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Cidadania italiana: regime jurídico e aspectos de constitucionalidade

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28/05/2006 às 00:00
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7. CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA E CONSTITUCIONALIDADE DOS EFEITOS DA NORMA. CONSTITUCIONALIDADE DA SENTENÇA nº 12.091/98 DA CORTE DE CASSAÇÃO ITALIANA.

Com efeito, a decisão da Corte de Cassação gerou evidente efeito discriminatório, em face da situação de desigualdade injustificada que a produção de seus efeitos implica. Lembre-se, no entanto, que, diferentemente do sistema brasileiro, em que a declaração de inconstitucionalidade é, em regra, ex tunc, ou seja, retroativa, no sistema italiano ela é, em regra, ex nunc, ou seja, irretroativa (art. 136 da Constituição italiana de 1947 23).

Daí já se verifica a diversidade entre os sistemas brasileiro e italiano de controle de constitucionalidade 24.

No entanto, a injustiça da decisão parece-nos patente. O ferimento ao Princípio da Isonomia, consagrado no art. 3º da Carta Constitucional peninsular é evidente. De se observar que, não obstante a Lei n. 555/12 não se afigurasse inconstitucional face ao sistema constitucional vigente até 31.12.1947, a manutenção de tal norma como válida implica na ultratividade de seus efeitos, e são tais efeitos que parecem ferir a constitucionalidade ora vigente.

É a conclusão que já tivemos a oportunidade de defender em outra oportunidade:

"É evidente que a hipótese é francamente discriminatória e, a nosso juízo, inconstitucional. Não se trata tão somente de discriminação de gênero, mas discriminação arbitrária que se perpetua entre descendentes do mesmo matrimônio, dentre os quais alguns gozam da cidadania (por terem seus ascendentes em linha reta nascido após 1948) e outros não (por terem seus ascendentes nascido antes daquela data). O princípio da igualdade encontra previsão expressa no art. 3º da Constituição italiana, razão pela qual as autoridades italianas deveriam reconhecer, mesmo administrativamente, a cidadania dos descendentes por via materna, ainda que anteriormente a 1948."

(sem destaques no original) 25.

No entanto, do ponto de vista das regras tradicionais de vigência das normas jurídicas no tempo, a decisão parece inatacável. Daí já é possível inferir-se a complexidade que envolve os temas efeitos das normas constitucionais no tempo, bem como o tema efeitos da declaração de constitucionalidade no tempo.

Por tal complexidade e pela gravidade das conseqüências de cada tomada de posição ante tais temas é que deve-se observar a máxima cautela e parcimônia na utilização de mecanismos como a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, previstos tanto na lei reguladora da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade – Lei n. 9.868, de 10.11.1999, art. 27 – quanto na lei regulamentadora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – Lei n. 9.882, de 03.12.1999, art. 11 -, as quais prevêem que ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social 26, poderá o Supremo Tribunal Federal , por maioria de 2/3 de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração, ou ainda decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado, ou de outro momento que venha a ser fixado.

Com tal espécie de manipulação pode-se criar aberrações jurídicas. Inconstitucionalidade é vício grave, merecendo a correção devida. As limitações do sistema e as características da decisão jurisdicional italiana em comento demonstram tal necessidade.

Cabe concluir este pequeno ensaio questão aventando a problemática, sem, no entanto, ousar respondê-la. Tomando como válido que a decisão da Corte de Cassação não foi a mais acertada, haja vista os efeitos que produziu e continua a produzir, qual seria a solução para o caso em tela, abstraindo-se o sistema em que a decisão foi proferida?

Seria possível, hipoteticamente, a conferência de efeitos retroativos para antes da vigência da Carta Constitucional (retroatividade do comando constitucional)? Ou, para corrigir a referida distorção, seria o caso de declarar a inconstitucionalidade dos efeitos da norma jurídica em questão? Nesta última hipótese, em lugar de defender a eficácia ex tunc do ditame constitucional, defender-se-ia a possibilidade de controle de constitucionalidade dos efeitos ultrativos de uma norma não recepcionada. Como fazê-lo? É constitucional a Sentença n. 12.091 de 1998, da Corte de Cassação italiana?

Como se vê, a complexidade envolvendo o tema não é pouca, servindo-nos de modelo para uma aprofundada reflexão sobre a efetividade e as insuficiências dos instrumentos jurídicos de controle de constitucionalidade, e sobre a própria natureza deste controle.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNARDINI, Igor Di. La cittadinanza italiana (ed il passaporto). Buenos Aires : Consolato Generale d’Italia in Buenos Aires, 2003.

BUONO, Giuseppina. La cittadinanza italiana: la normativa, le procedure, le circolari. Ministero dell’Interno, Dipartimento per le libertà civili e l’immigrazione, Direzione Centrale per i Diritti Civili, la Cittadinanza e le Minoranze, s.l., s.d.

LAMBERT, Jean Marie. Curso de Direito Internacional Público. Parte Geral. 2ª ed. Goiânia : Kelps, 2000.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª ed. São Paulo : Atlas, 2003.

SGARBOSSA, Luís Fernando. Cidadania italiana: manual prático. Curitiba : Juruá Editora, 2006.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 26ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo : Malheiros, 1998.


NOTAS

  1. SILVA, De Plácido e, Vocabulário Jurídico, p. 700.

  2. Fenômeno cujo auge deu-se no final do Século XIX e início do Século XX.

  3. Conferir os dados e os relatos de Gian Antonio Stella. Em sua obra Odissee: italiani sulle rote del sogno e del dolore (Odisséias: italianos nas rotas do sonho e da dor), especialmente no capítulo "Come potevano restare?" ( Como podíamos ficar?), p. 24 e seguintes, relata com riqueza de detalhes as terríveis condições de vida que compeliram os imigrantes à expatriação em busca de chances de sobrevivência. Ver tambéms os interessantes dados na obra do mesmo autor de título "Orda: quando gli albanesi eravamo noi" (Horda: quando os albaneses éramos nós).

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  4. Neste sentido, conferência proferida por Patrick Riondato, Presidente da Coordenação de Associações Vênetas em Tezze sul Brenta, Itália, em 02.12.2004.

  5. Neste sentido, conferir "Cidadania italiana: manual prático", de nossa lavra.

  6. A Constituição da República, em seu art. 12, utiliza a expressão nacionalidade na letra "c" de seu inciso I, bem como no inciso II, letras "a" e "b, e no § 4º, em seu inciso II e alínea "a".

  7. Ver o verbete nação no Vocabulário Jurídico De Plácido e Silva, p. 939.

  8. São exemplos de nacionalidades estranhas em solo italiano aquelas dos Alemães no território de Trentino-Alto Ádige, ou dos franceses na Região de Val d’Aosta, ou ainda os eslovênios na Região de Friuli-Veneza Júlia. São exemplos de nacionalidade italiana fora da Itália as populações itálicas do Cantão Ticino, na Suíça, bem como os cidadãos de San Marino. Na Grã-Bretanha há, pelo menos, quatro nacionalidade distintas: os ingleses, galeses, escoceses e irlandeses. Neste sentido, conferir IGOR DI BERNARDINI, La Cittadinanza italiana (ed il passaporto), p. 13 e seguintes (vide bibliografia).

  9. Lambert, Jean Marie, Curso de Direito Internacional Público vol. II, p. 129 e seguintes. Tal conceito tradicional de Estado vem sofrendo modificações, fruto de fenômenos relativamente recentes, como os de supranacionalidade. Deixamos, no entanto, a discussão de tais temas para outro momento, bastando-nos, neste momento, para o escopo almejado, o conceito clássico.

  10. MORAES, Alexandre de, Constituição do Brasil interpretada, p. 513.

  11. Lembrando-se que, em sendo a cidadania ou nacionalidade matéria intimamente afeta à soberania, os Estados possuem, em regra, ampla autonomia para regulamentá-la conforme seus interesses, perante o Direito Internacional. Existem, não obstante, limites à desnacionalização abusiva ou arbitrária, por exemplo.

  12. Assim são os sistemas brasileiro e italiano, por exemplo. No sistema brasileiro, predomina o critério territorial – cidadania jure soli -, prevendo a constituição hipóteses subsidiárias de atribuição de cidadania pelo critério do sangue ou genético – cidadania jure sanguinis -. Já no sistema italiano, verifica-se o mesmo, embora com polaridade inversa: predomina o critério genético, prevendo a legislação competente hipóteses subsidiárias de atribuição de cidadania pelo critério do solo ou território. Ver, sobre o particular, o art. 12, inciso I, letras "a" a "c", da Constituição brasileira de 1988, e o art. 1º, itens 1 e 2, da Lei italiana n. 91, de 05.02.1992, lei orgânica da cidadania. Há versão traduzida da referida legislação na obra de nossa lavra "Cidadania Italiana: manual prático", Juruá Editora.

  13. A título de curiosidade: denomina-se jus communicatio ou cidadania jure matrimonii a cidadania adquirida por casamento com cidadão, prevista na legislação italiana BERNARDINI, Igor di, La cittadinanza italiana (ed il passaporto), p. 39.

  14. Constituição da República, art. 12, inciso I, alínea "c".

  15. Ver a Convenção de Estrasburgo, de 06.05.1963, sobre a redução dos casos de nacionalidade plúrima.

  16. Constituição da República de 1988, art. 12, § 4º, inciso I, letra "a".

  17. Note-se: cidadania é, em regra, renunciável, nos termos da lei, especialmente em casos de indivíduo com cidadania plúrima. Por isso, é equivocado considerar cidadania como direito da personalidade, por incompatibilidade inconciliável. O que pode caracterizar direito da personalidade é a nacionalidade, conforme a distinção vista no Capítulo 2, supra. Esta é mais uma razão para a distinção e a adoção de terminologia adequada ora proposta.

  18. "Artigo XV: 1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade."

  19. Ver a Convenção de Nova York, de 30.08.1961.

  20. Art. 8º, item 1, da Lei n. 555, de 13.06.1912, anterior lei orgânica de cidadania italiana.

  21. Ressalvadas as hipóteses excepcionais de transmissão de cidadania italiana pela mãe, contempladas no já referido item 2 do art. 1º da Lei n. 555/1912.

  22. Primos, por exemplo, com o mesmo avô e avó, ou ainda pessoas com os mesmos bisavós, por exemplo.

  23. "Quando a Corte declara a inconstitucionalidade de uma norma legal ou de ato com força de lei, a norma deixa de ter eficácia a partir do dia seguinte à publicação da decisão."

  24. Além do que adota a Itália o sistema austríaco de controle de constitucionalidade, cabendo à Corte Constitucional pronunciar-se sobre o tema antes do prosseguimento do feito no Tribunal de origem, conforme visto nos casos suscitados pelos Tribunais de Menores de Florença e Milão.

  25. SGARBOSSA, Luís Fernando. Cidadania Italiana – manual prático. Curitiba : Juruá, 2006. Página 24.

  26. Estamos a defender sobre o tema, preliminarmente, que esta modulação somente poderá ter lugar em situações realmente excepcionalíssimas, sob pena de vermos consolidarem-se situações jurídicas no mínimo indesejáveis como a hora em estudo.

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Sobre o autor
Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SGARBOSSA, Luis Fernando. Cidadania italiana: regime jurídico e aspectos de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1061, 28 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8401. Acesso em: 28 mar. 2024.

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