O inc. IV do art. 600 do CPC dispõe que comete ato atentatório à dignidade da justiça o executado que não indica ao juiz onde se encontram os bens sujeitos à execução. O art. 601 do mesmo Código, por sua vez, prevê multa a ser fixada pelo juiz em montante não superior a 20% (vinte por cento) do valor atualizado do débito em execução, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material. Ainda segundo esse último dispositivo, essa multa se reverterá em proveito do exeqüente, podendo ser exigida nos autos da execução em que foi imposta.
Na verdade, como bem lembra o Ministro Teori Albino Zavascki [01], o inc. IV mencionado não trata de um ato, mas de omissão atentatória à dignidade da Justiça. Por esse motivo, aliás, deve-se lembrar que o legislador não cuidou apenas de condutas comissivas do devedor que extrapolam os limites do razoável na resistência à pretensão executória, pois que o inciso em comento prevê conduta omissiva.
Mas em que, realmente, consiste essa omissão?
Não há dúvida de que pratica conduta atentatória à dignidade da Justiça o devedor que silencia sobre a localização dos bens que ele mesmo indicou à penhora no prazo do art. 652 do CPC.
A controvérsia em torno dessa questão, a propósito, surge quando, a par de citado, o devedor nem mesmo indica bens à penhora, em que pese a existência de patrimônio passível de constrição.
Parte da doutrina defende, diante da interpretação conjugada do inc. IV do art. 600 do CPC com o art. 652 do CPC, que o detentor de bens penhoráveis que regularmente citado deixa transcorrer in albis o prazo de 24 horas deve sujeitar-se às penas do art. 601, porquanto a nomeação de bens constitui um dever, e não um ônus do executado. Nesse sentido é a doutrina do Professor Daniel Amorim Assumpção Neves, para quem:
(...) não se pode confundir o ônus que realmente tem o executado de se adiantar ao exeqüente e indicar um bem específico de seu patrimônio para ser penhorado com a não-indicação a ser feita nas 24 horas após sua citação. A descoberta futura de que havia bens a garantir o juízo quando realizada a citação é razão mais do que justificável para a condenação do executado omisso. Ora, é sabido que a procura dos bens é sempre um caminho longo, caro e acidentado para o exeqüente, e o que é pior, nem sempre chegando a um resultado eficaz. [02]
Também se poderia argumentar em favor desse entendimento que a inércia do devedor constitui falta ao dever de veracidade das partes no processo civil, bem como viola o princípio da probidade, que deve nortear a atuação de todos os que atuam no processo.
Pode-se alegar, ainda, em defesa dessa corrente, que o devedor só poderá ser beneficiado pelo princípio da menor onerosidade (art. 620 do CPC) se utilizar a benesse da indicação do bem de sua propriedade que menor gravame lhe trará ao ser penhorado. Ora, se o próprio executado não se preocupa em dirigir o processo da forma que melhor lhe aprouver, não se pode exigir isso do exeqüente ou do órgão jurisdicional.
A doutrina majoritária, no entanto, sustenta que não se pode atribuir ao texto do inc. IV do art. 600 um alcance que ele, infelizmente, não possui. Até mesmo porque ubi lex non distinguit, nec interpres distinguere (potest, debet). [03]O Professor Donaldo Armelin ensina, nesse passo, que:
a inovação legislativa poderia até ter sido mais ampla, com a modificação também do item IV desse art. 600, pois não atenta contra a dignidade da Justiça apenas a conduta do devedor que deixa de indicar o local em que se encontram os bens sujeitos à execução. Aquele que tendo bens passíveis de responderem pelo débito na execução e omite-se na sua indicação, também o faz. Mas o dispositivo de tal item, pela sua dicção, não alcança essa conduta, desvendando-se mais como direcionamento à execução para entrega de coisa. [04]
Na mesma direção aponta a doutrina do Ministro Teori Albino Zavascki, nestas palavras:
(...) o texto do inciso IV não permite que se confunda essa omissão do devedor com a falta de indicação de bens à penhora. Se o executado, apesar de possuir bens penhoráveis, deixa transcorrer em branco o prazo de vinte e quatro horas de que dispõe para nomeá-los (CPC, art. 652), a conseqüência será a preclusão da faculdade de proceder a indicação (que passa ao credor – CPC, art. 659), e não, necessariamente, um ato atentado à dignidade da justiça. [05]
A jurisprudência, por seu turno, acompanha amplamente a doutrina majoritária, em que pese à existência de respeitáveis precedentes que entendem constituir ato atentatório o silêncio do executado que não nomeia bens à penhora – apesar de possuí-los – no prazo de 24 horas após citado (vide RTJE 167/142, v.g.).
Consta da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios interessante aresto proferido em sede de agravo de instrumento [06] em que se discutiu a inclusão, em mandado de citação do executado, da advertência de que a não-indicação de bens à penhora no prazo do art. 652 do CPC constitui ato atentatório à dignidade da Justiça, nos termos do inc. IV do art. 600, sujeito às penalidades previstas no art. 601 do CPC. A Corte entendeu, nesse caso, que o transcurso das 24 horas após a citação sem a manifestação do devedor só enseja a incidência do art. 657, 2ª parte, do CPC, com o que se devolve ao credor o direito à nomeação. [07]
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, guardião da interpretação da legislação federal, caminha nesse mesmo norte. Precedente da lavra do Ministro Ruy Rosado de Aguiar indica que "do devedor, diante do processo de execução, exige-se passividade, para sofrer os atos forçados", razão pela qual "do só fato da existência da execução não surge para o devedor a obrigação de relacionar seu patrimônio penhorável, a fim de que o credor indique o bem de sua preferência para a penhora". [08]
Com razão o Superior Tribunal de Justiça! O ordenamento processual brasileiro não prevê a nomeação de bens à penhora como dever do executado, mas, sim, como um direito e um ônus processual, na lição do mestre Frederico Marques, segundo o qual "a nomeação de bens à penhora é um direito do devedor. Por isso, na ordem que se contém no mandado executivo deve estar expresso que se o executado não fizer o pagamento, cabe-lhe efetuar a escolha dos bens a serem penhorados". [09]
Pode-se afirmar, diante dessa realidade, que a legislação processual brasileira constitui desonrosa exceção ao deixar de prever a obrigação do executado de arrolar todo o seu patrimônio passível de penhora quando decide não pagar o valor executado após intimado.
Os §§ 807 e 883 da Zivilprozessordnung alemã previam a figura da offenbarungseid (declaração juramentada). Por meio desse instituto processual, exigia-se que o devedor arrolasse todos os seus bens passíveis de constrição judicial com o objetivo de garantia da dívida excutida.
A offenbarungseid foi posteriormente substituída pelo instituto denominado uneidliche Vermogensversicherung (declaração não juramentada relativa ao patrimônio do executado).
Atualmente, a imposição legal do executado em nomear os seus bens passíveis de constrição se subsume, no direito alemão, na eidesstattliche versicherung [10] (juramento de manifestação), por meio do qual o devedor é convocado para uma audiência pessoal na qual é obrigado a fornecer informações sobre os seus bens, sob pena de prisão de até seis meses. [11]
Figura semelhante à eidesstattliche versicherung é encontrada no civil procedure dos Estados Unidos da América. Lá, após a comprovação de que o sheriff não localizou bens do devedor, este se submeterá à examination under oath (espécie de inquirição) para revelar quais são e onde se encontram os seus bens passíveis de constrição. O executado deve indicar, além disso, todas as propriedades que foram transferidas ou desapareceram do seu acervo patrimonial, quaisquer que tenham sido os motivos que levaram a essa realidade. [12]
Observa-se, outrossim, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos da América, que o contempt of court pode acarretar até na prisão do devedor que se recusa a informar quais sãos os seus bens aptos a suportar a execução. [13]
"Na França, a função de investigar o paradeiro dos bens do devedor, levantando todas as informações, mesmo aquelas acobertadas pelo sigilo, é atribuída ao Ministério Público". [14] De fato, a Lei n. 91/650 preconiza o dever do executado de nomear todos os seus bens passíveis de penhora ao pôr à disposição do Procurador da República o Huissier de Justice, instrumento legal por meio do qual se obtêm informações sobre a realidade patrimonial do devedor, ainda que, para isso, seja preciso vasculhar contas bancárias e informações submetidas ao sigilo fiscal, por exemplo.
O Professor Leonardo Greco lembra, ainda, que:
na Espanha, a partir da Lei de 6 de agosto de 1984, a falta de indicação de bens suficientes pelo devedor permite ao juiz, a requerimento do exeqüente, investigar a situação patrimonial do devedor, através de ofícios a todo tipo de registros públicos, organismos públicos e instituições financeiras, para que enviem a relação de bens do devedor de que tenham conhecimento (LEC, art. 1455). [15]
Como se vê, prevalece no direito processual civil francês e espanhol a idéia de que o Estado tem o dever de oferecer ao credor todas as informações sobre o patrimônio do devedor.
Deseja-se que a legislação brasileira caminhe no mesmo rumo. Espera-se que um dia não mais se exija que o exeqüente esgote todos os meios para tentar localizar bens do executado passíveis de constrição para que o Estado atue de forma eficiente e célere com o objetivo de assegurar o direito do credor.
De lege ferenda, seria perfeitamente possível estabelecer em nosso sistema processual executivo a atuação do Estado de forma eficiente e célere de modo a assegurar o direito do credor, a quem cumpre, no atual sistema jurídico, esgotar sozinho – e muitas vezes de forma frustrada – todos os meios para localizar bens do executado passíveis de constrição.
Não é demais lembrar, por oportuno, que tramita na Câmara dos Deputados projeto de lei para alterar a redação do inc. IV do art. 600 do CPC, dentre outros dispositivos. Trata-se do PL 4.497/2004, de autoria do Poder Executivo e de iniciativa do Instituto Brasileiro de Direito Processual, sob a coordenação final dos processualistas Athos Gusmão Carneiro, Sálvio de Figueiredo Teixeira e Petrônio Calmon Filho. Pretende-se atribuir o seguinte texto à disposição em comento: "Art. 600. Considera-se atentatório à dignidade da Justiça o ato do executado que:.. ..... IV – intimado, não indica ao juiz, em cinco dias, quais são e onde se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores".
Essa nova redação, por certo, trará significativa melhora na busca por uma execução efetiva.
Por ora, contudo, a interpretação restritiva atribuída ao inc. IV do art. 600 do CPC se afigura como a melhor, diante do texto em vigor.
Pode-se concluir, a propósito, que o dispositivo examinado se aplica, na prática, à execução de obrigação de entrega de coisa em que o objeto da pretensão se encontra em poder do executado, como leciona o Ministro Teori Albino Zavascki. [16]
De se destacar, por fim, que a Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005, que estabeleceu a fase de cumprimento das sentenças no processo de conhecimento e revogou dispositivos relativos à execução fundada em título judicial, incluiu o art. 475-J no CPC, cujo caput possui a seguinte redação:
Art. 475-J. Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação.
Como se vê, a partir de junho de 2006, quando referida lei entrará em vigor, o devedor inerte sofrerá uma pena correlata à atualmente prevista no art. 601 do CPC, caso não pague espontaneamente a quantia que sabe ser devedor no prazo de quinze dias.
Além disso, de acordo com o § 3º desse mesmo art. 475-J, o exeqüente não terá mais que esperar pela inércia do devedor para poder indicar bens à penhora, podendo antecipar-se a qualquer iniciativa do devedor nesse sentido.
Nota-se, portanto, que o legislador, ao tentar desprestigiar a inércia do devedor, contribuiu para que as seguintes palavras do Professor Alfredo Buzaid, proferidas há 33 anos, deixem de ser atuais: "a execução se presta a manobras protelatórias, que arrastam os processos por anos, sem que o Poder Judiciário possa adimplir a prestação jurisdicional". [17]
Para tanto, contudo, várias outras mudanças se fazem necessárias. Enquanto o Estado não atuar como parceiro do credor para que o devedor cumpra a sua obrigação, as alterações analisadas surtirão pouco efeito prático, porque multa nenhuma impedirá quem simplesmente decide não pagar o que deve, diante dos inúmeros subterfúgios ainda disponíveis.
Notas
01
ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 8. São Paulo: RT, 2000, p. 312.02
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Ato atentatório à dignidade da Justiça (arts. 600 e 601 do CPC). In: RIBEIRO Hélio Rubens Batista; REZENDE RIBEIRO, José Horácio Halfeld; DINAMARCO, Pedro da Silva (Coordenadores). Linhas mestras do processo civil: comemoração dos 30 anos de vigência do CPC. São Paulo: Atlas, 2004, p. 122.03
Onde a lei não distingue, nem o intérprete deve distinguir.04
ARMELIN, Donaldo. O processo de execução e a reforma do Código de Processo Civil. Em: Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 701.05
ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 8. São Paulo: RT, 2000, p. 312.06
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, 1ª Turma Cível, Relator Desembargador Roberval Casemiro Belinati, AGI n. 2004.00.2.006860-4, julgado em 16.5.2005, publicado no DJU do dia 2.8.2005, p. 85.07
Nesse mesmo sentido a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: 2ª Câmara Especial Cível, Relator Desembargador Nereu José Giacomolli, Agravo de instrumento n. 70004699013, julgado em 28.10.2002; 2ª Câmara Cível, Relator Desembargador Arno Werlang, Agravo de instrumento n. 70005372933, julgado em 30.4.2003. Ainda no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios: 1ª Turma Cível, Relator Desembargador Edmundo Minervino, AGI 875397, julgado em 22.6.1998, publicado no DJU do dia 30.9.1998, p. 137.08
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, REsp 152.737 – MG, julgado em 10.10.1997, publicado no DJU do dia 30.3.1998. Nesse mesmo sentido acórdão da lavra do saudoso e inesquecível Ministro Franciulli Netto nos autos do REsp 511.445 – SP, 2ª Turma, julgado em 10.8.2004, publicado no DJU do dia 8.11.2004.09
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. V. 5. Campinas: Editora Millennium, 1999, p. 164.10
JAUERNING, Othmar. Zwangsvollstreckungs und Konkursrecht. 16. ed. München: C.H. Beck Verlag, p. 123, apud ARMELIN, Donaldo. O processo de execução e a reforma do Código de Processo Civil. in Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 701.11
Greco, Leonardo. A reforma do processo de execução. Revista Forense. Volume 350. (abril, maio e junho). Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 77. O texto desse trabalho resultou de Conferência proferida na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para aprovação no Concurso Público de Títulos e Provas para Professor Titular de Direito Processual Civil do Departamento de Direito do Estado.12
FRIEDENTHAL, Kane and Miller. Civil Procedure. 2nd. Edition. Saint Paul: West Publishing, 1993, pp. 714/715.13
SOARES, Guido Fernando Silva. Commom Law: Introdução ao direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 123-124.14
GRECO, Leonardo. A execução e a efetividade do processo. Revista de processo, ano 24, n. 94, abril-junho de 1999, p. 45.15
Op. cit., p. 77.16
Op. cit., p. 313.17
Exposição de motivos do CPC, n. 18.