Em tempo de pandemia, a discussão acerca da possibilidade da proibição da locação para temporada ganhou especial relevo quando algumas cidades proibiram e outras limitaram a possibilidade da locação nesta modalidade, principalmente quanto às locações para curta ou curtíssima temporada através de aplicativos, sendo o Airbnb o mais popular.
No cenário de pandemia, no contexto em que o município não interveio para regulamentar a locação por curta temporada, deparamo-nos também com a figura do síndico que impôs a proibição, o que restou objeto de discussão, sendo predominante - enquanto cenário de maior incerteza - o entendimento de agir legítimo, visando a saúde dos moradores, em prol da coletividade, porquanto dever que lhe é inerente.
A discussão traz à tona assunto que não é de hoje. Afinal, a locação de imóvel por aplicativo, enquadra-se nos ditames da locação para temporada ou seria hipótese de hospedagem?
Há quem defenda se tratar a prática de meio de hospedagem, merecendo regramento diverso daquele estabelecido pela lei 8.245/1991 (lei de locações) e exatamente nesse ponto nos deparamos com uma celeuma por parte da hotelaria que, dentre outros fatores, irresigna-se frente à carga tributária não imposta aos locadores por aplicativo.
De outro viés, em especial também nos deparamos com outros indivíduos que por vezes a locação para temporada não lhes agrada, sendo eles os condôminos. No âmbito condominial, com a finalidade de objeção à prática da locação para temporada, o principal argumento remonta à finalidade comercial, à associação do instituto com a hotelaria, desvirtuando, em tese, a finalidade da edificação, que por vezes é apenas residencial.
Contudo, até o presente, toda explanação sobre o tema é interpretação legal ou opinião. Explico.
Sob o aspecto jurídico, que será o ponto de abordagem aqui, quando se trabalha ainda com a noção de interpretação legislativa, sem entendimento consolidado, posicionamento claro e impositivo, não há o que se falar em uma interpretação certa ou errada. Isso porque, em não havendo na legislação norma a regulamentar de forma específica as locações por aplicativos, deparamo-nos com decisões conflitantes dos tribunais estaduais.
A discussão chegou ao Superior Tribunal de Justiça, incutindo a esse o julgamento de recurso que busca reformar uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que proibiu um casal de alugar um apartamento por aplicativo, sob o fundamento de desvirtuamento do caráter residencial do edifício. Na sessão para julgamento realizada no final de 2019, ao analisar o caso o relator do processo, ministro Luis Felipe Salomão, entendeu que o condomínio não poderia proibir que os moradores oferecessem vagas por meio das plataformas digitais. Para o ministro, a proibição atingiria o direito à propriedade, enquadrando a hipótese das locações por aplicativos na modalidade de locação residencial e não hospedagem como defendia o condomínio. Após o voto de Salomão, o julgamento foi interrompido por um pedido de vista do ministro Raul Araújo e posterior pedido de prorrogação em fevereiro de 2020, encontrando-se, portanto, ainda pendente de julgamento.
O julgamento do recurso especial nº 1.819.075/RS, mencionado acima, sem dúvidas, visa o julgamento daquele caso sob análise, todavia é sabido que os julgamentos de corte superior repercutem diretamente nos entendimentos dos Tribunais estaduais, com tendência a unificá-los, logo, aguardemos a decisão que certamente vem representar um posicionamento concreto à pertinência do caso.
O fato é que após grande repercussão, duas são as principais teorias a incidir sobre a discussão: (i) A teoria de que a prática da locação por aplicativo se equipara aos termos da locação para temporada, prevista no art. 48 da lei do inquilinato e; (ii) A teoria de que a prática da locação por aplicativo se equipararia à hospedagem, nos termos do art. 23 da lei 11.771/08, também conhecida como lei do turismo.
Entre defensores assíduos e críticos ferrenhos, resta evidente qual teoria lhes corresponde. Na primeira teoria, deparamo-nos com argumentação dos defensores da prática, com base na lei de locações, a qual prevê a possibilidade de locação para temporada pelo prazo máximo de 90 dias, não fazendo menção a um prazo mínimo, amparando-se, ainda, no inarredável direito à propriedade. Na segunda teoria, estamos diante da argumentação defendida por tantos outros com base na lei do turismo que é categórica ao afirmar ser considerado meio de hospedagem aquele que destinado a prestar serviço de alojamento temporário, oferta unidade de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede.
Para exemplificar a controvérsia, peguemos a cidade de São Paulo, maior capital do Brasil, onde o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vem julgando rotineiramente o tema, sem qualquer vinculação entre os entendimentos, não se observando qualquer indício de uniformização entre as Câmaras.
A 35ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo em 03 de junho de 2019, ao julgar um recurso de apelação interposto por um condomínio, entendeu por dar-lhe razão, considerando que a locação para temporada desvirtuaria a finalidade estritamente residencial do edifício e acrescenta o relator excerto de recurso de agravo de instrumento também de sua relatoria de que seria “inviável o tipo de locação de alta rotatividade pretendido pela agravada, uma vez que se assemelha à finalidade hoteleira ou de hospedaria, conforme é possível inferir-se dos aplicativos utilizados pela agravada, tal como “Airbnb” e assemelhados”.[1]
De outra ótica, temos o posicionamento da 25ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo que em recurso de apelação interposto por uma condômina titular de uma unidade de locação para temporada entendeu que a locação por aplicativo não desvirtua a destinação residencial, acrescentando que “o fato de a autora locar o imóvel por temporada, ainda que por locação diária através do site Airbnb não desqualifica a natureza residencial da utilização do imóvel, admitida pelo artigo 48 da Lei de Locação. Em outras palavras, a utilização do imóvel para locação por curtíssimo espaço de tempo não implica descumprimento à destinação residencial imposta na convenção de condomínio.”
Houve um aumento de ações judiciais questionando a prática nos últimos tempos, sendo as principais motivações os casos paradigmas citados, ou seja, se a locação para temporada desvirtuaria ou não a finalidade residencial do edifício. Nota-se não haver consenso. Enquanto não houver legislação específica tratando das locações por aplicativo ou posicionamento de Tribunal superior, a discussão permanece em aberto e será analisada de acordo com o caso concreto e entendimento do Juízo sobre o qual recaia a obrigação da análise.
Fora do contexto da pandemia, a proibição se mostra possível mediante alteração da convenção de condomínio, desde que deliberada pela unanimidade dos condomínios, quórum de difícil alcance – quiçá impossível - frente à eventual existência de inadimplentes, os quais perdem o direito ao voto, tendo também aqueles que preferem não se envolver com as questões condominiais e, por óbvio, aqueles que seriam contrários à locação por justamente alugarem suas unidades para temporada. Em não havendo consenso por unanimidade em virtude de impossibilidade de determinados condôminos votarem, tais votos poderão ser supridos judicialmente.
O quórum qualificado é exigido por se tratar de restrição aos direitos de propriedade, quanto ao direito de uso e fruição do bem. Desta forma, tem-se que simples alteração no regimento interno ou deliberação assemblear não bastam a limitar a propriedade do condômino quanto à disposição do seu imóvel para locação por aplicativo.
Engana-se quem acredita que pode o síndico convocar simples assembleia para deliberar sobre o tema ou ainda simplesmente proibir a disposição dos imóveis pelos proprietários para a locação por aplicativo.
O entendimento que registro é de que a locação para temporada carece de regulamentação, não se enquadrando em qualquer dos institutos já existentes. Muito embora haja impacto direto na hotelaria, cabendo referir os números de 2016 em que pesquisa realizada aponta que o Airbnb acrescentou R$ 2,5 bilhões ao PIB brasileiro[2], não se pode concluir se tratar de serviço de hospedagem por não oferecer serviços típicos de hotelaria, ainda que o formato de disposição de curtos períodos contados por diárias e formas de pagamento se assemelhem. De outro ângulo, ainda que a lei de locações não estipule um prazo mínimo, limitando-se a referir que a locação para temporada se trate daquela que corresponda até 90 dias, em absoluto quando de sua publicação em 1991 não poderia prever as modificações que seriam implementadas pela tecnologia no mercado imobiliário.
Nesse contexto, a restrição dos direitos à propriedade não seria o caminho, as inovações trazidas pela tecnologia serão impostas e devemos ir ao encontro da atualização e consequente progresso. Nesse contexto, Scavone, citando lição de 1991 do doutrinador Silvio Rodrigues:
Silvio Rodrigues[3] ensina, ainda, que das inúmeras teorias que tentam explicar a propriedade, a que mais se aproxima da realidade é a teoria da natureza humana.
Explica que a propriedade, desde os primórdios da história, é inerente ao ser humano como condição de sua existência e pressuposto de sua liberdade.
Argumenta que muito embora diversos regimes tentassem atenuá-la ou até extirpá-la, nenhum teve êxito (...).
A tendência é de que a cada dia novos negócios virão a contrapor a economia tradicional até então conhecida, sendo a locação por aplicativo um dos propulsores de tal inovação, não havendo espaço para alegação da não apropriação tecnológica, o senso de adaptação inerente à condição humana terá de ser acionado com um mínimo de ressalvas.
A vida em condomínio essencialmente requer regulamentação de condutas nocivas, sendo a previsão de tais questões quanto ao Airbnb medida que já pode ser adotada de imediato, podendo ser criada, inclusive – e o que recomendo - uma comissão dentro do condomínio para a discussão do tema, sem que para isso haja a proibição da prática, a qual, conforme já vimos, possui linha tênue à arbitrariedade, o que pode ser reconhecido na via judicial.
[1] Apelação n.º 1046233-05.2018.8.26.0100 - TJSP
[2]https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,airbnb-acrescentou-r-2-5-bilhoes-ao-pib-de-2016-aponta-pesquisa,70002037764
[3] Silvio Rodrigues, Direito Civil, São Paulo: Saraiva, 1991, vol. 5, p. 75.