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Interpretação do pedido da ação.

Momento apropriado, dinâmica do processo e efetividade da jurisdição

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27/10/2020 às 19:06
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Da solução em vista do sistema

O novo Código de Processo Civil brasileiro, verdadeiro coração do sistema processual nacional, positivou a interpretação do pedido no já mencionado artigo 322, § 1º.

Em consonância com a modernização normativa, que busca acolher expressamente (e não apenas em caráter principiológico) os preceitos constitucionais, o CPC introduz a veiculação de diversos princípios fundamentais: o da Eficiência, por meio do direito à obtenção de resposta jurisdicional com brevidade (art. 4º); o da Proteção da Dignidade Humana, a partir da obrigação de colaboração entre as partes (art. 6º); o da Boa-Fé, da Justiça e da Segurança Jurídica (art. 5º); o da Inafastabilidade e da Eficácia da jurisdição, com base na operabilidade (ou proporcionalidade) da decisão judicial (art. 8º); o do Contraditório (art. 10); e o da Ampla Defesa (art. 9º), dentre outros, espraiados ao longo do Código, mas sempre em sintonia com a carga normativa do artigo 1º.

Nesse sentido, Dinamarco, em sua obra Teoria Geral do Novo Processo Civil, afirma:

“Ao se conceber e interpretar os institutos de direito processual, portanto, os princípios constitucionais devem sempre ser tomados como superiores premissas de todo o sistema, ponderando-se a importância concreta de cada um e buscando uma solução que, na medida do possível, confira a máxima efetividade de todos eles. Para os casos de eventuais colisões entre princípios o sistema constitucional impõe a regra da proporcionalidade, reafirmada nos arts. 8º e 489, § 2º, do novo Código de Processo Civil e responsável pela harmonização dos princípios e pelo justo equilíbrio entre os meios empregados e os fins a serem alcançados.” (5)

Repita-se, contudo, que, apesar dessas novidades positivadas, os clássicos postulados processuais também se mantêm no sistema, tais como os princípios do dispositivo (ou da inércia), da congruência, da vedação à reforma in pejus, da boa-fé, da transparência, da ampla defesa e do contraditório.

Sobre isso, Dinamarco, na mesma obra, ensina:

“Depois, suplantada a fase sincrética pela autonomista, foi preciso quase um século para que os estudiosos se apercebessem de que o sistema processual não é algo destituído de conotações éticas e objetivos a serem cumpridos no plano social, no econômico e no político. ...

Esse modo de encarar o processo por um prisma puramente jurídico foi superado a partir de quando alguns estudiosos, notadamente italianos (destaque a Mauro Cappelletti e Vittorio Denti), lançaram as bases de um método que privilegia a importância dos resultado da experiência processual na vida dos consumidores do serviço jurisdicional – o que abriu caminho para o realce dado hoje aos escopos sociais e políticos da ordem processual, ao valor do acesso à justiça, e, numa palavra, à instrumentalidade do processo.

Tal é o momento atual da ciência do processo civil, nesta fase instrumentalista ou teleológica, em que se tem por essencial definir os objetivos com os quais o Estado exerce a jurisdição, como premissa necessária ao estabelecimento de técnicas adequadas e convenientes.” (6)

Por conseguinte, o cerne do debate aqui proposto é a confluência desses temas processuais com a definição do momento adequado para a interpretação do pedido.

Conforme se extrai da lição doutrinária, a dinâmica do processo e da demanda implica múltiplas manifestações de vontade, expressas por meio de pedidos, renúncias, aquiescências e determinações.

Entretanto, as manifestações de vontade mais relevantes estão no pedido (formulado pelo autor) e na resistência ou contestação a ele (apresentada pelo réu). A essas, agrega-se de forma definitiva a manifestação do Juiz, o que implica uma conjunção entre o objeto do processo (pedido e conteúdo da defesa), o objeto de conhecimento do juiz (conjunto de questões jurídicas e fáticas envolvidas no processo e no direito material), e, atualmente, também os termos de eventuais precedentes aplicáveis.

Dinamarco, na obra já citada, aborda de forma precisa temática que orbita o assunto em questão. Afirma ele:

“125. O mérito e a distinção entre o objeto do processo e o objeto de conhecimento do juiz.

Todo processo tem seu objeto, que é a pretensão a uma tutela jurisdicional, formulada com a demanda que lhe dá início (supra, n.119) e a cujo respeito o juiz emitirá seu provimento – pretensão de obter uma coisa ou os resultados de um fazer ou não fazer, pretensão à constituição de uma situação jurídico-substancial nova, a meras declarações etc... Tal é o objeto do processo, que se coloca diante do juiz, à espera do provimento que ele proferirá a final. É, em outras palavras, o mérito da causa. Sobre ele o juiz se considera autorizado e obrigado a pronunciar-se e sua identificação mostra-se relevante não só para a delimitação do provimento, como também em relação a outros institutos processuais, como a litispendência (supra n. 21), a coisa julgada (infra n. 140), a prejudicialidade (supra, n. 122), a alteração da demanda (supra, n. 124) e o cúmulo de demandas (supra, n. 122). ...

Disso pode-se desde logo inferir uma realidade e uma distinção: enquanto o objeto do processo é colocado estritamente pelo pedido contido na demanda e relevância alguma tem a maneira como se comporte o demandado depois – ressalvado o caso excepcional da reconvenção, que expressa uma outra pretensão e propõe-se mediante nova demanda (CPC, art. 343)- constitui objeto do conhecimento do juiz toda a massa de questões que no processo surgirem, venha de onde vierem.

O réu suscita questões ao responder, o autor na réplica ou depois, ambos a todo momento no contraditório do processo, dúvidas são levantadas de ofício pelo juiz, etc... – e de todas essas questões o juiz conhece e sobre elas se pronuncia no momento procedimental adequado.” (7)

Pois bem, o processo é dinâmico, mas há regras para o controle e a plena formação de seus termos, justamente para disciplinar esse dinamismo, assegurando sua regularidade, equilíbrio e legalidade. Todavia, a nova quadra histórica, científica e constitucional exige maior robustez do processo e reforço à proteção do direito material.

Talvez certo desvio da dogmática processual tenha provocado uma indesejável “complexidade” no cotidiano prático da Justiça. O processo, como objeto em constante evolução, passou a comportar distorções, mecanismos e procedimentos dissociados da efetividade e da celeridade que se esperam dele.

A cidadania contemporânea pressupõe um patrimônio material mais amplo de direitos, um sistema de proteção mais abrangente — com tutelas civis públicas, ações coletivas, o sistema de precedentes, maior acessibilidade ao Poder Judiciário, à Defensoria Pública e ao Ministério Público — e, por fim, uma consciência social mais desenvolvida quanto ao valor de todo esse arcabouço jurídico como componente essencial da dignidade individual.

Para se alcançar a efetividade, repita-se, entre os diversos instrumentos existentes, há um que mais aproxima o pedido (o direito material do cidadão) do resultado pretendido (a sentença), esta como verdadeira expressão do “juízo” do Estado.

Esse instrumento é, precisamente, a interpretação feita pelo Juiz.

É oportuno, então, dar contorno a esse cenário. Dinamarco nos ensina sobre o papel do Juiz:

33. Contraditório – um direito das partes e um dever do juiz

Contraditório é participação, e a sua garantia, imposta pela Constituição com relação a todo e qualquer processo – civil, penal, trabalhista, ou mesmo não jurisdicional (art. 5º, inc. LV) -, significa em primeiro lugar que a lei deve instituir meios para a participação dos litigantes no processo e o juiz deve franquear-lhes esses meios. Mas significa também que o próprio juiz deve participar da preparação do julgamento a ser feito, exercendo ele próprio o contraditório....

O juiz participa em contraditório também pelo diálogo. A moderna ciência do processo afastou o irracional preconceito segundo o qual o juiz que durante o processo expressa seus pensamentos e sentimentos sobre a causa estaria prejulgando e, portanto, afastando-se do cumprimento do dever de imparcialidade. A experiência mostra que ele não perde a equidistância entre as partes quando tenta conciliá-las, avançando prudentemente em considerações sobre a pretensão mesma ou a prova, quando as esclarece sobre a distribuição do ônus da prova ou quando as adverte da necessidade de provar melhor. Nem decai o juiz de sua dignidade quando, sentindo a existência de motivos para emitir de ofício uma decisão ou julgar com fundamento em ponto de fato ou de direito a respeito do qual as partes não debateram, antes as chama à manifestação sobre esse ponto (CPC, arts. 9º e 10º). O juiz mudo tem também algo de Pilatos e, por temor ou vaidade, afasta-se do compromisso de fazer justiça.” (8)

Como conciliar essas aberturas voltadas à efetividade da jurisdição, à principiologia da Constituição e do processo, à letra da lei, à mecânica processual e à própria Justiça? E como fazê-lo respeitando a lógica dinâmica do processo, sem que este seja afetado por nulidade?

No processo brasileiro — e aqui se encontra o ponto objetivo máximo deste estudo —, verificam-se diversos momentos oportunos para a manifestação da interpretação judicial:

  1. O momento do deferimento da petição inicial (art. 321, CPC), em que o Juízo já aborda o pedido e pode exercer uma análise lógica e teleológica, não se limitando ao simples "recebimento" da inicial;

  2. A análise das tutelas provisórias e sua eventual extensão (arts. 300, 303 e 311, CPC), pois antecipam a tutela e, portanto, demandam um exercício interpretativo quanto à existência jurídica, validade e eficácia da pretensão;

  3. A delimitação da extensão da demanda na maior medida possível, especialmente para permitir a conciliação em audiência (art. 334, CPC);

  4. A análise da contestação (arts. 338, 350 e 351, CPC), momento em que o Juízo pode se deparar com nova perspectiva sobre a demanda e/ou sobre o direito material apresentado pelo réu, o que pode alterar sua interpretação inicial da pretensão;

  5. O recebimento da reconvenção, que também poderá ser objeto de interpretação (art. 343, CPC), trazendo outra ótica ao pedido inicial e influenciando a compreensão judicial sobre ele;

  6. A provocação sobre as provas, a realização de negócios processuais ou o saneamento do processo (art. 357, §§ 2º e 3º, CPC), constituindo praticamente a derradeira fase de estabilização da demanda do ponto de vista objetivo (pedido, defesa e interpretação judicial), tudo isso sem prejuízo dos princípios processuais e da regularidade formal — conforme previsto no art. 329 do CPC.

Com efeito, pela disposição contida no artigo 329 do CPC, verifica-se de forma clara o limite máximo em que o Juízo pode (e deve) manifestar sua interpretação do pedido, sem incorrer em nulidade.

Destaque-se que a sentença, em si, não deve ser considerada o momento adequado para a interpretação do pedido.

Ainda que esse seja, em tese, o momento abstrato e concentrado para tanto, parece evidente que, ao se proceder assim apenas na fase derradeira do processo em primeiro grau, sacrifica-se a segurança jurídica e a paridade de armas — princípios da ampla defesa e do contraditório. Tal conduta pode ensejar a nulidade do julgado ou, quiçá, de todo o processo, caso se constate que a violação à segurança e à paridade ocorreu ainda nas fases iniciais do procedimento, podendo, portanto, ter sido evitada (art. 282, NCPC).

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Por essa razão, revela-se altamente conveniente — e juridicamente adequado — que o Juízo indique sua interpretação do pedido já a partir das alegações da petição inicial, da contestação (inclusive nos casos de intervenção ou ampliação subjetiva da demanda por terceiros), das provas até então produzidas, ou mesmo com base em precedentes vinculantes desde logo aplicáveis ao caso.

Ainda que se admita, como assentado na doutrina e jurisprudência, que o pedido deve ser extraído do conjunto da postulação e interpretado segundo a boa-fé, o próprio sistema processual permite a alteração da demanda e sua consequente estabilização, nos termos da “janela aberta” prevista no art. 329 do CPC.

Na mesma linha de flexibilidade para estabilização da demanda, destaca-se o momento de apreciação da concessão de tutela provisória, conforme o art. 300 do CPC, especialmente nas hipóteses de tutela antecedente de urgência (art. 303) e de evidência (art. 311).

Assim, é salutar que o Juízo manifeste sua interpretação já nessa fase, comunicando-a às partes — ou apenas à autora, nos casos em que ainda não tenha havido citação —, de modo que o réu tenha ciência do pedido já interpretado, por ocasião de sua citação e da intimação relativa à tutela provisória.

Portanto, este ponto assume especial relevância à luz da nova sistemática processual.

E, aparentemente, ainda há outros momentos possíveis — mencionados an passant — os quais, embora posteriores à fase de postulação entre as partes, podem igualmente comportar manifestação interpretativa:

  1. A ampliação na fase de instrução, quando surge pedido passível de atendimento, ainda que não tenha sido expressamente veiculado na petição inicial (exemplos: evidência de dano material não pedido em demanda inicialmente voltada ao direito moral; verba alimentar incidental; desconstituição de direito, entre outros);

  2. A prolação da sentença, momento em que o julgador está apto a decidir com base em todo o processamento e instrução do feito;

  3. O redimensionamento da demanda em sede recursal, quando o tribunal, no julgamento do recurso de revisão, aplica precedente à sentença ou identifica precedente superveniente incidente, sem que isso implique supressão de instância;

  4. A interpretação excepcional nos tribunais superiores, hipótese de exceção, cabível apenas para proteção de seus próprios precedentes vinculantes, não observados pelos juízos das instâncias inferiores no caso concreto;

  5. A aplicação do novo sistema de precedentes, cuja imperatividade exige interpretação do pedido em qualquer momento da jurisdição, sempre que necessário para sua correta aplicação ao caso concreto;

  6. A ação rescisória, quando fundada na incorreta aplicação temporal do poder-dever de interpretação do pedido. Nesse caso, a decisão poderá ser cassada, com a prolação de novo julgamento que observe a interpretação adequada, extraída de precedente não aplicado no momento oportuno na ação originária rescindida.

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Sobre o autor
Claudio Vestri

Advogado

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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