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Sobre as Declarações Norte-Americanas de Direitos: da Declaração da Virgínia à Declaração de Independência

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07/09/2025 às 19:22
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A Declaração da Virgínia inaugurou os direitos naturais, a soberania popular e os limites ao Estado. Como esse jusnaturalismo orientou a Constituição dos EUA e o controle de constitucionalidade?

Ao meu reverenciado Professor Dr. Friedrich Müller.


1. Introdução

No contexto histórico revolucionário e de consolidação de um novo modelo de organização política, as Declarações de Direitos norte-americanas — iniciando pela mais emblemática, a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, de 12 de junho de 1776, elaborada inicialmente por George Mason — abordavam o problema dos direitos e liberdades na relação entre Estado e indivíduo em um cenário menos complexo do que o da realidade social da Revolução Francesa1.

Todavia, apresentavam um pluralismo marcante e um grau de agitação e intranquilidade social superior à imagem quase idílica que, por vezes, se constrói retrospectivamente. Essa situação tornou-se particularmente evidente a partir de 1765, com a aprovação do Stamp Act (Lei do Imposto do Selo), posteriormente rejeitado pelas colônias na Convenção de Nova York, em razão de se considerar o Parlamento inglês incompetente para impor tributos sem a anuência das assembleias coloniais.

Na sua essência, a Declaração de Direitos da Virgínia não foi o primeiro texto a inaugurar o constitucionalismo moderno no contexto da Revolução Americana. Antes dela, já existia a Constituição de New Hampshire, de 5 de janeiro de 1776, que instituiu o “governo civil para esta colônia”, e a Constituição da Carolina do Sul, de 26 de março de 1776, aprovada sob a justificativa de que o monarca inglês havia violado “as mais solenes promessas e compromissos e descumprido todas as obrigações de honra, justiça e humanidade”.

Todavia, ambos os textos ainda conservavam, sob o prisma substancial, conotações tradicionais relativas à organização do poder, embora possam ser considerados, do ponto de vista formal, representativos das primeiras constituições escritas.


2. A Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia: su subresaliente influência.

Concentrando-se mais especificamente nas Declarações de Direitos norte-americanas, observa-se que estas acolhiam, conforme os conceitos difundidos entre os constituintes, os mesmos direitos naturais, invioláveis, inalienáveis e imprescritíveis do cidadão. Em linhas gerais, correspondiam às teorias do jusnaturalismo individualista de John Locke e, sobretudo, de William Penn — “great and primary rights” —, mas também revelavam notável influência, entre outros, de Samuel Pufendorf e de Christian Wolff2. Partia-se da premissa de que tais direitos não eram criados pelo constituinte, mas simplesmente declarados por meio dele, delineando, assim, a fisionomia política e social das constituições subsequentes, que promoveram a instauração de um novo regime de caráter liberal-democrático, favorável a maior grau de homogeneidade e integração social3.

De acordo com a síntese dos conceitos filosóficos e políticos que as inspiraram, tais Declarações concebiam os direitos como racionais e primários do indivíduo4, isto é, de caráter natural, inato, absoluto e eterno. A sociedade política apenas lhes conferia reconhecimento e proteção. Eram, prima facie, espaços de imunidade e liberdade considerados “naturais”; em outras palavras, pertencentes a um Direito da natureza, independente daquele elaborado pelos homens e, em efeito, mais elevado e supra-ordenado5. O Preâmbulo da Virginia Declaration of Rights de 1776 os qualificava como a “basis and foundation of Government”. Fica evidente a relação direta da Declaração da Virgínia com esses ideais, expressos de modo simultaneamente mítico e racional, o que o tempo confirmou, aspecto suficientemente demonstrado, não sendo necessário, por razões de coerência, insistir mais sobre ele neste ponto6.

Segundo Fábio Konder Comparato, o artigo 1º da Declaração que o “bom povo da Virgínia” tornou pública em 16 de junho de 1776 constitui o registro de nascimento dos direitos humanos na História. É o reconhecimento solene de que todos os homens são igualmente vocacionados, pela sua própria natureza, ao aperfeiçoamento constante de si mesmos. A “busca da felicidade”, repetida na Declaração de Independência dos Estados Unidos duas semanas depois, é a razão de ser desses direitos inerentes à própria condição humana: uma razão imediatamente aceitável por todos os povos, em todas as épocas e civilizações; uma razão universal, como a própria pessoa humana7.

Importava, sobretudo, o caráter antiestatista e individualista desses direitos, pois não foram concebidos como um acréscimo, mas como direitos naturais e inatos do indivíduo, considerando sua condição de membro de uma comunidade. Neste sentido, manifesta-se Christian Starck, para quem esse caráter ainda se revela em suas próprias expressões linguísticas, como na fórmula: “os representantes do Bom Povo da Virgínia, reunidos em livre assembleia, declaram os direitos que lhes pertencem e a seus descendentes, apontando-os também como a base do governo (1776)”. Do mesmo modo, “o povo dos Estados Unidos promulga sua Constituição, entre outras coisas, para estabelecer a justiça, assegurar a paz doméstica, promover o bem-estar geral e garantir para si e seus descendentes as bênçãos da liberdade (1787)”8.

Considerando esta linha de princípios, os representantes do Bom Povo da Virgínia afirmaram, sobre si mesmos, estar reunidos em uma “Convenção plena e livre, como direitos que lhes pertencem, a eles e a sua posteridade, como a base e o fundamento de seu governo”. Por sua vez, o primeiro artigo da Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia reflete essas ideias de direitos humanos naturais e universais (certamente ancoradas em princípios jusnaturalistas e cristãos), que permanecem, como foi indicado, apesar da entrada no estado de sociedade, ao instituir de forma categórica e com termos expressivos:

“Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inerentes, dos quais, quando entram em um estado de sociedade, não podem, por qualquer pacto, privar ou despojar seus descendentes, a saber: o gozo da vida e da liberdade, juntamente com os meios de adquirir e possuir propriedade, e o direito de procurar e alcançar a felicidade e a segurança.”

A Declaração, assim como as demais homólogas norte-americanas, exige distinguir entre o conteúdo de “fundamentalização” ou “jusnaturalização” e aquilo que nelas há de “constitucionalização”. Com as suas congêneres francesas, compartilharam apenas o período de “jusnaturalização”, mas não — ao menos de forma plena — o de constitucionalização9, uma vez que, corretamente, não se evidenciava tensão entre Direito natural e Direito positivo.

Talvez as ideias jusnaturalistas tenham encontrado sua via fundamental de penetração através dos escritos de John P. Wise, que, por sua vez, foi fortemente influenciado por Samuel Pufendorf, a quem reconhecia como fonte primária e guia no tratamento da Lei natural, tema abordado em sua principal obra A Vindication of the Government of New-England Churches. Segundo Wise, no estado de natureza, o homem é livre, sujeito apenas a si mesmo, e só se torna parte da comunidade a fim de proteger melhor sua liberdade e igualdade natural. A esse pacto de união segue-se o pacto de fixação, estabelecido com aqueles que recebem a soberania como depositários, obrigados à manutenção da paz e do bem-estar comum. Por sua vez, os indivíduos assumem a obrigação de obedecer fielmente, desde que o governo permaneça submetido à Lei. Destaca-se, igualmente, a recepção das ideias jusnaturalistas-racionalistas de Jean-Jacques Burlamaqui, difundidas por James Wilson, bem como a insistência de Jonathan Mayhew nos ideais democráticos relacionados à afirmação da liberdade individual e aos limites da autoridade dos governantes10.

A nuance diferenciadora da Declaração da Virgínia em relação a seus predecessores, antes mesmo de retomar o ponto anterior, consistia em seu caráter pioneiro ao limitar o poder do Estado de forma sistemática, enquanto os textos anteriores — a partir da emblemática data de 1620, destacando-se o Massachusetts Body of Liberties, de dezembro de 164111 — buscavam essencialmente restringir os poderes do soberano em questões coloniais, evitando arbitrariedades e garantindo a proteção de liberdades tradicionais do direito inglês, que, aos poucos, foram perdendo relevância. De todo modo, é importante lembrar que a ideia de aliança (Covenant ou Compact), como fundamento da organização social e política da comunidade, precede, inclusive, a chegada dos primeiros puritanos à costa dos Estados Unidos.

Na verdade, em 11 de novembro de 1620, a bordo do navio que os transportava, os chamados Pilgrim Fathers (Pais Peregrinos) estipularam o Mayflower Compact, batizado com o nome do navio no qual cruzaram o Atlântico até Cape Cod, onde foi assinado, e que passou a reger a colônia de Plymouth (em memória do porto inglês de onde partiram, e que, em 1691, foi incorporada à colônia de Massachusetts):

“Em nome de Deus, amém (...) estes, solenemente e mutuamente, na presença de Deus e uns com os outros, constituem Convenção e unem-se em um corpo político civil para nossa mais elevada ordem, preservação e promoção dos fins acima. E, em virtude disso, estabelecem, aprovam e constituem leis, portarias, atos, constituições e cargos justos e igualitários, de tempos em tempos, conforme julgados mais adequados e convenientes ao bem-estar geral da Colônia; a cuja obediência e submissão todos prometemos.”

A partir desse ponto, surgiram inúmeras interpretações do texto. Ultimamente, na historiografia americana, tem prevalecido a compreensão de que a ideia subjacente seria a do Pacto da Graça, estabelecido com base na passagem bíblica que relata a aliança de Deus com Abraão (Gn XVII): o fundamento da autoridade remonta a Deus, que aqui aparece como ponto de partida indiscutível. Assim, por meio do Pacto da Graça, a vontade divina atua através dos homens, que, ao constituírem voluntariamente a comunidade, confiam o exercício do poder a governantes entendidos como seus depositários.

O Pacto da Graça, transposto para a arena política, legitima a vontade dos homens, porque estes seriam instrumentos da vontade de Deus em sua realização. Eventualmente, o Pacto da Graça como fundamento do contrato social americano acentua um perfil substancialmente distinto daquele construído pela maioria das teorias contratualistas próprias do jusnaturalismo europeu: partindo, quase imperceptivelmente, de uma premissa teocrática, opera-se uma transição em direção a uma concepção democrática de sociedade e de poder, reconhecendo o princípio da igualdade e o sufrágio universal. Como observou Pedro de Vega, em consonância com a tradição puritana, a fundação de congregações religiosas livres ocorria consensualmente mediante contrato assinado por todos os membros, que estabelecia regras de culto e elegia um pastor. De modo semelhante, os colonos americanos acreditavam que algumas colônias poderiam organizar-se livremente em comunidade política por meio de um pacto fundador, o qual assumiria o caráter de verdadeiro pacto social12.

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Partindo das ideias anteriormente expostas, compreende-se o significado especial da Declaração da Virgínia, que, portanto, também deve ser considerada em conjunto com Common Sense (1776), de Thomas Paine — o inglês natural de Thetford —, sobre a legitimidade e os benefícios da separação das colônias13. Sua relevância não decorre apenas de ser uma das primeiras contribuições ao constitucionalismo moderno. Como ressalta Horst Dippel, ela estabeleceu princípios básicos cuja legitimidade jamais foi contestada nos últimos dois séculos: a soberania do povo, os princípios universais, os direitos humanos, o governo representativo, a Constituição como lei suprema, a separação de poderes, a imparcialidade do poder judiciário, o governo limitado e o direito do povo de alterar e revisar a Constituição. Esses dez princípios fundamentais do constitucionalismo moderno estão presentes na Declaração de Direitos da Virgínia e, em mais de duzentos anos, nenhuma constituição que se inspirou nesse modelo ousou contradizer abertamente qualquer deles, embora seja verdade que nem sempre tenham sido incorporados em sua totalidade14.

Precisamente pelas razões expostas, a Declaração de Direitos da Virgínia assume importância capital, por ter sido pioneira em estabelecer conceitos e valores específicos que, mais tarde, seriam refletidos nas constituições de outros estados e, inclusive, na Constituição Federal de 1787 e em suas primeiras emendas e, por extensão, na maioria das constituições modernas dos Estados ocidentais. Assim, é necessário reconhecer nos representantes do Bom Povo da Virgínia o mérito de haverem elaborado o primeiro texto a afirmar “como definido com base na soberania do povo e feito estritamente para benefício comum um governo”15. Esse reconhecimento, contudo, é apenas formal, pois, do ponto de vista substancial, deve-se aguardar a muito semelhante Declaração da Pensilvânia e, mais especificamente, a Constituição desse Estado, inspirada diretamente na Declaração da Virgínia16.

Entendemos, igualmente, que deve ser atribuído o mérito de ter indicado o caminho pelo qual os Direitos Fundamentais seriam efetivados em geral, vindo a refletir-se em um texto jurídico de notável positividade. Nos ventos ardorosos da independência, tornou-se popular entre os colonos a ideia de uma norma supralegal, sustentada pela concepção de que os direitos naturais, que ela continha, legitimavam a oposição às taxas impostas pela metrópole. Assim, combinavam seus direitos com os postulados teóricos de Edward Coke, que atribuía à Constituição inglesa um princípio geral segundo o qual a exigência de novos tributos deveria ser aprovada pelos representantes daqueles que deveriam suportá-los. Desse modo, os colonos não se consideravam obrigados a atender determinações do Parlamento inglês, no qual não tinham representação.

Daí derivou a forte oposição ao Stamp Act (1765), refletida nas Resolutions of the Stamp Act Congress, elaboradas pelas colônias naquele mesmo ano durante o Congresso de Nova York, rejeitando o imposto. Ainda que reconhecessem sua sujeição ao rei, ao governo e ao Parlamento britânico, reivindicavam, ao mesmo tempo, seus direitos e liberdades inerentes, iguais aos de quaisquer outros súditos da Coroa.


3. A Declaração de Independência norteamericana: pressuposto da Constituição Federal de os Estados Unidos.

Em consonância com as ideias até aqui expostas, deve-se recordar que a resolução de 2 de julho de 1776 do Congresso da Filadélfia seria seguida, dois dias depois, pela ruptura com a metrópole, formalizada pela Declaration of Independence em 4 de julho de 1776. Seu conteúdo foi sugerido por Thomas Jefferson, partindo da premissa de que os direitos naturais do homem pertencem a todos como princípios a priori, derivados da razão e do consentimento, e que devem ser garantidos como direitos fundamentais do povo americano.

A Declaração adquiriu o status de clássico da liberdade civil e do direito de revolução. A ideia de estipular legislativamente direitos naturais inalienáveis e invioláveis era de natureza política, mas de origem religiosa, conforme expôs Georg Jellinek, para quem “o que até agora tem sido saudado como uma obra da Revolução é realmente um fruto da Reforma e de suas lutas. Seu primeiro apóstolo não é Lafayette, mas Roger Williams, que, levado por seu entusiasmo religioso, emigrou para as solidões, a fim de fundar um império baseado na liberdade de crença, cujo nome ainda é lembrado com reverência pelos americanos”17. Assim, os redatores da Declaração, para justificar a ruptura com a metrópole, em vez de recorrerem a princípios constitucionais britânicos, garantias ou direitos individuais — mais especificamente, “a Common Law, lei histórica comum, os direitos dos súditos ou franquias da Constituição inglesa” —, apelaram apenas “às Leis da natureza e de Deus”. Pela primeira vez, a Declaração de Independência fez ingressar plenamente na História a legitimidade legal e política racionalista18.

Nessa linha, Jefferson e os demais estabeleceram fundamentos expressos nos seguintes termos:

“Nós nos consideramos como incontestáveis e evidentes as seguintes verdades: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais figuram a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que os governos são instituídos entre os homens para assegurar esses direitos, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados. Que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva para tais fins, o povo tem o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, fundado em tais princípios e organizando seus poderes na forma que melhor lhe pareça adequada para garantir sua segurança e felicidade”19.

Assim, ao invés de apoiar sua legitimidade em “regras específicas do direito britânico ou de qualquer outro direito positivo”, a Declaração recorre a um “plano mais elevado”, apelando ao “julgamento de um mundo imparcial”, com a esperança de que esse tribunal supremo emitisse uma sentença favorável às colônias.

Percebe-se, ainda, que a Declaração de Independência, seguindo a tradição puritana e calvinista, concebe os direitos naturais inalienáveis, pertencentes a todos, como incompatíveis com direitos meramente tradicionais. Tais direitos são originalmente dados por Deus, enquanto a tarefa do governo criado pelos homens consiste em garanti-los e defendê-los20. O preâmbulo da Declaração afirma, logo em suas linhas iniciais, que a fundação da nação norte-americana repousa nas “Leis da natureza e no Deus da natureza”, frase deliberadamente emprestada dos escritos de William Blackstone (Commentaries on the Laws of England). Para Blackstone, “as leis da natureza” refletem a vontade de Deus, revelada por Ele no mundo natural, isto é, “as leis de Deus na natureza”, referindo-se também à vontade divina manifestada nas Sagradas Escrituras.

No segundo parágrafo, ao afirmar que “todos os homens são criados iguais” e “dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis”, a Declaração evidencia a convicção de seus redatores no relato bíblico da criação, conferindo-lhe, inclusive, superior clareza em relação ao texto do Gênesis. Finalmente, ao invocar, em sua luta pela liberdade e independência, apenas o “Juiz Supremo do mundo”, em cujo nome conduziram o povo à emancipação — assim como Moisés guiara os israelitas rumo à liberdade —, as colônias demonstravam que sua rebelião era, na verdade, o cumprimento de um mandato divino: governar de acordo com a Lei de Deus21.

A origem da comunidade política, portanto, consiste em um pacto pelo qual seus membros decidem, de modo racional e voluntário, libertar-se e organizar-se política e juridicamente. As colônias tornaram-se, assim, Estados independentes, reconhecendo os direitos naturais, inalienáveis e inerentes do homem, entre os quais os de propriedade e o exercício dos direitos políticos — aos quais Thomas Jefferson conferiu especial relevância.

Há, no entanto, uma grande diferença entre a Declaração de Independência americana e a Magna Carta, explicável pelo desenvolvimento histórico concreto de cada época e pelo caráter genético de ambos os textos, ou, ainda, pelo contexto sociopolítico a que se destinavam. O objetivo da Declaração de Independência foi, entre outros, justificar os poderes do Estado em matéria de guerra, paz, alianças e comércio; já o propósito da Magna Carta era restringir os poderes do soberano.

Quanto à Constituição de 1787, esta não incluiu, em sua redação original, um Bill of Rights explícito. Tal lacuna foi suprida em 15 de dezembro de 1791, com a introdução das dez primeiras emendas, a partir de doze propostas apresentadas por James Madison ao Congresso em 3 de junho do mesmo ano e, posteriormente, ratificadas pelos estados-membros. Essa incorporação resultou da pressão de alguns estados que se recusavam a subscrever a federação sem garantias expressas de proteção dos direitos fundamentais. Assim se consolidou o documento que ficaria conhecido como The American Bill of Rights22. Esse espírito pactista foi basicamente assumido pela Convenção da Filadélfia, como refletiu o então presidente George Washington, atento às realidades políticas da época: “os amigos mais ardorosos e os melhores defensores da Constituição não dizem que ela é livre de imperfeições; mas reconhecem as inevitáveis e sustentam que, se delas derivar algum mal, o remédio deve ser procurado”.

Não obstante, apesar do que foi exposto até aqui, surgiram certas interpretações — abundantes, mas nem sempre consensuais — que merecem ser mencionadas. Referimo-nos à afirmação de que as Declarações de Direitos norte-americanas, apesar de seu revestimento jusnaturalista, seriam estritamente direito positivo, produto da soberania popular exercida em convenção, e, quanto à sua vigência, sujeitas à mesma vontade popular expressa por meio da adequada delegação23. Entendemos, a contrário sensu, que, de acordo com a estrutura constitucional americana finalmente consolidada — respeitada historicamente em sua perspectiva evolutiva —, o legislador ordinário encontrou base sólida para sua competência legislativa no contexto das liberdades constitucionais reconhecidas. Essa base era tanto mais eficaz e penetrante quanto maior a justiciabilidade dessas liberdades, ou seja, quanto mais claramente estivessem definidos os direitos dos indivíduos e houvesse um corpo judicial capaz de protegê-los, inclusive contra o próprio legislador24.

De fato, ao final do século XVIII, as colônias britânicas da América do Norte converteram-se em Estados soberanos, e sua estrutura constitucional foi adotada diversas vezes em experiências subsequentes, com o objetivo de estabelecer um mecanismo de segurança insuperável, composto por duas partes distintas, mas necessariamente interconectadas. A primeira consistia na declaração de direitos dos cidadãos, geralmente designada Declaration of Rights, que inspirou a elaboração, em 1791, das dez primeiras emendas à Constituição de 1787, oferecendo referência explícita às liberdades públicas e garantias do cidadão americano. A segunda parte organizava o poder político, segundo um esquema comumente denominado Frame of Government.

A relação entre esses dois elementos sempre foi considerada funcionalmente hierárquica, no sentido de que a organização do governo aparecia como instrumento técnico destinado a assegurar a proteção dos direitos individuais consagrados na Declaration of Rights, que definia a posição do indivíduo em relação ao poder estatal limitado.

Mas, essencialmente, o modelo americano desenhou uma Lei superior que, retomando o antigo ius naturae medieval, colocou em posição privilegiada o princípio do Estado de Direito, situando-o acima do legislador ordinário. Dessa forma, os Direitos Fundamentais passaram a integrar essa lei suprema dos sistemas jurídicos criados. Essa visão é refletida no artigo 6º da Constituição Federal, que dispõe: “Esta Constituição e as leis dos Estados Unidos, promulgadas em conformidade com ela, constituem a lei suprema do país, e os juízes de cada Estado a ela estarão vinculados”.

Esse princípio já havia sido antecipado no preâmbulo da Constituição de Massachusetts (1780), cujo texto, de forma emblemática, reflete a concepção pactista do movimento constitucional a que nos referimos:

“O propósito da instituição, manutenção e administração do governo é garantir a existência do corpo político, a fim de proteger e facilitar aos indivíduos que o compõem o poder de desfrutar, com segurança e tranquilidade, de seus direitos naturais e das bênçãos da vida. E, quando esses grandes objetivos não são alcançados, o povo tem o direito de mudar o governo e tomar as medidas necessárias para sua segurança, prosperidade e felicidade.

O corpo político é formado por uma associação voluntária de indivíduos. É um pacto social em que cada pessoa se compromete com cada cidadão, e cada cidadão, com todo o povo, para que, em benefício comum, todos sejam governados por certas leis. É obrigação do povo elaborar uma Constituição de Governo, que assegure um processo justo de elaboração das leis, bem como sua interpretação imparcial e aplicação precisa, de modo que cada homem, em todos os momentos, encontre sua própria segurança no sistema jurídico.

Portanto, nós, o povo de Massachusetts, reconhecendo com gratidão a bondade do grande legislador do universo, que nos ofereceu pela sua providência uma oportunidade pacífica, sem fraude, violência ou surpresa, decidimos, de forma original, explícita e solene, redigir uma nova Constituição do governo civil para nós e para nossos descendentes — o pacto.”

Com base nesse modelo, a Constituição Federal americana rompeu com o princípio absolutista continental, marcado pela supremacia do poder e pela natureza ilimitada da lei25.

Mauro Cappelletti, ao referir-se ao sistema norte-americano de controle de constitucionalidade, observou que, embora fundado no direito positivo, sua origem carrega a marca jusnaturalista de seu nascimento. Para Cappelletti, esse sistema compreende a Constituição como lei superior e como quadro de valores, resultando em uma jurisdição constitucional fortemente baseada na proteção dos direitos subjetivos. Essa concepção, considerada na reconstrução europeia moderna, deu origem a um modelo em que o controle constitucional ocorre de forma incidental, durante o curso de processos judiciais que envolvem direitos subjetivos concretos das partes, nos quais se verifica a legitimidade da lei diante da Constituição26.

Ainda que muitos dos fundadores de 1787 desejassem que os tribunais assumissem um controle constitucional direto sobre a legislação, evitaram prever explicitamente essa possibilidade no texto constitucional, para não comprometer sua aceitação inicial. Contudo, logo se consolidou a convicção de que o juiz poderia anular leis que violassem direitos fundamentais — o que não acontecia na Inglaterra, onde os Bills of Rights eram criações do legislador ordinário, reconhecido como autoridade suprema para sua aprovação.

Esse modelo, ainda que com imperfeições, fez prevalecer na América do Norte, desde o início, o princípio da soberania popular, com a vontade do povo sobrepondo-se a todos os poderes constituídos, inclusive aos legislativos estaduais.

Assim, a Constituição, expressão de “nós, o povo”, adquire seu status de Lei suprema ao organizar os poderes da comunidade política, extraindo dessa origem sua legitimidade democrática substancial. Essa concepção material de legitimidade, para além de seu elemento formal, consagra a supralegalidade constitucional como “Lei das leis”.

Dessa forma, a lei ordinária não pode eliminar o conteúdo dos direitos e liberdades, pois a Constituição foi colocada acima de tudo, abrigando em si os direitos naturais. Diferentemente da formalização do pacto social continental, no modelo americano a Constituição se apresenta como limite superior e inviolável.

A 9ª Emenda fornece exemplo eloquente dessa concepção ao afirmar explicitamente:

“The enumeration in the Constitution of certain rights shall not be construed to deny or disparage other rights retained by the People.”

(“A enumeração na Constituição de certos direitos não deve ser interpretada como negando ou coibindo outros direitos retidos pelo povo”).

Os direitos constituíam um patrimônio subjetivo, evidente em si e superior à lei ordinária, devendo ser protegidos contra possíveis violações27. É nesse sentido que, em fevereiro de 1803, John Marshall, Chief Justice da Suprema Corte, ao examinar a legalidade da Judiciary Act de 1789 no caso Marbury v. Madison, afirmou:

“A questão de saber se uma lei incompatível com a Constituição pode se tornar Lei da Nação é de grande interesse para os Estados Unidos; mas, felizmente, sua solução não é tão difícil quanto sua importância sugere. Basta estabelecer alguns princípios que já deveriam estar bem assentados. Ou a Constituição controla qualquer ato legislativo incoerente com ela, ou o legislador pode alterar a Constituição por meio de uma lei ordinária. A Constituição escrita sempre foi considerada a Lei básica e superior da Nação e, consequentemente, deve prevalecer. Assim, um ato legislativo repugnante à Constituição é nulo.

Os poderes do Congresso são definidos e limitados. E, para que esses limites não sejam confundidos ou esquecidos, a Constituição é escrita. Portanto, ou a Constituição é suprema, imutável por meio de leis ordinárias, ou está no mesmo nível das leis e pode ser modificada a qualquer tempo pelo Congresso. Se a primeira alternativa for verdadeira, uma lei contrária à Constituição não é lei. Se a segunda fosse correta, as constituições escritas seriam tentativas absurdas do povo de limitar um poder ilimitado.

Sem dúvida, é função e dever do Judiciário decidir o que é direito. A Constituição é a Lei suprema e soberana da Nação, e um ato incompatível com suas disposições é nulo. Assim, se tanto a Constituição quanto a lei ordinária são aplicáveis ao caso concreto, cabe ao Tribunal decidir qual delas deve prevalecer. Pela primazia lógica da Constituição, se os tribunais devem observá-la, e se ela é superior a qualquer ato ordinário da legislatura, é a Constituição — e não a lei comum — que deve reger o caso. De outro modo, seria subverter o próprio fundamento de todas as constituições escritas.”28 A partir desses argumentos, o control judicial institucionalizar a constitucionalidade das leis (revisão judicial da legislação-judicial review of legislation), anulando a Seção 13 da acima mencionado Judiciary Act pelo conflito acima referido com as disposições do artigo 3, Secção II da Constituição. Bem, de acordo com Boyce, a brilhante intervenção de John Marshall, conseguiu superar todos os tipos de gelo e resistência, de modo que a conclusão de seu trabalho como Chief of Justice (1835), poderia ser contemplado regulação com plenitude da matéria cassação inconstitucionalidade das leis, sem ser dito ou previstas pela Constituição ou pela disposição em particular ditada pelo controle legislador29. Mas cuidado, o Supremo Tribunal não declarar uma Lei federal inconstitucional até 1857, por ocasião de fazêlo através do infame Dred Scott vs. Sandford decisão, considerado um dos gatilhos mais significativos da Guerra da Civil iniciadas em 1861, e através do qual, o Chief of Justice Roger B. Taney negou a possibilidade de que os negros poderiam ser considerados cidadãos, anulando a escravidão proibindo em 1820 per Lei Federal na terra uma vez adquirida através da compra de Louisiana, tinha pasado para o domínio público. No entanto, ele observou Gregorio Cámara origem política de jurisdição constitucional, para a construção do famoso juiz americano, tinha “como pano de fundo e explicar a situação política e, como piloto, o compromisso do grande Chefe de Justiça para obter solidamente consolidar os pilares de uma nação surgente constitucional para tornar mais eficaz; e que, como é sabido, ele enfrentou quando a ocasião ocorreu sob os cânones de argumentos jurídicos, os problemas do governo da federação que não tinha sido previsto pelos founding fathers30.

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Sobre o autor
Antonio Villacorta Caño-Vega

Doutor em Direito pela Universidade de Cantábria (Espanha). Professor de Direito Constitucional. Autor de diversas publicações sobre a referida área jurídica, principalmente no âmbito dos Direitos Fundamentais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAÑO-VEGA, Antonio Villacorta. Sobre as Declarações Norte-Americanas de Direitos: da Declaração da Virgínia à Declaração de Independência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8103, 7 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85288. Acesso em: 5 dez. 2025.

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