COMO LIDAR COM OS EXCESSOS DA LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO: DEVEMOS TOLERAR OS INTOLERANTES?

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Alguns comentários juridicos sobre os conflitos hermeneuticos entre a liberdade de expressão constitucionalemnte assegurada e os excessos tendentes a aniquilar este direito.

COMO LIDAR COM OS EXCESSOS DA LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO: DEVEMOS TOLERAR OS INTOLERANTES?

 

Por: Marcus Vinicius Macedo Pessanha

Advogado em São Paulo

Pós Graduado (lato senso) em Direito da Administração Pública pela UFF

Pós Graduado (lato senso) em Direito Empresarial pela UGF

Pós Graduado (lato senso) em Ciência Política pela UAVM

Mestrando em Ciências Jurídicas pela UAL-Lisboa/Portugal.

 

            Em uma situação de pandemia com quantidades alarmantes de infectados e mortos aumentando diariamente, a intensificação de disputas políticas em momentos notadamente inconvenientes, terminam por ofuscar medidas realmente necessárias sob os aspectos médico e sanitário.

            Dentre vários focos de protestos realizados durante um período em que o isolamento social se faz imprescindível, tem chamado especial atenção os ataques à imprensa e a liberdade de manifestação dos jornalistas.

            Pilar inafastável da democracia, a atividade destes profissionais se tornou o foco de discussões que levam a reflexões sobre o papel dos órgãos de comunicação em tempos de pós verdade, fake news e de fragilidade da convivência política em um cenário de radicalização da intolerância.

            Temos assistido constantes manifestações de parcelas da população cuja motivação é o retorno a um modelo repressor das liberdades individuais, com pautas como “intervenção militar já” ou “pela volta do AI-5”, o que nos leva a questionar se estes movimentos deveriam ser permitidos em um país que se pretende Democrático e de Direito como o Brasil, que possui uma Constituição Federal compromissória e garantista.

            Nossa carta política ao trazer largo rol de direitos e garantias fundamentais em seu art. 5º, pretende assegurar a proteção a livre manifestação de pensamento em seu inciso IV, bem como a proteção a liberdade de imprensa no art. 220, § 1º. Este arcabouço normativo erigiu um sistema de garantias publicas digno de nota, o qual se encontra sob ataque pela disseminação de ideias incompatíveis com os ideais democráticos e com a liberdade de manifestação e de imprensa.

            Estamos diante de um falso conflito entre a liberdade de imprensa, muitas vezes apelidada de “extrema imprensa” por parcelas radicais da sociedade e o excesso de tolerância próprio do sistema democrático, o que nos remete a algumas ideias registradas no famoso “paradoxo da tolerância”, estudado por Karl Popper, e a obra de Anthony Lewis denominada “liberdade para as ideias que odiamos”.

            Inicialmente temos que em sua obra, Lewis estuda o histórico de decisões da Suprema Corte relacionadas à Primeira Emenda da Constituição Norte Americana, onde se encontravam em jogo as liberdades de expressão e de imprensa. A premissa do autor é a de que a liberdade de ampla divulgação de ideias que contrariem parcelas da sociedade e a existência de diversas fontes de notícias, aprofundam o sentimento democrático do país.

            O foco de Lewis é a imprensa livre e a solução indicada como contrapartida para os abusos da imprensa é assaz interessante. À liberdade absoluta e irrestrita de imprensa interpõe o autor o direito fundamental de resposta, que se apresenta como sua dimensão-espelho. Em casos limite teremos processos de reparação de danos morais e patrimoniais, mas sem a repressão do direito à ampla divulgação pelos órgãos de imprensa.     

            Precisamos neste ponto refletir se em nosso sistema democrático essa seria a melhor maneira de encarar os graves problemas advindos da divulgação das chamadas “fake news” em uma época de hiper acesso à informação por meio da internet e das mídias sociais, tais como twitter, facebook e whatsapp. Uma solução para a divulgação em massa de notícias injuriosas que contemple somente a tutela dos interesses individuais dos envolvidos pode não atender ao interesse público nos casos concretos.

            No mesmo balaio encontramos os robôs, famosos bots das mídias sociais, que são programações autônomas que operam desempenhando tarefas pré-determinadas, tais como replicar milhares de mensagens nas redes sociais. Podem ser uteis para o dia a dia, mas podem também ser utilizados de maneira abusiva, manipulando a opinião pública, influenciando decisões em massa de pessoas e até mesmo alterando resultados de eleições.   

            A questão apresentada por Lewis foca basicamente a liberdade de imprensa em contrapartida com a liberdade, mas não é descabida uma análise em conjunto com algumas nuances dos estudos de Popper sobre a intolerância no convívio social, que tem tomado as ruas e locais públicos do Brasil e se acirra especialmente nas redes sociais.   

            Os estudos de Popper em seu livro “A sociedade aberta e seus inimigos” nunca fizeram tanto sentido, e algumas de suas nuances sobre os limites da permissividade na convivência coletiva são valiosas para a análise dos acontecimentos mais recentes.

            Seu famoso paradoxo da tolerância pode ser sintetizado na ideia de que “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos ilimitada tolerância mesmo aos intolerantes, se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância, com eles”. A ideia em suas linhas gerais não é complexa.

            As instituições democráticas, tais como os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes e harmônicos, bem como a liberdade de imprensa, são indispensáveis à plenitude do Estado Democrático, devendo ser preservados como forma de perpetuar os valores maiores da República.

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            Portanto a eclosão de eventos de ataques ao Supremo Tribunal Federal e ao Poder Legislativo, bem como o espancamento de jornalistas ou quaisquer outros oponentes ideológicos, traz um potencial abalo ao arcabouço civilizatório mínimo da democracia ocidental, tão duramente conquistado em revoluções tais como a francesa e a americana, cuja consolidação vemos ameaçada. Devemos então ser intolerantes com os intolerantes, coibindo tais manifestações?

            James Bohman na obra “Culture of Toleration in Diverse Societies” ao tratar dos limites da tolerância esclarece que estes são atingidos quando parte da sociedade tenta dominar os demais tornando suas visões a norma geral. A impossibilidade de um diálogo racional, neste ponto, se torna uma forma de intolerância inaceitável, e a estipulação de seus limites pode ser questionada por aqueles que se pretende excluir. 

            Talvez a melhor solução seja a indicada por Rawls ao analisar a questão em sua “Teoria da Justiça” ao esclarecer que a sociedade tem o direito razoável a sua autopreservação em cotejo com a tolerância aos intolerantes. Assim, uma sociedade tolerante deve agir com tolerância como standard de comportamento de seus cidadãos, mas o limite da tolerância é justamente o crescimento e a reiteração de condutas e pessoas que coloquem em risco as instituições democráticas e as liberdades públicas. Ou seja, o excesso de liberdade e de permissividade deve ser podado quando os próprios meios de garantir a segurança e as instituições públicas estiverem sob ameaça.    

            Façamos um diálogo possível entre Lewis, Rawls e Popper como exercício, considerando que a imprensa livre tem relacionamento estreito com a tolerância no âmbito da comunidade, e que estes estudos possuem o mesmo fundo axiológico: a liberdade.

            No Estado Democrático de Direito a divisão de funções entre os poderes se presta, entre outras finalidades, a dispersar e diluir o seu exercício do poder político evitando a sua concentração de maneira absoluta por somente um destes atores.  Desta forma, além de instrumento de racionalização da atividade administrativa, a tripartição se presta a assegurar o exercício democrático destas prerrogativas. O equilíbrio harmônico entre Legislativo, Executivo e Judiciário é primordial para a manutenção das liberdades públicas e para estabilidade social.

            Um cenário de crescente ebulição social com manifestações defendendo medidas autoritárias tais como “novo AI-5”, “fechamento do Congresso Nacional” e “intervenção militar”, dentre outras pautas notoriamente inconstitucionais, com ataques à imprensa, ao Supremo Tribunal Federal e ao Poder Legislativo, indica a reiteração de graves ameaças à democracia brasileira.

            Os entraves ao livre exercício do sistema de freios e contrapesos, natural ao relacionamento institucional harmônico entre os Poderes da República, tendem a um quadro de supressão de uma, ou mais de uma, das funções estatais. A este respeito é importante destacar que o sistema de governo presidencialista não se assemelha à monarquia, e as críticas oriundas dos órgãos e da imprensa fazem parte da normalidade democrática. O modelo tripartido busca garantir, portanto, as liberdades individuais em face da possibilidade de arbítrio do Estado oriundo da sua eventual hipertrofia.          

            A intensificação da intolerância às diferenças de pensamento, bem como as frequentes manifestações violentas acompanhadas de agressões às instituições democráticas colocam em risco a própria democracia.

            É até razoável em um debate marcado  pela pluralidade que o choque entre posições antagônicas não leve ao consenso político, mas a controvérsia não deve descambar para o dissenso agressivo e corrosivo do tecido social, como vem ocorrendo. Nem todos os danos causados à sociedade podem ser resolvidos pela indenização patrimonial.

            Devemos clamar “liberdade para as ideias que odiamos?” Certamente, mas não percamos de vista que nossas instituições públicas sob ameaça, em um cenário de intolerância generalizada, podem degenerar em uma democracia meramente formal, ineficaz e eternamente compromissária. O direito de resposta é o espelho da liberdade de expressão, contudo, uma vez estilhaçados, espelhos podem se tornar cacos inúteis que podem não ser colados.  

  

 

Sobre o autor
Marcus Vinicius Macedo Pessanha

Advogado especializado em Direito Público, Regulatório e Econômico com forte atuação em processos junto a Administração Pública Direta e Indireta, assim como junto ao CADE e ao TCU em assuntos envolvendo licitações e contratos administrativos, permissões e concessões de serviços públicos, parcerias público privadas, obras públicas e infraestrutura e contratações no regime diferenciado de contratação (RDC), nos setores de energia e transporte público. Formado na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2002, pós-graduado (especialização) em Direito da Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (2004), pós graduado (especialização) em Direito Empresarial e dos Negócios na UGF (2006), Extensão em Direito Contratual na Universidade Candido Mendes (2009), Extensão em Direito Urbanístico e Municipal na Universidade Cidade de São Paulo (2010), Extensão em aspectos regulatórios da navegação marítima brasileira no SINAVAL (2011). Pós Graduando em Ciência Política (especialização) nas Faculdades Integradas AVM.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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