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A história da tortura

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10/06/2006 às 00:00
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2.Tortura no Brasil

            A sociedade brasileira na época colonial era de cunho escravista, onde a crueldade perpetrada, principalmente, em relação aos negros, era enfocada como algo natural, porquanto estes eram considerados serem sub-humanos, destinados à produção agrícola e de minérios [44].

            Os índios, como regra, sofreram menor opressão, pois receberam relativa proteção da Igreja.

            Ao tempo do Brasil colônia, vigoraram as Ordenações Afonsinas (datadas de 1446), Manoelinas (de 1521) e Filipinas (de 1603), estas últimas sendo as que realmente influíram no país, mesmo depois da Independência.

            De acordo com Mário Coimbra,

            mesmo no Brasil Império, com a elaboração da Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, onde se aboliram os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis, se continuou a supliciar os escravos. Assim, o Código Criminal do império de 1830, esculpido sob o espírito liberal, dispunha, no seu artigo 60, que, quando se tratasse de acusado escravo e que incorresse em pena que não fosse a de morte ou galés, deveria receber a reprimenda de açoites e, após entregue ao seu proprietário, para que este inserisse um ferro em seu pescoço pelo tempo que o juiz determinasse [45].

            Assim, a Carta de 1824 trouxe diversos princípios de direitos humanos, abolindo a tortura para os considerados cidadãos brasileiros, mas os negros continuam sofrendo com os tormentos até 1888, ano marco da extinção oficial da escravidão. O Código Criminal de 1832 baniu o sistema inquisitorial e adotou o acusatório, declarando expressamente que a confissão deveria ser livre e estar sustentada em outras provas.

            A proclamação da República, apesar de pautar-se em idéias inegavelmente relacionadas a liberdades públicas, não alterou esse panorama. Os movimentos dissidentes à então elite governante, como o de Canudos, recebiam tratamentos muito violentos e a tortura seguiu seu caminho com igual força também nesse período.

            Com o estabelecimento do Estado Novo, em 1937, e a implantação da ditadura getulista, que duraria até 1945, a tortura ganhou contornos e regulamentação institucionais.

            Com o fim desse período obscuro de nossa história, a tortura passa a ser feita às escondidas, perdendo apenas seu caráter institucional.

            Em 1964 chegam, via revolução, os militares ao poder, e

            a tortura institucional passou a ser um poderoso instrumento a serviço dos detentores do poder, a fim de que pudessem obter das vítimas supliciadas informações relevantes, para a total extirpação dos opositores políticos. Ademais, sob o manto da barbárie instalada pelo governo militar, que perdurou por vinte anos, um dos generais, mediante intensa propaganda veiculada em todos os meios de comunicação, conseguiu dar um toque de romantismo na total suspensão das liberdades públicas, com o slogan ‘Brasil: ame-o ou deixe-o’ [46].

            E segue Mário Coimbra explicando:

            Para que o trabalho desenvolvido por tais grupos de opressão atingisse o fim almejado, foram criados, aproximadamente, duzentos e quarenta e dois centros secretos de detenção, muitos deles mantidos, diretamente, pelas Forças Armadas, como o DOI-CODI (Departamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna) e o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que efetuava investigações políticas no plano estadual [47].

            A tortura, ao longo dos séculos, tem sido utilizada contra os considerados "desclassificados sociais"; nessa época, entretanto, surge o fenômeno da tortura contra opositores políticos. Nessa época, o "mal" a ser atacado era o comunismo, cuja extirpação era o fim que justiçava os meios.

            O papel da tortura nesse período é diverso do que registrara a História em outros momentos, pois, conforme bem assinala Cecília Maria Bouças Coimbra,

            (...) diferentemente da Inquisição, não é ela que absolve e redime o torturado. Ela, inclusive, não é garantia para a manutenção da vida; ao contrário, muitos após terem ‘confessado’ foram – e continuam sendo – mortos e desaparecidos. Além disso, tem tido como principal papel o controle social: pelo medo, cala, leva ao torpor, a conivência e omissões [48].

            No final de 1968, pressionado pela crescente oposição, o regime militar assumiu poder ditatorial total, através do infame Ato Institucional nº 5, que inaugurou o governo Médici (que duraria até 1974). O Congresso Nacional foi fechado e a tortura virou política oficial do Estado brasileiro.

            Elio Gaspari, via relatos pessoas e documentais do período, nos descreve a vergonhosa e conhecida "aula de tortura", dada em dezembro de 1969, pelo então tenente Ailton Joaquim a oficiais do Exército no quartel da Vila Militar no Rio de Janeiro, momento em que, segundo o autor, a ditadura deixa de se envergonhar de si própria.

            Assim,

            os presos foram enfileirados perto do palco, e o ‘tenente Ailton’ identificou-os para os convidados. (...) Com a ajuda de slides, mostrou desenhos de diversas modalidades de tortura. Em seguida os presos tiveram de ficar só de cuecas [49].

            Um deles receberia choques elétricos:

            Depois de algumas descargas, o tenente-mestre ensinou que se devem dosar as voltagens de acordo com a duração dos choques. Chegou a recitar algumas relações numéricas, lembrando que o objetivo do interrogador é obter informações e não matar o preso [50].

            Outro preso, segue o autor, foi submetido ao esmagamento dos dedos com barras de metal. Um terceiro apanhou de palmatória nas mãos e na planta dos pés. O tenente explicava aos "alunos" que "a palmatória é um instrumento com o qual se pode bater num homem horas a fio, com toda a força". [51]

            Pendurando ainda um outro no pau-de-arara, o tenente explicou - enquanto os soldados demonstravam – que essa modalidade de tortura ganhava eficácia quando associada de palmatória ou aplicações de choques elétricos, cuja intensidade aumenta se a pessoa está molhada [52].

            Citado pelo ilustre jornalista, finaliza o tenente-professor: "Começa a fazer efeito quando o preso já não consegue manter o pescoço firme e imóvel. Quando o pescoço dobra, é que o preso está sofrendo". [53]

            Os relatos de tortura que poderíamos aqui reproduzir são infindáveis, e alguns serão mencionados ao longo do trabalho.

            Um ex-diretor de um órgão de informações no governo Médici explica que

            (...) não é segredo para ninguém, que os agentes dos órgãos de segurança recebiam prêmios mensais muitas vezes superiores a seus salários oficiais. E esses prêmios eram ainda mais reforçados quando ocorria a eliminação de algum dirigente subversivo considerado particularmente perigoso [54].

            E segue dizendo que

            você pode descobrir por si mesmo quem foram os grandes financiadores e beneficiários da tortura. Basta procurar identificar as grandes fortunas que se fizeram naquele período, de forma fácil e aparentemente inexplicável [55].

            De acordo com Antonio Carlos Fon,

            não apenas empresários, nacionais ou estrangeiros, (...) participaram do esforço para a montagem e manutenção dos órgãos onde se praticava a tortura. Além deles, diversas organizações de extrema-direita, como a TFP, Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (...) ou até mesmo religiosos e católicos conservadores justificaram ou participaram de torturas. (...) Até mesmo alguns governos estrangeiros participaram, através do fornecimento de equipamento ou instrutores, das atividades dos órgãos de repressão política [56].

            Tais relatos falam principalmente em norte-americanos, sul-coreanos, sul-africanos e portugueses.

            A tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog, chefe de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, no dia 25 de outubro de 1975, nas dependências do CODI-DOI do II Exército, após apresentação voluntária para depoimento, teve repercussão inesperadamente grande para os inquisidores, que queriam apenas atingir escalões mais altos da administração estadual.

            Na época, a polícia divulgou uma foto, tentando convencer a opinião pública de que ele havia se suicidado. A notícia de sua morte não foi divulgada na televisão, mas apareceu nos  jornais e milhares de pessoas se reuniram na praça  da Sé para protestar contra o assassinato.

            De acordo com Jaques de Camargo Penteado,

            vencido o estágio que privilegiava o mais forte e conquistada a solução de conflitos com a neutralidade que promove a confiança na autoridade, ficou realçado que não basta um procedimento legal para pôr fim às controvérsias, mas é imprescindível uma forma justa de realização da paz social. (...) A preservação do homem exige que a ciência do Direito utilize todos os seus instrumentos para vedar a tortura. A condenação de um culpado baseada em prova obtida mediante tortura é a condenação da própria justiça. (In: Justiça nº 5, 1997, prefácio)

            A realidade do nosso país com relação ao tema segue alarmante, escondida nos porões de delegacias e outros locais de acesso a poucos, mas com o conhecimento de muitos;

            não se trata, portanto, apenas de omissão, conivência e/ou tolerância por parte das autoridades para com tais questões, mas de uma política silenciosa, não falada, que aceita e mesmo estimula esses perversos procedimentos [57].

            Hoje, a idéia de "inimigo interno" não é mais dos opositores políticos, mas dos miseráveis. Como não é mais possível ignorá-los (porque em número espantoso), é preciso, pensa-se, fortalecer as políticas de segurança pública militarizada. É a cultura do medo, que deságua em movimentos como o da Lei e Ordem, que defende a adoção de política criminal radical, o endurecimento de penas, o corte de direitos e garantias fundamentais, o agravamento da execução, bem como a tipificação inflacionária de novas condutas desviantes.

            O retrocesso à Lei de Talião e à imposição da pena capital para muitos se apresenta como solução.

            É até mesmo possível concluir que

            a tortura é uma prática social solidamente incorporada à nossa tradição cultural, com a única diferença de que é tolerada, muitas vezes exigida, amparada culturalmente, a depender do perfil daqueles que serão vitimados. Há certos segmentos, certos grupos, sobre os quais a prática da tortura não oferece qualquer tipo de constrangimento público [58].

            A verdade é que a tortura só é um horror se atinge "um dos nossos". Isso explica um sem número de casos registrados (quando o são) apenas como lesões corporais ou abusos de autoridade.

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            Essa tradição cultural contamina, sem dúvida, também nossas instituições, cujo fortalecimento começa a dar os primeiros passos.

            Para Elzira Vilela, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo, a tortura institucionalizada pela ditadura militar hoje só mudou seus alvos, pois para ela:

            O modo de agir dos integrantes da ditadura, o arbítrio, a violência que se dirigia contra os opositores do regime passa a se voltar contra a população mais pobre, negra, analfabeta, que se concentra sobretudo nas favelas, cortiços e periferias das cidades. A ação dos agentes de segurança é discriminatória e depende da pessoa contra qual ela é dirigida". [59]


BIBLIOGRAFIA

            BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

            CHINELLI, Ana Paula; VITURINO, Robson. Dedo na ferida. Superinteressante. São Paulo, nº208, p. 54-59, dez. 2004.

            COIMBRA, Cecília Maria Bouças; ROLIM, Marcos. Tortura no Brasil como herança cultural dos períodos autoritários. Revista CEJ. Brasília, nº14, ago. 2001.

            FARIAS, Maria Eliane Menezes de. Por uma maior eficácia no combate à tortura. Revista CEJ. Brasília, n. 14, p. 73-77, ago. 2001.

            FON, Antonio Carlos. Tortura: a história da repressão política no Brasil. 6. ed. São Paulo: Global, 1981.

            GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

            GOMES, Hélio. Medicina Legal. 33. ed., revista e ampliada. Atualizador Dr. Hygino Hercules. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003.

            GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993.

            GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. Tortura e prova no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2002.

            MACHADO, Nilton João de Macedo; VIDAL, Luís Fernando Camargo de Barros; GOMES, Luiz Flávio. A eficácia da lei de tortura: aspectos conceituais e normativos. Revista CEJ. Brasília, n. 14, p. 14-32, ago. 2001.

            SZNICK, Valdir. Tortura: histórico, evolução, crime. São Paulo: Leud, 1998.

            VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. Tradução de Federico Carotti. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


Notas

            01

In: VERRI, 2000, p. VIII.

            02

Apud MOURA, 2003, p. 27.

            03

1998, p. 14.

            04

Ibid.

            05

Ibid. p. 20.

            06

COIMBRA, 2001, p. 14.

            07

Ibid.

            08

Ibid.

            09

SZNICK, 1998, p. 21.

            10

COIMBRA, 2002, p. 16/17.

            11

1998, p. 22.

            12

1993, p.32.

            13

COIMBRA, 2002, p. 18.

            14

Ibid.

            15

2000, p. 106.

            16

Ibid. p. 106/107.

            17

GOULART, 2002,p. 24.

            18

MACHADO; VIDAL; GOMES, 2001, p. 16.

            19

BETTENCOURT, Pe. Estevão Tavares. In: GONZAGA, 1993, págs. 11-12.

            20

Apud ibid.

            21

In: GOMES, 2003, p. 485.

            22

GONZAGA, 1993, pág.23.

            23

Ibid., pág.24.

            24

BETTENCOURT, Pe. Estevão Tavares. In GONZAGA, 1993, pág15.

            25

2002, pág. 26.

            26

2000, p. 80.

            27

1993, p.17-18.

            28

Ibid., p.19.

            29

2000, p.102.

            30

1993, p.20.

            31

Ibid., p.49.

            32

GONZAGA, 1993, p.114.

            33

2002, p. 75.

            34

COIMBRA, 2002, p. 76.

            35

Ibid., p. 83.

            36

1997, p.69.

            37

In: VERRI, 2000, p. XVII.

            38

Apud DALLARI, Dalmo de Abreu. In VERRI, 2000, p. XIX

            39

Apud CHINELLI, 2004, p.57.

            40

CHINELLI, 2004, p. 59.

            41

FARIAS, 2001, p. 75.

            42

CHINELLI, 2004, p.57.

            43

Ibid., p. 56.

            44

COIMBRA, 2002, p. 149-150.

            45

Ibid, p.152.

            46

COIMBRA, 2002, p. 156.

            47

Ibid.

            48

COIMBRA; ROLIM, 2001, p. 07.

            49

GASPARI, 2002, p. 361.

            50

Ibid..

            51

Ibid., p. 362.

            52

Ibid.

            53

Ibid..

            54

Apud FON, 1981, p. 56.

            55

Ibid., p. 59.

            56

Ibid., p. 60.

            57

COIMBRA; ROLIM, 2001, p. 06.

            58

Ibid., p. 11-12.

            59

2004.
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Sobre a autora
Daniza Maria Haye Biazevic

promotora de Justiça em Minas Gerais, pós-graduada em Direito Processual Penal pela Escola Paulista de Magistratura

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIAZEVIC, Daniza Maria Haye. A história da tortura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1074, 10 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8505. Acesso em: 23 dez. 2024.

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