04- OS PARTIDOS POLÍTICOS DIANTE DOS DISCURSOS ETERNIZANTES DE FRAGILIDADE E A RECORRENTE TUTELA PELO PODER PÚBLICO
Pode-se conceituar partido político como um segmento da sociedade que busca alcançar o poder por meio de um projeto político. Sua origem moderna está intimamente ligada ao constitucionalismo inglês, mais especificamente, no período de 1678 a 1681, com a crise do exclusion bill (1680), que visou a retirar o herdeiro católico James (Duque de York) do trono [09].
Com o advento da democracia representativa e os diversos matizes do Estado de Direito, o indivíduo tem buscado influenciar na vontade de sua comunidade política, sendo que, atualmente, não mais numa relação sujeito/objeto, mas após o giro lingüístico (linguist turn) passou a ser uma relação sujeito/sujeito, no sentido de que "...a linguagem, entendida historicamente como uma terceira coisa interposta entre um sujeito e um objeto, recebe o ‘status’ de condição de possibilidade de todo o processo compreensivo. Torna-se possível, assim, superar o pensamento metafísico que atravessou dois milênios, isto porque se no paradigma da metafísica moderna na mente (consciência de si do pensamento pensante «como em Descartes»), na guinada pós-metafisica ‘o sentido passa a se dar na e pela linguagem." [10] Por sua vez, por serem consideradas associações privadas com funções constitucionais (Canotilho), criadas nos termos da lei civil (Pessoa jurídica de direito privado) e registrada no TSE (especial), conforme determina o art. 17, § 2º, da CR/88, essas associações têm perdido sua dimensão institucional, devido à grande fragmentação do centro do poder em tempos de globalização.
No entanto, ao invés de formar o ‘coro das carpideiras’, ao constatar que ‘ os condutores da vida partidária no Império eram homens afeiçoados à mesma pequenez que corrompe a face política da atualidade republicana. O culto dos interesses materiais, por contingência da época, era incompreensivelmente menor (...) não se ergueram partidos que fossem a essência legítima da vontade nacional..." [11], mister que se avance dessa postura que, ao explicar, acaba por justificar e assim eternizar um discurso idealizante que, na verdade, é uma construção social passível de uma nova postura na real atividade política (dialética do real/ideal). Nesse sentido:
"Eles se justificam pela luta pelo poder. Tão logo acumulam parcelas do poder, ainda que ínfimas, voltam-se para si mesmos, investem seus esforços e suas estruturas no cumprimento desta tarefa. Em seguida, parlamentarizam-se e burocratizam-se. Fincam raízes no rés-do-chão, no encantamento do mundo oficial, aproximando-se cada vez mais do andar superior, do sótão, onde a festa prossegue indefinidamente. Logo abandonam os que sustentam a casa e lhes propõem - quando não lhes impõem - formas cada vez mais comportadas de exercício da luta pela democracia. Os partidos não são muito compatíveis com "um governo do povo, pelo povo e para o povo", a não ser enquanto formas abstratas de discurso político. É preciso repensá-los.
Entretanto, não se pode prescindir dos partidos. Enquanto sobreviverem as classes sociais - e provavelmente ainda por muito tempo após - os partidos serão atores da história. Eles são instrumento no processo de evolução humana e, ao mesmo tempo, um fardo que se arrasta pela história. Repito, os partidos políticos se justificam pela luta pelo poder, contudo, quando chegam ao poder logo abandonam o exercício da luta de idéias, abandonam aqueles que os sustentavam; e aderem ao andar superior.
A antológica sentença de Marx, jogando com as expressões arma da crítica e crítica das armas, correspondeu a um momento histórico preciso. A prática da vida dos homens demonstrou que se tratava de uma verdade que teve um longo curso na história humana. Mas como "toda verdade não dura muito", tanto quanto "tudo que é sólido desmancha no ar", ela tornou-se eterna como previa Espinosa; antes de tornar-se eterna desapareceu do convívio dos homens. Para que ela se torne eterna é preciso virá-la de cabeça para baixo, invertendo-lhe os termos; pois a arma da crítica é o único instrumento capaz de silenciar definitivamente o "barulho das armas". E então, a frase de Marx expõe sua eternidade, permitindo compreender que na realidade "é inútil tentar substituir a arma da crítica pela crítica das armas"; embora os dois termos desta polaridade, como observava Espinosa, sejam uma unidade tão eterna quanto qualquer outra verdade." [12]
É dessa postura de fragilidade institucional dos partidos que temos recorrentes ´reformas políticas’ que não chegam a lugar nenhum. A mudança, repetimos, tem que ser da postura de como encarar a atividade política, onde não mais exista ‘nós o povo´ e ´eles os políticos´ (relação sujeito/objeto), mas somente ‘nós’ (relação sujeito/sujeito). Dessa forma, pode-se lidar com o constante risco de aproximação das agremiações políticas com a estatização ou a privatização egoística do espaço púbico, como na ordem jurídica anterior (Lei 5.682/71) que atribuía aos partidos políticos a natureza de pessoa jurídica de direito público interno.
Mais interessante ainda é a relação ‘interna corporis’ entre os filiados (eficácia horizontal partidária) e a relação entre o partido e os atos exteriores de seus membros. É no paradigma do Estado Democrático de Direito que temos o ‘princípio da transcendência dos quadros partidários’, que consiste no fato de que, quando o membro do partido atua, não é sua pessoa que está em destaque, mas a instituição orgânica partidária. Essa leitura somente é possível quando se busca construir instituições políticas representativas de determinado segmento ideológico e programa plausível para uma sociedade que se sabe cindida, e não mais em indivíduos-candidatos.
Os partidos políticos, por mais risco que se tenha de caminharem para organizações autoritárias, antidemocráticas ou instâncias autonômicas, são o retrato da própria atividade política numa sociedade que se alimenta de crises e que possui fundamento em conflitos permanentes. Enquanto não se assumir a postura de que o direito já trabalha com a possibilidade de seu descumprimento, ou seja, o uso já pressupõe o abuso, estaremos idealizando ‘irmandades’ num contexto em que o ideal é real bem como a realidade está permeada de idealidades.
05 – CONCLUSÃO: A DEMOCRACIA COMO UM PROCESSO DE APRENDIZAGEM E A POSSIBILIDADE DE TROPEÇOS COMO CONSTITUTIVOS DE UMA MODERNIDADE SEM FUNDAMENTOS ABSOLUTOS
Ao passo que a política é constitutiva da vida, de forma que os atos cotidianos mais simples são afetos às decisões dos seres que entabulam as regras para sua convivência em comum, temos que "é assim a política, é assim a vida: ao mesmo tempo oprime e liberta, ao mesmo tempo muda e não muda, ao mesmo tempo faz sofrer e faz feliz (...) o acúmulo de modificações parciais, acréscimos infinitamente pequenos, constrói a base da mudança. É nos porões da história, nos subterrâneos das relações de interferência, onde estão mergulhados os pequenos atos do cotidiano, as relações interpessoais, as formas ideológicas do comportamento, as emoções, os sentimentos, as relações de trabalho, a intermediação entre as microestruturas da vida social, as relações de troca, a resistência das minorias a todas as formas de monomorfismo, as lutas contra as formas de opressão nas relações pessoais, familiares, sociais, etc, as formas de convivência, enfim, um número infinito de atos, hábitos, comportamentos e relações; é nos porões que se processa a grande atividade de mudança, onde tudo se agita em permanência, move-se e muda, e nada permanece o que era. É aí que se forja o novo, onde se imprime a velocidade do tempo, onde o tempo é irreversível, o que faz da história um espetáculo descontínuo e nunca um tempo circular." [13]
A democracia não pode mais ser concebida sob o pano de fundo (background) de uma base material, mas de acordo com a natureza de seu processo político de formação da vontade e opinião pública. As gramáticas de práticas sociais da modernidade vêm inaugurar uma realidade complexa no constitucionalismo, de modo que os diferentes possam conviver mediante uma racionalidade diferente do paradigma pré-moderno, no qual a grande dificuldade era como reger uma sociedade que não podia ter pluralismo, quando a sociedade era um espaço de identidade consensual onde se exigia comunhão (ethos compartilhado). A invenção moderna do direito separado da política inova com mecanismos de convivência que buscam pensar instituições que acreditam criar novos problemas para esconder os problemas anteriores, menos complexos. A possibilidade de se estender os momentos de democracia surge com a necessidade do respeito às diferenças ao incorporar contrafactualmente o contrário e não apenas instrumentalizar meios a fins mediante uma ‘ditadura da maioria’.
Neste contexto, a opção pela teoria crítica da sociedade moderna vem incorporar tanto suas falhas como suas realizações positivas com o objetivo único de entender a potencialidade dessa sociedade em construir uma vida humana coletiva.
O paradigma da linguagem e da racionalidade comunicativa vem indicar que somente através da linguagem, sob condições de argumentação racional que os atores sociais podem coordenar suas ações em torno de uma orientação para a compreensão coletivizada. Assim, desenvolve sua teoria sobre o enfoque de dois níveis: o ‘mundo da vida’ [14] e do ‘sistema’, este como complemento daquele. O mundo da vida é como um lugar transcendental em que falante e ouvinte se movem, onde eles podem levantar reciprocamente as pretensões que seus pronunciamentos possam se ajustar ao mundo objetivo, social e subjetivo, onde eles criticam ou confirmam essas pretensões de validade, suportam o seu discenso e podem obter um acordo.
A incidência da ação sobre o ‘mundo da vida’ se dá pelos seguintes componentes: cultura, sociedade e personalização. As ações comunicativas não são somente processos culturais de interpretação. Na verdade, trabalham paralelamente em processos de integração social e de socialização, numa interconexão complexa dos três processos de reprodução. Neste sentido, uma das patologias nas sociedades contemporâneas refere-se à colonização do mundo da vida pelo mundo sistêmico através do atual processo de positivação ou juridicização (Verrechtlichung) dos espaços estruturados de ação comunicativa.
Dessa forma, o constitucionalismo no paradigma do Estado Democrático de Direito vem incrementar as exigências relativas ao aplicador da lei, tendo a atividade de interpretação jurídica como a idéia central, dentro de práticas sociais organizadas, buscando a verdade ou levantando uma pretensão de verdade (Ronald Dworkin). Ao invés de pensar da previsibilidade e certeza do direito [15](segurança jurídica), busca-se uma visão diferente sobre a finalidade ou o objetivo das leis: a integridade da regência, onde a comunidade seja regida por princípios, e não apenas por regras que possam ser incoerentes com os princípios.
As implicações normativas desta concepção têm grande utilidade para a compreensão do tratamento institucional dado à verticalização partidária. Por mais desgaste que o TSE possa ter sofrido, isso não abala os pressupostos de sua fundamentação, principalmente após abandonar a reengenharia da verticalização pura. Saudável constatar que, contrário à modernidade cartesiana da segurança jurídica de outrora, o método não é mais a garantia da verdade absoluta capaz de ‘exorcizar’ a dúvida (Gadamer) e muito menos a democracia é ‘ditadura de maioria’ ou identidade ‘governante/governado’ schimitiana. Aprendemos que a dúvida e o conflito não necessitam mais serem eliminados pois são eles o o ‘motor’ (Chantal Mouffe) desta sociedade cindida por definição, seja nas instituições partidárias refletidas na formação de corporações parlamentares e composição de governos, seja nos juízos e tribunais. Abandonemos nossa certeza de que a ‘regra é clara’, ao constatarmos que além do discurso de justificação (instância legislativa), na perspectiva do Estado Democrático de Direito a prova se dá pelo intérprete no discurso de aplicação, quando efetivamente mergulhamos de forma a transcender nossos preconceitos artificialmente construídos num dado momento histórico, gerando assim vínculos comprometidos com o futuro enquanto respeito aos percalços pedagógicos do passado.
Notas
01 DESCARTES, René. Discurso do método: Para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Tradução: J.Guinsburg e Bento Prado Júnior, 5ª ed., São Paulo: Editora Nova Cultural, 1991;
02 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer, 3ª ed., Petrópolis: Editora Vozes, 1999, pp. 460.
03 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia:Entre facticidade e validade. Vol. II, Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 144.
04 HABERMAS, Jürgen. ‘A luta por reconhecimento no Estado Democrático de Direito". In: A inclusão do outro: Estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002, pp. 230.
05 GÜNTER, Klaus. Teoria da argumentação do direito e da moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy Editora, 2004, pp. 405-406;
06"É facultado aos partidos políticos, dentro da mesma circunscrição, celebrar coligações para eleição majoritária, proporcional, ou para ambas, podendo, neste último caso, formar-se mais de uma coligação para a eleição proporcional dentre os partidos que integram a coligação para o pleito majoritário."
7 Informativo/STF n º 420.
08 "O juiz, na nova decisão, não altera o julgado anterior, mas, exatamente para atender a ele, adapta-o ao estado de fato superveniente." DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 2ª Ed., Tomo I, página 1044.
09 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. História e teoria do partido político no direito constitucional. Rio de Janeiro, 1948;
10 STRECK, Lenio Luiz. "A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (Neo)Constitucionalismo". In: SAMPAIO, José Adércio Leite. Constituição e crise política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 274.
11 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 5ª ed., São Paulo: Melheiros Editores, 2004, pp. 201-203;
12 Waldo Silva. DISCURSO DA POLÍTICA. Originalmente, este texto é parte de um trabalho escrito em 1987, que procurava servir às eleições municipais de 1988. Foi publicado na íntegra em 1992; e revisto em abril de 2006 para publicação ainda no prelo.
13 SILVA, Waldo. Como foi que o famoso ‘zé das couve’ chutou o pau da barraca e mudou o destino. Lagoa Santa: LS Editora, 2006, pp. 42.
14 Termo cunhado por Edmund Husserl.
15 Visão ontológica de que o Direito existe apenas na forma de decisões explícitas do passado, tomadas por autoridades políticas.