Recebi, no agregador de notícias a seguinte manchete: "Magazine Luiza: dar vagas só para negros é ‘racismo reverso’?" Resolvi pesquisar. No site Terça Livre, encontrei a seguinte informação: "Ministério Público do Trabalho dá parecer para que o Magazine Luiza continue com processo seletivo para negros."
Segundo o MPT paulista, a empresa é, inclusive, merecedora de elogios. Afinal, ela se tornou responsável por uma “ação afirmativa de reparação histórica”.
“O que os empregadores não podem fazer é criar seleções em que haja reserva de vagas ou preferência a candidatos que não integram grupos historicamente vulneráveis”, analisa a coordenadora nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho, procuradora Adriane Reis de Araújo, conforme divulgado pelo site do MPT-SP.
Afinal, existe "racismo reverso"? E o que seria esse tipo de "racismo"?
Primeiramente, é necessário compreender o conceito de racismo cultural, particularmente aquele dirigido contra os negros. No vídeo abaixo, o professor Michael J. Sandel apresenta, em sua palestra, um trecho em que dois norte-americanos sulistas (YouTube) se mostram "confusos" diante das mudanças culturais. A questão central é: como se adaptar a novos conceitos sobre diversidade humana e, principalmente, sobre a dignidade humana?
Em outro vídeo (YouTube), há um debate com o Dr. Louis Farrakhan sobre o racismo contra os negros. Suas explicações são coerentes e precisas, abordando o racismo sofrido pelos afrodescendentes, além do imaginário e das concepções que norte-americanos não afrodescendentes constroem sobre os afrodescendentes.
Do livro Capitalismo e Liberdade, de Milton Friedman:
“Legislação sobre discriminação nos empregos Comissões que estudam as práticas discriminatórias na contratação de serviços por motivos de raça, cor ou religião foram criadas em numerosos Estados com a tarefa de evitar a "discriminação". A existência dessas comissões constitui clara interferência na liberdade individual de estabelecer contratos de trabalho com quem quer que seja. Com isso, cada contrato está sendo submetido à aprovação ou desaprovação do Estado. Portanto, trata-se de interferência direta na liberdade, do tipo contra o qual objetaríamos em muitos outros contextos. Além disso, como acontece quase sempre com outras interferências na liberdade, os indivíduos submetidos à lei não são em geral aqueles cujas ações os proponentes da lei desejam controlar.
Considerem, por exemplo, a situação de uma loja situada num bairro habitado por pessoas que têm forte aversão a serem servidas por negros. Suponhamos que uma destas lojas tenha vaga para um empregado, e o primeiro candidato a se apresentar seja negro e preencha todas as exigências estabelecidas pelo empregador. Suponhamos ainda que, como consequência da lei em questão, a loja seja obrigada a contratá-lo. O efeito de tal ação será a redução do movimento de negócios e a imposição de prejuízo ao proprietário. Se a preferência do bairro é realmente firme, poderá levar ao fechamento da loja.
Quando o proprietário de uma loja contrata empregados brancos em vez de negros, no caso de não existir uma lei a respeito. ele pode não estar manifestando preferência ou preconceito ou gosto próprios. Pode estar simplesmente transmitindo os gostos da comunidade a que serve. Está na realidade oferecendo aos consumidores os serviços que estes desejam consumir. Entretanto, ele fica prejudicado — e pode ser mesmo o único prejudicado - por uma lei que o proíbe de desenvolver essa atividade, isto é, que o proíba de satisfazer os gostos da comunidade contratando um empregado branco em vez de negro. Os consumidores, cujas preferências a lei pretende corrigir, serão afetados somente no sentido de que o número de lojas ficará limitado e terão que pagar um preço mais alto porque uma delas fechou. Esta análise pode ser generalizada. Na grande maioria dos casos, os empregadores transmitem a preferência de seus clientes ou dos outros empregados, quando adotam políticas de emprego que tratam fatores irrelevantes para a produtividade técnica e física como relevantes para o emprego. De fato. os empregadores têm tipicamente um incentivo, como já observado, para tentar de todos os modos satisfazer as preferências dos clientes ou dos empregados — se o não atendimento de tais preferências pode custar-lhes mais caro.” (grifo do autor)
Considerando a ideia do libertário Milton Friedman, pode-se argumentar que há a possibilidade de discriminação com base em um tipo específico de utilitarismo. A empresa Magazine Luiza, sendo uma "propriedade privada", teria, portanto, o direito de escolher quem irá trabalhar em suas dependências e lojas. Dessa forma, não haveria "racismo reverso" por parte da Magazine Luiza. No entanto, há também o direito natural de autopossessão e autonomia da vontade da empresa.
Saindo dessa concepção liberal, que defende a não interferência do Estado na propriedade privada, surge uma outra perspectiva: a realidade no sentido da "alma humana".
Acerca dos estereótipos que faziam parte do imaginário da elite paulistana, Moura (2004, p. 63) elencou os principais, dividindo-os em duas partes: o que o negro simbolizaria e o que o europeu branco simbolizaria, conforme reproduzido a seguir:
Quadro 1 – Simbologia do Negro e do Imigrante para os paulistanos, segundo estudos de Moura (2004, p. 63)
Negro simbolizaria
Imigrante branco europeu simbolizaria
Atraso
Progresso e desenvolvimento
Barbárie
Cultura
Passado
Futuro
Devassidão
Moral
Escravidão
Liberdade
Primitivismo e selvageria
Civilização
Africanização ou enegrecimento
Clareamento da raça ou branqueamento
(Imagem do documento O RACISMO NOS ANÚNCIOS DE EMPREGO DO SÉCULO XX )
Há dois anos, publiquei Dia da Consciência Negra: Como relativizar este dia invocando 'igualdade'?
Ora, liberdade pressupõe "pensar", mas pensar livremente. Será que existe um direito natural ao racismo? A liberdade de crença pressupõe a etnia negra como composta por seres humanos "inferiores"?
Do livro Uma Breve História da Humanidade:
"Um círculo vicioso similar perpetuou a hierarquia racial na América moderna.
Do século XVI ao XVIII, os conquistadores europeus importaram milhões de escravos africanos para trabalhar em minas e plantações do continente americano. Optaram por importar escravos da África e não da Europa ou do leste da Ásia devido a três fatores circunstanciais. Primeiro, a África era mais perto, então era mais barato importar escravos do Senegal que do Vietnã.
Em segundo lugar, na África já existia um comércio de escravos bem desenvolvido (exportando principalmente para o Oriente Médio), enquanto na Europa a escravidão era muito rara. Era obviamente muito mais fácil comprar escravos em um mercado existente do que criar um do zero.
O terceiro fator, e o mais importante, era que as fazendas em locais como a Virgínia, o Haiti e o Brasil estavam tomadas por malária e febre amarela, originárias da África. Os africanos haviam adquirido, durante gerações, uma imunidade genética parcial a essas doenças, enquanto os europeus eram totalmente indefesos e morriam aos montes. Portanto, era mais prudente para um dono de latifúndio investir seu dinheiro em um escravo africano do que em um escravo ou criado europeu. Paradoxalmente, a superioridade genética (em termos de imunidade) se traduziu em inferioridade social: precisamente por estarem mais adaptados a climas tropicais do que os escravos provenientes da Europa, os africanos terminaram como escravos de senhores europeus! Devido a esses fatores circunstanciais, as novas sociedades em desenvolvimento no continente americano foram divididas em uma casta dominante de europeus brancos e uma casta subjugada de negros africanos.
(...)
Teólogos afirmaram que os africanos descendiam de Cam, filho de Noé amaldiçoado por seu pai, que disse que seus filhos seriam escravos. Biólogos afirmaram que os negros eram menos inteligentes que os brancos e que tinham senso moral menos desenvolvido. Médicos afirmaram que os negros viviam na sujeira e disseminavam doenças – em outras palavras, eram fonte de contaminação.
Esses mitos repercutiram na cultura americana, e na cultura ocidental de modo geral. Continuaram a exercer influência bem depois que as condições que criaram a escravidão haviam desaparecido." (Sapiens Uma Breve Historia da Humanidade - Yuval Noah Harari)
O filme Harriet (YouTube) conta a trajetória de uma mulher negra escravizada. De escrava ao apogeu, sua luta contra a escravidão negra é um símbolo de resistência.
Não existe "racismo reverso" nas Américas. Não existe "racismo reverso" na Europa. O fato de a escravidão ter existido no passado e de haver defensores desse sistema, como Aristóteles, não justifica o chamado "racismo reverso" defendido por alguns brancos.
A ideia de que proprietários têm o direito natural de escolher seres humanos por etnia, silhueta etc., para discriminá-los com base em alguma ideologia, não faz mais parte da ética dos direitos humanos, que se baseia na igualdade e na equidade. As oportunidades proporcionadas por ações afirmativas — sejam para negros, pessoas com deficiência, povos indígenas ou mulheres — representam a consagração de compensações por séculos de discriminação contra os "párias sociais".
É correto afirmar que as ações afirmativas e as iniciativas do setor privado, ao aplicarem o conceito de "equidade", não se traduzem em "privilegiar os párias". Se assim fosse, consideraríamos que dar uma prótese a uma pessoa que perdeu um membro inferior seria um "privilégio", quando, na verdade, trata-se de um meio tecnológico para promover equidade em relação às pessoas que possuem todos os membros.
Outro exemplo: uma escada para ingressar em uma agência bancária. Um cadeirante não consegue "andar" pelos degraus. Assim, é necessária uma rampa, com inclinação adequada, para que ele possa, com a força dos membros superiores, entrar na agência. Aqui, a "equidade" é a rampa; a "igualdade" é a possibilidade de todos, cadeirantes ou não, ingressarem no espaço.
No caso de um elevador, que serve tanto para cadeirantes quanto para não cadeirantes, estaríamos falando de "igualdade", "equidade" ou "conforto" para ambos? Deixo a reflexão para os comentários.