8.Outros Princípios Hermenêutico-Constitucionais
Há ainda que observar-se que em se tratando de hermenêutica constitucional, os seguintes princípios são de ser sopesados:
a)Princípio da Supremacia Constitucional (formal e material): na análise do legislador constituinte a matéria tratada é mais importante que as demais reservadas a outras normas infraconstitucionais;
b) princípio da presunção de constitucionalidade das leis e atos do poder público, presunção esta que é relativa, podendo ser demonstrado o contrário;
c) princípio da unidade da constituição, onde é preciso interpretá-la como um todo útil. Se é norma só se pode concebê-la como vinculante;
d)princípio do efeito integrador: instinto de preservação da Constituição, levando-se em conta que ela reflete valores plurais;
e)princípio da máxima efetividade: a Constituição deve ser interpretada como instrumento de emancipação da sociedade gerando efeitos benéficos em prol da coletividade;
f)princípio da justeza ou conformidade funcional: a interpretação não pode criar intervenção indevida de um Poder sobre o outro, pois os órgãos e suas respectivas funções devem desempenhar as funções para os quais foram criados;
g)princípio da coordenação prática ou da harmonização: a interpretação constitucional não deve ser ab-rogante;
h)princípio da força normativa da Constituição: deve-se dar eficácia integral à Constituição, inclusive ao seu preâmbulo;
i)princípio da intepretação conforme: pressupõe mais que interpretação possível outorgando-se ao intérprete a opção que salva a norma e prestigia o legislador;
j)princípio da proporcionalidade/roazoabilidade: a decisão deve ser razoável.
9.A República, o Princípio Republicano e a Acessibilidade aos Cargos Públicos
Destaca-se aqui a concepção atual (constitucional) de que todo o Poder emana do povo. Esse poder encontra ressonância na res pública e, por conseqüência, no princípio republicano, princípio este que segundo Ataliba [35] se constitui no esteio do sistema jurídico e político brasileiro.
Ataliba o tem em tão alta dimensão porque sendo o povo o dono da res pública, exige-se o dever de respeito com a coisa pública, com sua preservação e onde seu desenvolvimento e aplicação devem ser direcionados para o próprio povo, pois somente o dono pode dispor sobre o destino dessa coisa; somente ele pode dizer como, quando e em que finalidades ela pode ser aplicada.
Importa destacar que a res publica e o princípio que lhe dá sustentação vem inserto logo no primeiro artigo da Constituição, fato de extrema relevância para o intérprete e aplicador da Constituição, que deve colher seus efeitos irradiantes para toda a Constituição, ou seja, todos os preceitos constitucionais hão de ser interpretados e aplicados levando-se em conta que o Brasil está ancorado em tal princípio, conforme também se pode aferir da leitura do art. 60, § 4º, da Constituição Brasileira.
A partir do princípio republicano surge a representatividade, o consentimento dos cidadãos, a segurança dos direitos, a exclusão do arbítrio, a legalidade, a relação de administração, a previsibilidade da ação estatal e a lealdade informadora da ação pública.
Ataliba [36] afirma que o princípio republicano é o "alicerce de toda a estrutura constitucional, pedra de toque ou chave da abóbada do sistema". Assim, arremata, é inaceitável qualquer interpretação que ignore ou anule um princípio.
Dessa forma, tanto o princípio republicano quanto o federativo são normas jurídicas tão relevantes, princípios tão rígidos, pedras fundamentais do sistema, intocáveis, que recebem da Constituição o título de cláusulas pétreas (art. 60, parágrafo 4º, da Constituição).
Os aspectos examinados anteriormente forneceram a base para a compreensão da relevância dos princípios constitucionais e de critérios de interpretação que nos auxilia a ter na devida conta que o acesso aos cargos públicos nos Tribunais de Contas deve ser dar através de concurso público.
Ataliba [37] destaca que República é "o regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas [e judiciárias, acrescemos nós]) representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletivamente e mediante mandatos renováveis periciodicamente". A eletividade, a periodicidade e a responsabilidde são as características da república.
Observa que a compreensão de qualquer instituição de direito público depende a prévia percepção dos direitos fundamentais postos em sua base por seu povo, sendo impossível descurar-se o caráter de sistema do direito [38].
Ao examinar acuradamente a República e o princípio republicano, observa que tal princípio dá conteúdo e extensão à tripartição do poder, dos mandatos políticos e sua periodicidade, da alternância no poder, da responsabilidade dos agentes públicos, da proteção às liberdades públicas; da prestação de contas, mecanismos de fiscalização e controle do povo sobre o governo [39].
10.O Princípio Constitucional da Moralidade e da Impessoalidade
Tanto quanto o princípio republicano, os princípios da moralidade e da impessoalidade vêm expressamente previstos no art. 37, da Constituição Federal, impondo aos agentes públicos o dever de boa administração, estando a ele ínsitos o dever de honestidade, boa-fé e vinculação ao interesse público.
O princípio da impessoalidade se fundamenta no princípio da isonomia e exige tratamento igualitário entre todos os indivíduos.
Da análise desses dois princípios é possível concluir a vedação de favorecimento pessoal no acesso a cargos públicos, celebração de contratos, exigindo-se a regra geral do concurso público ou da licitação, respectivamente.
11.A Inconstitucionalidade da Atual Forma de Acesso aos Tribunais de Contas
Na ADC citada Barroso observa que a lei formal deixou de ser a única fonte de atos normativos ou a única intermediária entre a Constituição e os atos concretos de execução, exigindo da administração e do administrador o vínculo a um bloco mais amplo de juridicidade, sobretudo à Constituição.
A Constituição, assim, passa a dirigir comandos diretos aos agentes públicos exigindo deles que atuem de forma legal e legítima, não se conformando com tal legitimidade atos que violem o princípio da moralidade e da impessoalidade.
Cabe destacar ainda que o art. 11, da Lei nº 8.429/92 identifica e pune como ato de improbidade ações e omissões que violem os princípios da administração pública.
Outro aspecto relevante a destacar é que não há direitos absolutos [40], havendo limites imanentes aos direitos, podendo dois direitos virem a conflitar-se e exigir que se utilize das técnicas de interpretação constitucional, sopesando os princípios diante do caso concreto para decidir que princípio deve ceder para determinado direito seja assegurado.
Se a forma de ingresso na Magistratura e no Ministério Público é o concurso público e as normas jurídicas aplicáveis aos Tribunais de Contas seguem as mesma estrutura das aplicáveis ao Judiciário, resta incompatível com uma interpretação ‘conforme’ e sistemática do ordenamento jurídico (Bobbio) que se ora se aproveite normas favoráveis e se afaste as desfavoráveis. Assim, impõe-se também no âmbito dos Tribunais de Contas o concurso público.
Tal qual na Ação Direta de Constitucionalidade do nepotismo (ADC 12/2006), proposta pela Associação Nacional dos Magistrados, onde se reconheceu a constitucionalidade da decisão do Conselho Nacional de Justiça que vedou o nepotismo no âmbito do Judiciário, a forma atual de ingresso de Conselheiros traduz-se em nepotismo onde Executivo ou o Legislativo indicam seus amigos e protegidos, pessoas que ingressam no serviço público pela porta dos fundos e passam a deter cargos vitalícios, muitas vezes sem qualquer preparo técnico para o desempenho da função, ignorando-se que a sociedade tem nos Tribunais de Contas instituição relevantíssima com vistas à apuração da boa gestão dos recursos públicos.
Conforme explorado no item V.2 da ADC supra, há vedação constitucional ao nepotismo e a atual forma de ingresso dos conselheiros e ministros nos Tribunais de Contas ofende princípios elementares do direito constitucional brasileiro, como os princípios da moralidade e da impessoalidade, conforme anteriormente observado.
O nepotismo vigente no âmbito dos Tribunais de Contas ofende, assim, ao sistema jurídico brasileiro incluindo, por óbvio, a ofensa à Constituição.
Importante destacar que constitui princípio comezinho de hermenêutica jurídica que as normas não são interpretadas isoladamente, mas sistematicamente, ou seja, levando-se em conta todo o ordenamento jurídico, conforme nos ensina Norberto Bobbio em sua Teoria do Ordenamento Jurídico.
Não bastasse a inconstitucionalidade apontada por ofensa aos princípios republicano, da moralidade, da isonomia e da impessoalidade, há que aduzir-se que o termo constitucional ‘escolhido’ não significa ‘indicado’, ou o poder de indicar diretamente, donde se conclui que tanto o Legislativo quanto o Executivo não podem indicar diretamente os Conselheiros, pois do contrário a garantia de acessibilidade a qualquer cidadão estaria sendo violada, já que ao invés da universalidade do acesso estar-se-ia dando aplicação a regras de privilégio, violadora de princípio constitucional da isonomia e do próprio art. 37, CF.
Se qualquer brasileiro pode ser Conselheiro e a regra de acessibilidade ao serviço público é o concurso público (art. 37, CF), a interpretação elementar a extrair-se é que as vagas só poderiam ser preenchidas mediante tal concurso.
Mas a exigência de concurso público poderia sugerir a alguns que estaríamos diante de possíveis antinomias constitucionais, ou seja, da possibilidade da existência de normas inconstitucionais dentro da própria Constituição, teoria defendida por Otto Bachoff e também por Jorge Miranda, conforme já se observou.
Assim, o caminho a seguir é fazer uso dos métodos de solução de conflitos de normas, no caso de solução de normas constitucionais, seja através do princípio da ‘intepretação conforme’ seja pela declaração de ‘nulidade parcial sem redução de texto’ ou ainda através da aplicação do princípio da proporcionalidade ponderando-se princípios constitucionais que venham a conflitar-se, critério este defendido por inúmeros juristas como Luis Roberto Barroso, Ronald Dworkin, J. J. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Gustavo Zagrebelski, dentre outros.
Aplicando-se aos Tribunais de Contas normas supletivas do Poder Judiciário, há ainda que analisar-se o disposto no art. 94, da Constituição Federal e art. 95, da Constituição do Estado do Paraná, que reservam 1/5 dos lugares dos Tribunais para membros do Ministério Público, com mais de 10 anos de carreira e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de 10 anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes. Dessa lista, o Tribunal formará lista tríplice, enviando ao Executivo que escolherá um de seus integrantes para nomeação dentro do prazo de 20 dias.
Dessa forma, há um aparente conflito entre as normas que versam sobre o quinto constitucional e a forma de ingresso nos Tribunais de Contas, previstos nas Constituições Federal e Estadual, solucionável pelo critério da norma especial. Tal critério nos orienta que havendo norma especial regulando determinada situação, tal critério deve ser aplicado.
Assim, como compatibilizar a regra geral de acessibilidade ao serviço público (art. 37, CF), com o principio da isonomia, com o princípio do Estado Democrático e Social de Direito, com o art. 94 e art. 95, da Constituição Estadual e art. 77, § 2º, da Constituição do Paraná?.
Pela correta aplicação do art. 37, da Constituição Federal, especialmente a observância dos princípios republicano, da isonomia, da moralidade e da impessoalidade, normas jurídicas imperativas e vinculantes; pela correta aplicação da natureza jurídica desses cargos (servidores públicos), pelo critério da ‘interpretação conforme’ e da ‘nulidade parcial sem redução de texto’, conforme examinado por Lenio Luiz Streck (Jurisdição Constitucional), donde se extrai a conclusão de que impõe-se a aplicação da regra do concurso público, dando ampla aplicação à possibilidade de acessibilidade aos cargos públicos, rechaçando-se quaisquer espécies de privilégios e garantias de vagas.
Em assim não se entendendo, deve-se abrir publicamente as vagas a quaisquer interessados a integrar o Tribunal de Contas que preencha os requisitos constitucionais, cabendo ao Executivo e ao Legislativo apenas escolher dentre os mais capacitados.
12.Conclusão
Do exposto, conclui-se que quaisquer atos praticados com violação do princípio republicano, da isonomia, da impessoalidade e da moralidade administrativa são inconstitucionais, donde resulta inconstitucional a atual forma de ingresso dos Ministros e Conselheiros aos Tribunais de Contas, já que a forma nada mais representa que forma de apadrinhamento realizado pelo Executivo e pelo Legislativo, não se justificando regra de exceção de ingresso ao serviço público para o desempenho de cargos tão relevantes e vitalícios sem a observância da regra do concurso público.
Tais cargos deveriam ser desempenhados em forma de rodízio, por um período de 03 ou 04 anos, pelos próprios servidores dos Tribunais de Contas, concursados, que possuírem os requisitos técnicos e jurídicos exigidos pela Constituição da República, escolhidos em eleição democrática da qual participará todos os servidores do Tribunal que os indicará.
As listas triplas e sêxtuplas e o que elas representam – burla ao princípio da separação dos poderes – também não se mostra compatível com o princípio da imparcialidade e com a isenção de ânimo que os membros de cada Poder devem possuir para o bom desempenho de suas respectivas missões Institucionais.
Notas
01
Não se tem notícia de uma única prestação de contas de Governador de Estado desaprovada nos últimos anos.02
BARROSO, Luis Roberto. Ação Direta de Constitucionalidade nº 12 (ADC 12), cuja petição inicial está disponível no site www.stf.gov.br.03
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 20. ed. Malheiros Editores : 2002, p. 226 a 237.04
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo : Saraiva, 2005, p. 566.05
Ibidem, p. 569.06
Ibidem, p. 578.07
Ibidem, p. 580.08
Idem, p. 570.09
Ibidem, p. 575.10
MIRANDA, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Coimbra : Coimbra Editora, 1996, p. 31.11
BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais. Coimbra. Almedina, 1994, p. 40.12
Ibidem, p. 3.13
Ibidem, p. 11.14
Ibidem, p. 11.15
STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional : Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2002, p. 479.16
Idem, p. 477.17
Idem, p. 478.18
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 4ª ed. Coimbra. Coimbra Editora, 2000, p. 257-258.19
Ibidem, p. 258.20
Ibidem, p. 258.21
Ibidem, p. 259.22
CANARIS, Claus – Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 3ª ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.23
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.24
Ibidem, p. 479 e seguintes.25
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luis Afonso Heck. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 70-76.26
Op. cit. p. 267.27
SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional – Construindo uma Nova Dogmática Jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 137.28
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 20 ed. 2. São Paulo : Malheiros, 2005, p. 771.29
Ataliba, op. cit. p. 13.30
Ibidem, p. 34.31
GORDILLO, Agustín. Introducción al Derecho Administrativo. 2. ed. Abeledo Perrot, 1966, p. 176-177.32
Ibidem, p. 35.33
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Conteúdo jurídico do principio da igualdade. 3. ed. 10ª tiragem. São Paulo : Malheiros, 2002, p. 71.34
Ibidem, p. 71.35
ATALIBA, op. cit. p. 180.36
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. 2. tiragem. São Paulo : Malheiros, 2001, p. 38.37
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. 2. tiragem. São Paulo : Malheiros, 2001, p. 13.38
Idem, p. 15.39
Ibidem, p. 27.40
NOVAIS, Jorge Reis. ....