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As variáveis da negociação e o processo de nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia

04/07/2006 às 00:00
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RESUMO

Este artigo apresenta uma análise sobre a questão que envolve os interesses brasileiros na exploração dos hidrocarbonetos bolivianos, sob os aspectos das variáveis da negociação: informação, que é matéria-prima básica; tempo, no qual toda negociação se desenvolve; e o jogo de influências, de poder.

Palavras-chave: Brasil, Bolívia. Hidrocarbonetos. Variáveis da negociação: informação, tempo e poder.


INTRODUÇÃO

Certamente o feriado do Dia dos Trabalhadores de 2006 será amplamente lembrado por nós brasileiros, não pela data em si, mas pela surpresa com a qual fomos pegos ao tomar conhecimento da ação do governo boliviano de intervir e alterar as normas da exploração de petróleo e derivados naquele país, o que afeta diretamente nossos interesses.

Partindo da história não tão recente, serão abordados os acontecimentos que caracterizaram tentativas anteriores de tomada dos hidrocarbonetos pelo Estado Boliviano, bem como a situação econômica-política contemporânea que desencadeou todo este processo.

Tendo por base a teoria geral do processo de negociação, procuraremos estabelecer uma relação entre as três variáveis essenciais deste processo (informação, tempo e poder) com as ações dos governos boliviano e brasileiro no intuito de assegurar seus interesses.


A NACIONALIZAÇÃO DO GÁS NA BOLÍVIA

O Estado assume a propriedade, posse e controle absoluto de todos os recursos hidrocarbonetos; a estatal YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos) assume a comercialização, definindo condições, volumes e preços; as companhias estrangeiras têm 180 dias para regularizarem a situação e se adaptarem às novas condições, sendo que durante este período a carga de tributos será elevada para 82%; a estatal passa ainda a deter controle acionário na razão de 50% mais um das petrolíferas estrangeiras.

Através de um Decreto Supremo, foram estas as modificações anunciadas pelo presidente Evo Morales em 1º de maio passado. No intuito de compreender o contexto e as razões que deram origem a esta reviravolta no país vizinho, passaremos ao estudo de questões históricas, políticas e econômicas.

1.alguns aspectos históricos

Desde a conquista da independência da Espanha em 1825, diversas foram as guerras que o país se envolveu com seus vizinhos, dentre as quais merecem destaque o conflito com o Chile em 1879, quando o acesso ao mar foi perdido, a disputa com o Brasil que terminou com a aquisição do território que hoje é o Estado do Acre e, por fim, a contenda com o Paraguai, que saindo vencedor se apossou da região norte de seu país, que é produtora de petróleo.

Neste contexto, dois anos após o término da Guerra do Petróleo (1932-1935, contra o Paraguai), ocorreu a primeira nacionalização dos recursos, promovida pelo Presidente e Coronel German Busch, que confiscou as concessões petrolíferas da companhia americana Standard Oil.

A segunda tentativa ocorreu também durante regime militar, desta vez em 1969 e sob o comando do General Alfredo Ovando Candia, que expropriou as concessões da também norte-americana Gulf Company. [01]

Depois deste feito, novo processo de privatização foi iniciado por volta de 1994, do qual participaram cerca de 20 empresas multinacionais, como Petrobras (Brasil), a Repsol YPF (Espanha e Argentina), British Gas e British Petroleum (Reino Unido) e a Total (França). Juntas estas companhias investiram aproximadamente US$ 3,6 bi, dos quais 41% foram providos pela Petrobras, que aplicou outros US$ 2 bi na construção do gasoduto Brasil-Bolívia.

2.morales: de cocaleiro à presidente

Mais pobre dentre os países sul-americanos, com sua economia extremamente dependente da produção de petróleo e congêneres, a Bolívia possui aproximadamente 64% da população abaixo da linha da pobreza, taxa de analfabetismo de 12,8% e somente 4% da população (de 9 milhões de pessoas, segundo estimativa de 2006) tem acesso à internet. [02]

Em meio a esta situação, inúmeras são as insurgências da população contra o governo, exigindo melhores condições. É na figura de principal líder e opositor ao governo que começa a ganhar importância política a figura do sindicalista e plantador de coca Evo Morales. Sua atuação foi de extrema relevância na renúncia dos Presidentes Sanchez de Lozada (2003) e Carlos Mesa (2005).

Nascido em Oruro, aproximadamente 400 quilômetros ao sul da capital La Paz, filho de agricultores, Morales ingressou no serviço militar e não chegou a concluir o segundo grau. Na década de 80, mudou-se para Cochabamba, onde entrou para o sindicalismo dos cocaleiros, o que utilizou como um trampolim para a política: em 1995 ele fundou o Instrumento Político para a Soberania dos Povos, que participou das eleições com o nome de Movimento Ao Socialismo (MAS). Chegou ao Congresso em 2002 e foi candidato a presidente no mesmo ano, mesmo tendo perdido seu mandato parlamentar em função de incompatibilidade com o exercício de atividades sindicais, das quais não se afastara.

Irredutível defensor da nacionalização dos recursos, intensificou a oposição ao governo Lozada através de manifestos populares marcados por confrontos com a polícia e mortes, que ocasionaram a renúncia do Presidente. Em seu lugar, assume o vice, Carlos Mesa, que governa o país por 14 meses, eleva os tributos de exploração de petróleo de 18 para 50% e, sob ameaça de abandono do país por parte das companhias petrolíferas, também renuncia, em 2005. O Presidente da Corte Suprema toma posse no Executivo e convoca eleições para o mesmo ano, das quais Morales sai como vitorioso com 54% dos votos e prometendo reformulação constitucional por meio de Assembléia Nacional Constituinte, Nacionalização dos recursos hidrocarbonetos e impedimento às políticas norte-americanas de combate ao cultivo da coca.

No quarto mês de mandato, no intuito de eleger a maioria dos representantes na Constituinte convocada para dois meses depois e de cessar com as manifestações de insatisfação da população contra seu governo, cumpre o que prometera em campanha e, através de Decreto Supremo, ato unilateral e extremamente ditatorial, expropria os recursos das companhias petrolíferas.


O DECRETO SUPREMO Nº 27.801 E SUAS (IN)CONSEQÜÊNCIAS

Tendo repercutido em todo o mundo, a ação de Morales impôs sérios riscos para a manutenção das atividades e continuidade dos planos de investimentos das companhias afetadas. O Estado, sem respeito algum em relação aos contratos anteriormente firmados em total compatibilidade com a legislação vigente, passa a controlar a exploração e comercialização de petróleo e gás, estabelece alíquota de tributação absurda e, usando de sua Força Militar invade as instalações das empresas, às quais nega indenização pela apropriação.

1.O que está em disputa

Dos 50 milhões de m3 de gás natural consumidos diariamente no Brasil, metade é de origem boliviana. Com a construção do gasoduto Brasil-Bolívia, diversas indústrias foram incentivadas a investir na utilização do gás como fonte de energia, o que representa hoje cerca de 53% do consumo. Outra parcela importante, de aproximadamente 31%, é empregada na geração de energia elétrica, sendo o restante utilizado em veículos (13%) e em residências (3%).

Além da perda de capital da estatal brasileira e do comprometimento quanto à execução do plano de investimentos, a elevação dos tributos exigida pelos bolivianos representaria aumento de 62% no preço final do gás. Sabe-se das conseqüências economicamente negativas causadas pela elevação de custo de recursos energéticos, que se absorvida pela Petrobras ocasionará insatisfação por parte de seus investidores ou, se repassada para o consumidor final surtirá efeitos nos diversos segmentos da economia nacional.

2.Possíveis cenários

Para o Brasil, além dos impactos econômicos já citados, não pode deixar de ser mencionada a repercussão negativa para a diplomacia brasileira perante aos demais países, especialmente no âmbito do comércio internacional. Se a Bolívia, de irrisória expressividade no cenário internacional consegue impor seus interesses perante o país, de quem depende diretamente, outros países passam a ganhar forças para futuramente negociar conosco.

Do lado boliviano, que colocou em risco as relações com seu maior comprador, os impactos também podem ser trágicos. Além da instabilidade política, a interrupção da venda de gás para o Brasil ocasionaria ao mesmo tempo a paralisação da produção dos demais combustíveis, sem os quais as atividades produtivas do país restariam totalmente comprometidas.

Da mesma forma, merece destaque a atual condição política na América do Sul, onde é perceptível o apoio boliviano à Venezuela, que disputa com o Brasil a liderança do continente.


O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO

Segundo José Augusto Wanderley, um acordo legítimo fará as os negociadores se sentirem tratados com justiça, na medida em que for pautado pela ética, por parâmetros, critérios e princípios externos, além da vontade de cada uma das partes de chegar a um ponto de equilíbrio, um acordo satisfatório.

Apesar da dependência econômica boliviana em relação à economia brasileira, percebe-se maior preocupação por parte deles no sentido de alcançarem seus objetivos, pouco se importando com as conseqüências acarretadas ao Brasil. Tratando-se do nível de globalização contemporâneo, nos parecem no mínimo um tanto atrasadas as concepções que ditam as diretrizes das ações de nossos vizinhos.

Do lado brasileiro, percebe-se certa inércia e admissão de preceitos impostos pelos bolivianos sem a devida crítica e contestação. Passaremos então ao estudo das estratégias de negociação de ambos os países, direcionando especialmente a análise às variáveis insertas no contexto.


VARIÁVEIS DO PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO: INFORMAÇÃO, TEMPO E PODER

O processo de negociação requer que, uma vez estabelecidos os objetivos, sejam traçadas estratégias e táticas que sejam capazes de alcançá-los. Conforme José Augusto Wanderley,

as estratégias e táticas referem-se a informação, tempo e poder. A informação é a matéria-prima básica da negociação. Toda negociação ocorre no tempo e é um jogo de influências, de poder. [03]

Para cada uma das variáveis apresentadas, faz-se necessária a elaboração de estratégia específica.

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1.A Estratégia de Informação

Para a obtenção do êxito esperado, é primordial o conhecimento sobre a área e o objeto da negociação. Ao negociar, são tomadas decisões, que serão mais acertadas à medida que elevar-se o domínio por parte do negociador sobre o que está em jogo.

É também através da estratégia de negociação que serão determinadas quais informações são relevantes, quais precisam ser obtidas, quais devem ser apresentadas para a outra parte e quais devem ser mantidas em sigilo. Informações relevantes, se utilizadas com a estratégia correta, são sinônimos de poder. É tendo por base os objetivos desejados que tais deliberações devem ser tomadas.

Para que seja eficaz, a informação deve ser dada na linguagem do receptor, facilitando o entendimento. A utilização de recursos que impactem nos canais sensoriais visual, auditivo e sinestésico propicia resultados interessantes.

Analisando a postura do governo boliviano ao tentar impor seus interesses, somos levados a crer que a rigidez adotada tem como fundamento o conhecimento da dependência do Brasil em relação à Bolívia no aspecto de não poder ficar sem comprar gás, o que, na visão boliviana, possibilitaria tamanho reajuste proposto.

De maneira inteligente, apesar de relativa demora, a Petrobras apresentou seu plano de expansão da exploração de gás nas bacias brasileiras, o que possibilitaria a auto-suficiência de produção a partir de 2008. Esta informação, que vinha sendo mantida oculta, foi exposta no sentido de criar na outra parte o risco de perder seu maior comprador dentro de certo tempo.

2.A Estratégia de Tempo

Não basta uma ótima estratégia de informação se ela não for oportuna, se não for utilizada no tempo certo, ou seja, no momento adequado da negociação. A estratégia de tempo deve, então, ser condizente com a perspectiva temporal dos dois lados.

É facilmente perceptível a direta relação entre as questões temporais e aspectos políticos, internos e externos, tanto por parte da Bolívia, que desencadeou todo este processo, quanto do Brasil.

Junto com a promessa de nacionalização dos recursos, o compromisso de reformular as leis buscando grandes transformações na sociedade foi responsável direto pela eleição de Morales. Com a proximidade da realização das eleições para a Assembléia Constituinte (marcadas para julho próximo), fez-se necessário demonstrar resultados e cumprir o que fora prometido, para com isso conseguir credibilidade e eleger a maioria dos constituintes. Qualquer semelhança com o que ocorreu na vizinha Venezuela e resultou na concentração demasiada de poderes nas mãos do Presidente é mera coincidência.

O decreto de nacionalização determinou 180 dias, contados a partir de sua edição, como prazo limite para negociação e resolução de todos os impasses relativos à questão. A estratégia de estabelecer uma data limite cria uma barreira psicológica que, ao passo que se aproxima, acelera as concessões por parte dos negociadores.

No caso do Brasil, percebe-se que as reações [04] foram no sentido de encurtar ao máximo o período de negociações, acelerando um possível acordo, no intuito de minimizar as incertezas e seus reflexos na economia, além de afastar o quanto possível a resolução da questão das eleições presidenciais (outubro), evitando eventuais prejuízos de natureza política.

Há que se observar ainda que a negociação não termina com o acordo, mas somente quando cumpridas as disposições convencionadas.

3.A Estratégia de Poder

O poder, na relação negocial, pode ser compreendido como o jogo de influências recíprocas. A estratégia de poder, que será utilizada de forma conjunta com as demais, deve partir da identificação das fontes de poder, cuja natureza pode ser interna (pessoal) ou externa.

Dentre as habilidades pessoais, nos parece de maior relevância a habilidade de lidar com o binômio recompensa/punição, que se traduz na capacidade de identificar riscos aceitáveis e gerenciá-los de forma coerente.

Tratando-se de Evo Morales, nada mais inusitado que o reconhecimento próprio que ainda não aprendera a governar [05]. Porém, não deveria causar espanto o fato de um sindicalista não deter as aptidões necessárias para comandar uma nação, já que a situação brasileira é idêntica.

Com relação às fontes externas de poder, merece destaque a utilização de alternativas como forma de proteção e demonstração de invulnerabilidade. A possibilidade de interrupção do fornecimento de gás poderia ser utilizada como uma forma de pressão por parte dos bolivianos, o que, todavia, foi afastado ao passo que o presidente da Petrobras anunciou um plano de contingenciamento, demonstrando que o Brasil tem condições de suportar eventual corte.

Interessante observar que quando há envolvimento de poder, quem faz uso intenso do mesmo e não atinge os efeitos almejados, passa à condição de maior fragilidade, pois, além da frustração, a capacidade de resistência é em si uma forma de demonstração de poder.


CONCLUSÃO

Do estudo realizado, resta ainda mais evidente a importância da definição dos objetivos antes do início da negociação, a necessidade e a relevância de estabelecer estratégias variadas de informação, sabendo transformá-las efetivamente em poder e usando-as em tempo.

A negociação, presente nos mais simples atos do cotidiano, adquire maior complexidade e relevo quando se fala em governar um país, estabelecer diretrizes do rumo da nação. A questão sócio-econômica boliviana carece, sem dúvida, de ações eficientes que tornem possíveis melhores condições de vida para a população. Todavia, são necessárias ações racionais, realizadas por agentes capacitados e não por líderes unicamente carismáticos.

Há que se encontrar uma solução que traga maior rentabilidade aos bolivianos, sem, contudo, apropriar-se de recursos de terceiros, os quais desde que aplicados no país propiciaram os níveis produtivos atuais, inimagináveis sem o apoio financeiro e tecnológico das companhias que se instalaram no país.

Espera-se ainda que a diplomacia brasileira aja de forma coerente com sua tradição e reputação, de forma a defender os interesses da Petrobras e de todos nós brasileiros.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Folha Online – Especial – 2006 – Nacionalização na Bolívia. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2006/nacionalizacaonabolivia/>. Acesso em 03 jun. 2006.

WANDERLEY, José Augusto. Negociação Total: encontrando soluções, vencendo resistências, obtendo resultados. São Paulo: Editora Gente, 1998.


NOTAS

01 Folha Online – Especial – 2006 – Nacionalização na Bolívia. Disponível em: <

http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u95489.shtml>. Acesso em 03 jun. 2006.

02

Folha Online – Especial – 2006 – Nacionalização na Bolívia. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u95537.shtml>. Acesso em 03 jun. 2006.

03

WANDERLEY, 1998, p. 160.

04 Folha Online – Dinheiro – Bolívia rejeita prazo da Petrobras para acordo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u107516.shtml>. Acesso em 03. jun. 2006.

05 Folha Online – Mundo – Evo Morales admite que ainda não aprendeu a governar. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u95920.shtml>. Acesso em 03. jun. 2006.

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Sobre o autor
Elton Baiocco

bacharel em Sistemas de Informação pela Universidade Tuiuti do Paraná, bacharelando em Direito pela Faculdade Dom Bosco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAIOCCO, Elton. As variáveis da negociação e o processo de nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1098, 4 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8592. Acesso em: 25 dez. 2024.

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