Resumo: O presente trabalho busca trazer à reflexão o tema da interpretação judicial do pedido e o momento mais adequado para sua concretização, fixando-o empiricamente, com base na nova positivação pelo Código de Processo Civil, Lei n. 13.105/15 (NCPC), art. 322, § 2º. Tal fato processual é autorizado pela jurisprudência, inclusive do STJ, pela doutrina atual e pela previsão legal supracitada. No entanto, a posição da comunidade jurídica quanto ao momento mais apropriado para tanto ainda não é clara. Normalmente, o tema desperta interesse sob o prisma da interpretação como expressão da vontade da parte, por se tratar de ato jurídico, ou em razão de pedidos implícitos, ou ainda por força da sistematicidade da postulação (pedido + causa de pedir). Diante disso, a proposta do presente estudo é analisar a doutrina e a jurisprudência, buscando a determinação do momento processual apropriado para a efetiva, vinculante, concreta e transparente manifestação do Juízo quanto ao alcance dos pedidos. É importante destacar que, além da previsão legal sobre a interpretação do pedido, existem os princípios da congruência, da vedação à sentença extra petita e da garantia à ampla defesa e ao contraditório. Faz-se necessário alinhar a interpretação do pedido com as fases do processo, conforme a sistemática dos precedentes judiciais, ainda que de forma preliminar, conferindo maior efetividade à jurisdição e, em última análise, ao próprio direito material discutido.
Palavras-chave: Pedido. Interpretação. Momento. Novo CPC. Precedentes obrigatórios.
Introdução
O presente trabalho busca levar à reflexão e ao debate o tema da interpretação do pedido formulado em juízo, com vistas específicas quanto ao momento mais apropriado para tanto. Pretende-se colaborar com a dogmática jurídica sobre o assunto e com as práticas cotidianas na condução e execução da jurisdição, com vistas ao estabelecimento de novas práticas e atos no processo.
Fredie Didier, ao tratar da interpretação do pedido, aponta em seu Curso de Direito Processual Civil:
“Não é, portanto, tema lateral, de somenos importância. A doutrina, porém, com as exceções de praxe, não lhe dão a atenção devida.” (1)
Apesar dessa realidade, o intuito aqui não é questionar a possibilidade da interpretação na prática processual diária, já que se trata de prática legítima, corrente e estabelecida, tanto jurisprudencial quanto doutrinariamente, como válida.
Nessa linha, Fredie Didier afirma, na mesma obra:
“Mesmo antes do CPC atual, o STJ já entendeu que o pedido há de ser interpretado de acordo com o conjunto da postulação: o pedido deve ser inferido a partir de uma exegese lógico-sistêmica do completo teor da petição inicial, razão pela qual não pode ser considerado ultra-petita o julgado que o interpreta de forma ampla e concede à parte aquilo que foi efetivamente pretendido com o ajuizamento da ação (STJ, 3ª. T, RESP n. 1.049.560-MG, Rela. Min. NANCY Andrighi, j. 4.11.2010).” (2)
A interpretação do pedido, conforme ampla jurisprudência e doutrina, dá-se da mesma forma como se interpretam quaisquer outras manifestações de vontade com valor jurídico.
Mais uma vez, Fredie Didier ressalta:
“A postulação inicial é uma declaração de vontade; como tal, precisa ser interpretada. Desta declaração surgirão diversas consequências jurídicas processuais: i) escolha do juízo a quem a petição é dirigida – dado necessário para o exame da competência; ii) escolha do procedimento a ser adotado; iii) fixação do objeto litigioso – e, portanto, a delimitação do exercício da função jurisdicional; iv) definição de quem está sendo demandado etc..” (3)
Essa prática foi, agora, formalmente positivada pelo artigo 322, § 2º, do NCPC.
A interpretação do pedido pelo juízo configura-se como importante instrumento posto nas mãos da jurisdição para fins de alcance da efetividade do processo, da proteção do direito material e, em última análise, representa proteção à cidadania e à dignidade humana, justamente por permitir maior salvaguarda ao próprio direito de fundo – o chamado (e tido por violado) direito material.
Esse panorama também pode decorrer da própria Constituição e de seus princípios de proteção da dignidade humana, da cidadania, da segurança jurídica e ainda como desdobramento do princípio democrático. Enfim, decorre da visão cidadã da Carta, expressa e hodiernamente positivada na codificação (v.g.: arts. 1º, 3º, 4º, 6º, 7º, 8º, 9º e 10 do NCPC).
Pois bem, não se objetiva aqui analisar o sistema e a mecânica processuais sob o enfoque das disposições e diretrizes constitucionais que, embora efetivas conforme a visão contemporânea do Direito Constitucional, são de conhecimento geral. Busca-se tratar o tema no campo infralegal, reformado pelo Novo CPC, com vistas à prática e à efetividade do processo, também em contraposição à sistemática das nulidades (v.g.: arts. 492, 283, 282, 381, 278, 277, 10, 9º, 7º e 1º do NCPC), alçando-se ao postulado essencial do art. 93, IX, da CRFB, e à imposição de fundamentação efetiva e correta das decisões judiciais, sob pena de nulidade.
Origem da problemática
A temática ora apresentada, evidentemente, não pretende defender a possibilidade de ampliação ex officio do pedido, tampouco a inaplicação dos princípios da inércia, do dispositivo, da congruência, da imparcialidade do Juízo ou da iniciativa das partes, conforme já antecipado.
Essas diretrizes dogmático-processuais mantêm-se hígidas na nova codificação e, portanto, no sistema como um todo, desde a Constituição Federal — com suas previsões sobre a inafastabilidade da jurisdição, o juiz natural, a legalidade e a igualdade — até as normas esparsas que asseguram a equidistância do Juiz, sua imparcialidade e a moralidade da atuação estatal. Tais princípios potencializam os efeitos do sistema e devem coordenar-se entre si e com a norma escrita.
Ocorre que, não obstante todos esses componentes da ciência processual, o tema da interpretação permanece tormentoso.
A partir da constatação da positivação do poder-dever do juiz em interpretar o pedido, conforme disposto no artigo 322, § 2º, do NCPC, e em consonância com a dogmática processual, surgiu a problemática em tela. Procedeu-se à verificação da doutrina pertinente à questão.
Em um primeiro momento, na obra de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Comentários ao Código de Processo Civil, foi encontrada a seguinte passagem:
“§ 2º: 6. Interpretação sistemática. Este parágrafo foi incluído no CPC por meio de substitutivo da Cãmara ao PLS 166/10, e não passa de adequação da lei ao que atualmente dispõe a jurisprudência do STJ, que, por sua vez, tem aceito determinados pleitos não expressos na inicial mas que, em tese, seriam passiveis de dedução, de acordo com o conjunto do que foi pedido, mas tudo em respeito, evidentemente, ao princípio da boa-fé. V. como exemplo, na casuística abaixo, o item “Reconhecimento de sociedade de fato. Pedido não expresso na inicial”. Trata-se de interessante inserção de conteúdo institucional de direito privado no processo. Aqui se celebra a boa-fé objetiva, a lealdade e o pedido oculto, não claramente revelado, mas continente no conjunto dos pedidos formulado, é de dedutível de fato. O comando do texto ameniza a expressão do caput, quanto à certeza do pedido, mas desperta a perplexidade do intérprete diante da proibição de decisão surpresa (CPC 10) e da incidência plena da garantia da ampla defesa (CF 5º, LV, in fine).” (4)
A lição de Nery sustenta a teoria da interpretação do pedido, valida a positivação promovida pelo novo CPC e colaciona precedente (lato sensu) do Superior Tribunal de Justiça — o qual, vale destacar, é amplamente reabordado naquela Corte como orientação jurisprudencial.
Esse precedente suscita diversos pontos relevantes para reflexão, conforme se destaca a seguir:
Cuida-se de recurso especial interposto por K. T. C. DA R. R., fundamentado nas alíneas a e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo TJ/TO.
Ação: de separação judicial, arrolamento e partilha de bens adquiridos na constância do relacionamento, ajuizada pela recorrente em face de R. C. R. Sentença: julgou procedente o pedido, em julgado assim fundamentado:
Ante todo o exposto, tenho que a separação do casal se impõe e assim o faço, com fundamento no que dispõe o Art. 5º , 1º da Lei do Divórcio , em vigor por ocasião da propositura desta ação, declarando cessados entre os cônjuges os deveres de coabitação, fidelidade recíproca e o regime matrimonial de bens , reconhecendo a existência entre eles, de um período anterior de convivência, em união estável , por dois anos, determinando, assim, seja a guarda da filha comum, visitas, alimentos, o nome da mulher e partilha dos bens dirimidos dentro dos parâmetros acima fixados. (sem grifos no original). (fls. 203, e-STJ).
Acórdão em apelação: por maioria, deu provimento à apelação interposta pelo recorrido, nos termos da seguinte ementa:
APELAÇAO CÍVEL AÇAO DE SEPARAÇAO LITIGIOSA JULGAMENTO EXTRA PETITA DISSOLUÇAO DA SOCIEADECONJUGAL ANTERIOR A VIGÊNCIA DAS LEIS 8971/94 E 9278/96 - CONSTRUÇAO DA CASA EM TERRENO DO APELANTE LOTE EM LITÍGIO INTEGRALIZADO NO CAPITAL SOCIAL DA SOCIEDADE VENDA DE PARTE DAS COTAS SOCIAIS 1) Mesmo sendo desejo da Apelada pedir o provimento jurisdicional referente a declaração da sociedade de fato em período anterior ao casamento, nessa parte não o pediu; logo o direito não lhe pode ser dado, pois a sentença deve ficar restrita aos limites da lide impostos nos pedidos. 2) (...)
Acórdão em Embargos Infringentes: por força do provimento do REsp 1.095.840/TO, de minha relatoria, o Tribunal de origem procedeu a análise dos embargos infringentes, negando-lhe provimento, nos termos da seguinte ementa:
EMBARGOS INFRINGENTES. AÇAO DE SEPARAÇAO. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ANTERIOR AO CASAMENTO. REGIME DE BENS. DESPROVIMENTO. ...
Acórdão em Embargos de Declaração: por unanimidade, rejeitaram os embargos de declaração interpostos pela recorrente.
Recurso especial: alega violação dos arts. 128, 293 e 471 do CPC, bem como divergência jurisprudencial. Sustenta que: i) a apelação interposta pelo recorrido deve ser considerada intempestiva, pois protocolizada após o prazo legal, que teria começado a fluir com a ciência inequívoca do teor da sentença, fato ocorrido antes da publicação do julgado; ii) a sentença não foi extra petita , pois solveu a questão que lhe foi trazida nos limites da inicial e iii) o Tribunal de origem divergiu do entendimento do STJ quanto aos efeitos da opção pelo regime de bens escolhido, sobre o patrimônio amealhado durante sociedade de fato.
Contrarrazões: Afirma incidir o óbice da Súmula 7/STJ, em relação à questão afeta à tempestividade da apelação e, quanto ao mérito, aduz que não houve pedido de reconhecimento de união estável precedente ao casamento e nem tampouco divisão patrimonial de bens possivelmente adquiridos neste período, razão pela qual o acórdão deve ser mantido. ...
Às fls. 1387/1393, Parecer do Ministério Público Federal, de lavra do Subprocurador-Geral da República Washington Bolívar Júnior, pelo não provimento do recurso especial. Relatado o processo, decide-se.
VOTO
Cinge-se a controvérsia, além de dirimir questão relativa à tempestividade de recurso interposto na origem, em definir se houve julgamento extra petita e, na hipótese de afastamento desse empeço, analisar os efeitos decorrentes da opção por um determinado regime de bens em relação ao patrimônio amealhado pelo casal, antes do casamento, mas quando conviviam sob a forma de sociedade de fato.
I - Do prequestionamento (...)
III - Da extensão do pedido inicial e do julgamento extra petita violação dos arts. 128 e 293 do CPC e divergência jurisprudencial
A primeira questão que exsurge como necessária à solução da controvérsia volta-se para a apreciação da extensão do pedido de separação judicial formulado pela recorrente, e se este abrange pleito relativo ao reconhecimento e dissolução da sociedade de fato que precede ao casamento, e suas consequências patrimoniais.
A única menção formulada pela recorrente quanto ao período anterior ao casamento que manteve com o recorrido, no qual conviviam sob a forma de sociedade de fato, encabeça a narrativa fática da inicial, nos seguintes termos:
Requerente e Requerido mantém relação marital desde outubro de 1989, encontrando-se casados oficialmente em regime de comunhão parcial de bens de 01 de abril de 1992, conforme cópia da certidão de casamento (Doc. 02).
Desta união o casal teve uma única filha, V. da R. R, nascida aqui em Palmas aos 05 dias de abril de 1996, hoje com 04 (quatro) anos (Doc. 03). (fl. 06, e-STJ).
Extrai-se do voto-vencedor do julgamento dos embargos infringentes, as conclusões do relator para acórdão, quanto ao tema:
Observo que o relacionamento entre as partes iniciou-se com convivência comum no ano de 1989, tendo sido convertida em casamento em 01.abr.1992, sendo que a petição inicial da ação de separação não requer declaração da sociedade de fato em período anterior ao casamento.
Assim, não posso concordar com entendimento de que o reconhecimento da união em período anterior ao casamento era necessária à prestação jurisdicional, já que o Poder Judiciário está limitado, no julgamento da lide, justamente pelos pedidos da parte, os quais devem ser interpretados restritivamente, nos termos do artigo 293 do Código de Processo Civil . (omissis).
Além disso, é assente na jurisprudência que, em termos patrimoniais, o companheiro em sociedade de fato, anterior à vigência da Lei 9.278/96, deve comprovar que contribuiu efetivamente para a aquisição dos bens que alega comuns. (fls. 725/726, e-STJ).
De uma apreciação rigorosa da inicial, nota-se, conforme declinado pelo Relator para acórdão do julgamento dos embargos infringentes, a ausência de pedido formal de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato.
As consequências dessa ausência de pedido expresso, porém, devem ser interpretadas sob uma ótica mais moderna do Processo Civil, que se volta, com acerto, para uma efetiva prestação jurisdicional, para a justa composição da lide e para o resguardo da norma-princípio da boa-fé.
Dessa tróica, tem o STJ extraído, cada vez mais amiúde, as teses de que o pedido deve ser extraído da interpretação lógico-sistemática da petição inicial, a partir da análise de todo o seu conteúdo e, a decisão que considera, de forma ampla, o pedido formulado pelas partes, não viola os arts. 128 e 460 do CPC , pois o pedido deve ser lido como o que se pretende com a instauração da ação. (REsp 1162643/SC, de minha Relatoria, 3ª Turma, DJe 17/08/2012 e REsp1084752SC, 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio Noronha, DJe 24/06/2011), este último assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. SOCIEDADE DE FATO. INDENIZAÇAO POR SERVIÇOS DOMÉSTICOS PRESTADOS. DECISAO EXTRA PETITA. NAO OCORRÊNCIA. 1. Não ocorre julgamento extra petita se o Tribunal de origem decide questão que é reflexo do pedido formulado na inicial. 2. No caso, o acórdão recorrido limitou-se a solucionar a demanda conforme o direito que entendeu aplicável à espécie, não sem antes avaliar a consistência dos fatos que embasaram a causa de pedir da pretensão aduzida em juízo, a saber, a existência de sociedade de fato entre a autora e o de cujos. 3. Recurso especial desprovido.
Aplicando-se esses elementos para a compreensão sistemática da petição inicial, de se notar que a convivência more uxório, correspondente ao período pré-nupcial das partes, foi relatada como prelúdio indissociável do próprio casamento, tanto assim, que a partir de então, a recorrente passa a nominar a íntegra do período em que conviveram como “união” e, ainda mais, faz juntar, dentre os documentos comprobatórios dos fatos alegados, declarações de imposto de renda do recorrido, desde o ano de 1989, período em que conviviam sob a forma de sociedade de fato.
Nessa senda, há inconteste evidência de que o pedido central da recorrente, quando buscou a tutela estatal, era garantir a justa partilha de todo o patrimônio amealhado durante os anos de convívio que manteve com o recorrido, tanto no período pré-casamento quando coabitavam em sociedade de fato quanto durante a vigência do próprio casamento.
Aliás, matéria que por falta de impugnação não enseja prévia declaração de existência da sociedade de fato, sendo aplicáveis suas consequências.
E essa conclusão também é possível pela óbvia unidade narrativa que deu aos momentos, que apenas teoricamente são cindíveis a sociedade de fato e o imediatamente posterior casamento com opção pelo regime de separação parcial de bens , pois suas consequências práticas se confundem, inclusive a que versa sobre o patrimônio comum, formado durante o período de convivência do casal como sociedade de fato
A ausência de interrupção entre o período em que teria havido a sociedade de fato e o posterior casamento que se lhe seguiu, sem interrupção, gera uma linha única de evolução patrimonial do antigo casal, na qual os bens adquiridos na constância do casamento, são fruto, em parcela maior ou menor, do período pré-casamento, quando já existia labor conjunto.
Latente, então, a notoriedade do objetivo perseguido pela recorrente que era, efetivamente, a divisão patrimonial do monte amealhado pelo casal, nos anos de vida comum, pleito que embora não tenho sido expresso de modo formal na petição inicial, é claramente subentendido do escopo primário perseguido, não havendo razoabilidade na suposição de que a autora buscaria a fração que entendia ser sua do patrimônio conseguido durante a vigência do casamento eabandonasse a parcela correspondente que incidiria sobre uma possível relação anterior ao matrimônio.
Assim, impõe-se o reconhecimento de que a sentença não extrapolou o pedido, visto de forma sistematizada. (...)
Forte em tais razões, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para restabelecer a sentença que determinou a apuração e partilha do patrimônio amealhado no período anterior ao casamento, que foi reconhecido como de sociedade de fato.
REsp n. 1.263.234, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 11.06.2013
Por esse acórdão, admitiu-se como correta a interpretação do pedido da demanda — pedido não formulado na inicial, mas interpretado na sentença. Ressalte-se que não se tratou de uma ampliação meramente quantitativa do pedido formulado, mas sim qualitativa, com a inclusão de um novo pedido: a divisão patrimonial referente ao período anterior ao casamento, e não apenas à constância dele.
Não se abordam aqui os fatos da demanda, pois já transcritos acima. O que se deve ter em mente é que a interpretação do pedido — ampliada — ocorreu na sentença, tendo sido reformada pelo acórdão de segundo grau, mas restabelecida pelo STJ.
A interpretação que se seguiu ampliou o pedido (de cunho patrimonial, disponível) para além dos limites inicialmente apresentados pela parte autora.
A decisão do STJ validou essa condução do processo, consolidando-se como precedente invocável pela comunidade jurídica.
Ora, o STJ, instância praticamente final de jurisdição, validou uma interpretação ampliativa do pedido, realizada apenas na sentença — reformada pelo tribunal local e (re)reformada pela Corte Superior —, o que pode, sim, indicar violação à ampla defesa, ao contraditório, ao devido processo e à segurança jurídica, caso não tenha sido oportunizado ao réu, durante as fases de postulação e instrução, o conhecimento da interpretação que ensejou sua sucumbência.
Pergunta-se, como corolário da questão central deste trabalho: e se o réu não se defendeu em sua contestação (ainda que tenha se insurgido no segundo grau)?
E se esse entendimento ampliativo tivesse ocorrido no segundo grau, a partir de apelo da autora? E se eventual interpretação surgisse apenas na instância superior? É possível, inclusive, vislumbrar a ocorrência de nulidade da sentença ou até mesmo de todo o processo, a depender do momento em que se tenha violado o contraditório e a ampla defesa.
Diante disso, indaga-se: qual seria o momento mais apropriado para sinalizar a interpretação?
Apenas para ilustrar, no caso vertente, o Juízo poderia ter interpretado o pedido, ampliando-o, já no recebimento da inicial, indicando à autora que se manifestasse sobre essa interpretação e, eventualmente, aditasse a inicial. Na inércia da parte autora, não deveria julgar procedente o pedido de forma ampliada.
Em outra hipótese, poderia ter comunicado às partes sua intenção de interpretar o pedido de forma ampliada, para que ambas se manifestassem.
Por fim, poderia, na fase de saneamento, indicar que a controvérsia de fato e de direito referia-se à partilha de bens do período anterior ao casamento — ou seja, uma interpretação ampliada do pedido inicial.
Ao que se vê, nada disso ocorreu, surgindo, assim, a perplexidade — e, eventualmente, a nulidade.
Importante destacar mais um exemplo em que a jurisdição reconheceu direito patrimonial (reparação por dano moral) como corolário de dano sofrido e reparado no aspecto material, sem pedido expresso. Trata-se, novamente, de um caso envolvendo direito patrimonial e disponível, ainda que os danos morais, por sua natureza, digam respeito a direitos personalíssimos e, em regra, indisponíveis:
O SR. MINISTRO CASTRO MEIRA (Relator): Trata-se de recurso especial interposto com fundamento na alínea "a" do permissivo constitucional, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, assim ementado:
"CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - APELAÇÃO CÍVEL - RESPONSABILIDADE CIVIL - PRELIMINAR - NULIDADE DA SENTENÇA - REJEITADA - MÉRITO - OMISSÃO ESTATAL - DEVER DE INDENIZAR - RECURSO IMPROVIDO. 1. Não é nula a sentença que julga dentro dos limites objetivos da demanda. 2. Demonstrada a conduta omissiva do Poder Público e o nexo de causalidade com o dano experimentado pelo administrado, exsurge o dever de indenizar. 3. Não se mostrando excessivo o quantum indenizatório, não há falar-se em reforma da sentença quanto a este aspecto" (fl. 262-263).
Não foram opostos embargos de declaração. No recurso especial, o recorrente sustenta, de início, a violação do artigo 130 do CPC, ao fundamento de que a falta de realização de audiência para colheita da prova testemunhal teria causado prejuízos ao recorrente, já que buscava a comprovação da ausência de culpa no evento danoso. Argumenta, ademais, a caracterização do julgamento "extra petita", violação dos artigos 128, 459 e 460 do CPC, pois na demanda proposta não haveria pedido de condenação em danos morais. Por fim, sustenta exacerbado o valor fixado a título de danos morais, 150 salários mínimos.
Não houve contra-razões (fl. 280v). Admitido o especial (fl. 281-282), subiram a esta Corte. O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do eminente Subprocurador-Geral da República Dr. Moacir Guimarães Morais Filho, opinou pelo não conhecimento do recurso ou seu improvimento. É o relatório.
VOTO
O SR. MINISTRO CASTRO MEIRA (Relator): Na origem, trata-se de ação de reparação de danos em virtude da morte de três detentos custodiados na delegacia de polícia de São Mateus - ES. A irresignação recursal não merece prosperar. (...)
O segundo pedido recursal consiste na reforma do julgado quanto à nulidade da sentença por caracterização do julgamento "extra petita", no que teria violado os artigos 128, 459 e 460 do CPC. Afirma que o pedido inicial dos autores não buscava a reparação de danos morais, mas apenas danos materiais, estes afastados pelo julgador de primeiro grau. Ao revés, o Tribunal de origem afirma que o pedido de danos morais foi feito na inicial:
"Ao contrário do que afirma o Apelante, a sentença hostilizada não é extra petita. Tal fato se dá, pois, a partir de análise da petição inicial é possível deduzir, da narrativa da causa de pedir, que o requerimento exordial trata de eventuais danos morais sofrido pelas Apeladas. Esta conclusão pode ser atingida na medida em que as Apeladas, em sua petição inicial, não se referem à ocorrência de qualquer dano concreto para fundamentar sua causa de pedir, o que leva a conclusão de que o pedido exordial - a despeito de haver sido confeccionado a partir de má técnica processual - refere-se à condenação em decorrência de danos morais. Ainda que não conste, no item que se refere aos requerimentos do autor, na peça exordial, a expressão 'indenização por danos morais', resta patente que a menção ao 'pagamento do valor da causa', corresponde, efetivamente à indenização pelos danos não patrimoniais deferida na sentença hostilizada. Nessa medida, não vislumbro nulidade da sentença hostilizada, que não se trata de sentença extra-petita " (fls. 264-265).
Rever o conteúdo do ato processual para verificar a existência ou não do pedido de danos morais implicaria no reexame fático-probatório inviável na seara do recurso especial, o que atrai o óbice da Súmula 7/STJ. Ainda que assim não fosse, a interpretação do pedido do autor deve ser feita levando em consideração toda a petição inicial, e não apenas o capítulo "dos pedidos", utilizando-se o método lógico-sistemático e, ainda, a própria causa de pedir. (...)
STJ, 2ª T., RESP n. 1.022.798-ES, Rel. Min. CASTRO MEIRA, j. 14.10.2008