal, que em graus diferentes, irá intervir no domínio econômico e na questão social. A este novo modelo de Estado Social, pode-se atribuir caráter eclético, pois sua Constituição irá conter elementos, de cada um dos dois sistemas que se contrapunham neste momento.
Uma Constituição eclética representa, portanto, texto que será fruto das reivindicações e pressões de grupos com interesses diferentes e muitas vezes opostos, dentro do Estado, interesses antagônicos que irão manifestar-se, com mais intensidade, quanto maior for o grau de participação da sociedade civil, na elaboração constitucional.
Esse conflito de interesses reflete-se nas constituições ecléticas, dando origem ao que podemos classificar como "aparentes antagonismos", no texto constitucional. Referimo-nos a aparentes antagonismos, pois o texto constitucional após sua elaboração, têm vida própria, no sentido que não estará sempre vinculado à vontade dos constituintes, pois receberá leitura sistemática que irá, necessariamente, evoluir juntamente com a sociedade, suas necessidades e expectativas, dentro de um contexto histórico, buscando sempre, uma síntese através de sua interpretação, diante de situações concretas, que permitirá o desaparecimento de antagonismos que, afirmativamente, entre princípios e regras não pode existir.
Leitura obrigatória para a compreensão do que afirmamos, é a obra do professor Washington Peluso Albino de Souza, especialmente quando o autor trabalha a importante idéia de ideologia constitucionalmente adotada, já mencionada nesse trabalho, e do princípio da economicidade. (11) Pelos ensinamentos do Mestre do direito econômico brasileiro, a Constituição têm ideologia própria, representada por valor síntese, que irá apontar qual o correto equilíbrio valorativo que apontará a aplicação dos princípios e regras constitucionais em situações diferentes. Com isto queremos dizer que em situações diversas, os princípios terão valor e importância também múltiplas, sendo que esta correta ponderação, sobre qual princípio aplicar, em determinada situação, será apontada pela ideologia constitucional. Estes ensinamentos são de extrema importância e atualidade.
Quando defendemos em outros trabalhos a idéia de uma Constituição democrática, sintética, rígida, escrita, codificada, onde seus princípios serão àqueles considerados universais, não existindo nenhuma vinculação com algum modelo sócio-econômico, o que implica na desconstitucionalização da propriedade privada dos meios de produção, podemos perguntar se estaríamos, diante de uma constituição eclética ou ortodoxa.
A resposta a esta questão aponta-nos situação completamente nova, pois todas a constituições, sejam ecléticas como os textos sociais, neoliberais, ou ortodoxas como os textos liberais e socialistas, estabelecem modelo constitucional de organização econômica e social.
Ao se retirar da Constituição a vinculação ao modelo presentemente existente, estamos sem dúvida criando texto ortodoxo, extinguindo o ecletismo existente, que se manifesta, justamente, na convivência de princípios com origem em ideologias antagônicas e no próprio conflito social existente, presentes nas suas normas de conteúdo político-econômico e social, que vêm recebendo interpretações diferentes, pela doutrina e pelos tribunais.
Entretanto, a ortodoxia do texto caracterizar-se-ia não pela fidelidade a uma ideologia política, social e econômica específica, mas sim pela não vinculação a nenhuma, e nem mesmo a modelos sincréticos, mantendo a ortodoxia na opção por um sistema democrático, capaz, de criar procedimentos, mecanismos de garantia e variados canais de comunicação, entre sociedade e Estado, fazendo aos poucos, desaparecer a dicotomia Estado versus Sociedade.
Desta forma, o texto ortodoxo, ao garantir uma democracia que se materializa em processos legitimadores de mudanças, e na própria ação da sociedade, através da estrutura estatal, condicionados por princípios universais de direitos humanos, irá consagrar, incentivar e mesmo possibilitar, através dos seus processos participativos, o ecletismo na sociedade civil e no próprio Estado, como forma de promover a criação de resultantes inovadoras e construídas no embate democrático diário. (12)
NOTAS
(1) A questão da interpretação constitucional é tratada em outro artigo.
(2) BADIA, Juan Ferrando. Estrutura Interna de la Constitución. Valencia, Tirand le Blanch, 1988. SORLI, Juan-Sebastian Piniella. Sistema de Fuentes y Bloque da Constitucionalidad - Encrucijada de competências, Barcelona, Casa Editorial Bosch, 1994. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição, São Paulo, Saraiva, 1988. MACHADO JÚNIOR, Batista. Participação e Descentralização, Democratização e Neutralidade na Constituição de 76. Coimbra, Livraria Almedina, 1982.
(3) SEGADO, Francisco Fernandez. La Jurisdición Constitucional en España, Madrid, Dykinson, 1984. FOIX, Moncerrat Cuchillo. Jueces y Administración en el Federalismo Norteamericano (El control jurisdicional de la actuación administrativa, Madrid, Editorial Cívitas, 1996. CHEVALIER, Jacques. L’Etat de Droit. 2ª edition, Paris, Montchrestien, 1994. ROYO, Javier Peres. Tribunal Constitucional y Division de Poderes - Madrid, Tecnos, 1988. PEREIRA, Antônio Celso Alves, Acesso a Justiça e Direitos Humanos: O Problema no Brasil. in Revista da Faculdade de Direito, número 2, 1994, Rio de Janeiro, Renovar, Universidade do Rio de Janeiro, pp. 123-134.
(4) MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Direitos Humanos na Ordem Jurídica Interna, ob. cit.
(5) BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha.. A Teoria das Constituições Rígidas, São Paulo, José Bushatsky Editor, 1980. VEGA, Pedro de. La Reforma Constitucional, Madrid, Tecnos, 1995. VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político, Vol. IV, Constitución de 1978 y transformación política social española, Madrid, Tecnos, 1984.
(6) DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução. Rio de Janeiro, Ed. Rio Sociedade Cultural Ltda., 1978. ACCIOLI, Wilson. Instituições de Direito Constitucional, Rio de Janeiro, Forense, 1979. MALUF, Sahid. Direito Constitucional, 15ª edição, São Paulo, Sugestões Literárias, 1983. SIEYES, Emanuel Joseph. A Constituição Burguesa (Qui est-ce que le tiers Etat?) Organização e Introdução de Aurélio Wander Bastos, trad. de Norma Azevedo, Rio de Janeiro, Liber Juris,
(7) BARACHO, José Alfredo de Oliveira.Teoria Geral do Poder Constituinte, Separata do n. 52 da Revista Brasileira deEstudos Políticos, Belo Horizonte, 1981. HAURIOU, André. Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Editions Montchrestien, Paris, 1978.
(8) LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion, Barcelona, Ediciones Ariel, 1970.
(9) RUSSOMANO, Rosah. Curso de Direito Constitucional, 3ª ed. rev. ampl., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1978. BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. Forense, Rio de Janeiro, 1980. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, ob. cit.
(10) GELLHORN, Ernest. Antitrust Law and Economics, ob. cit. COTTELY, Esteban. Teoria del Derecho Economico, Frigerio Artes Gráficas, Buenos Aires, 1971. CHENGT, Bernard. Organizatión Economique de L’Etat, Paris, 1951. CHAMPAUD, Claude. Contribution à la definition du Droit Economique.Recueil Dalloz, Paris, 1967. MONCADA, Luis S. Cabral de. Direito Econômico, Coimbra Editora, Coimbra, 1986. SOUZA, Washington Peluso Albino de. "O Discurso Internacionalista nas Constituições Brasileiras", in Revista Brasileira de Informação Legislativa, A. 21, n. 81, jan./mar., Brasília, 1984, pp. 139 - 201.
(11) SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito Econômico, ob. cit.
(12) ZAMPETTI, Pier Luiz. La Participación Popular en el Poder. ob. cit.