"Você não pode"
Para concluir, resta ainda a dúvida sobre qual das duas componentes foi insuficientemente testada. Da seção 4 da licença, do esforço em decifrá-la e da prática da programação, a mais racional leitura nos levaria a concluir que ambas:
"4. SOFTWARE PRE-LANÇAMENTO. Esse software é uma versão pré-lançamento. Ela pode não funcionar da forma que uma versão final do software funcionará. Podemos modificá-lo até a versão final, comercial. Podemos também não lançar uma versão comercial."
["4. PRE-RELEASE SOFTWARE. This software is a pre-release version. It may not work the way a final version of the software will. We may change it for the final, commercial version. We also may not release a commercial version."]
Concluindo: Se o WGA está no seu computador, ao menos em parte se a licença foi recusada, e se o que foi instalado não pode ser desinstalado, ao menos sem perdas e riscos, e se a Microsoft vier a modificá-lo para uma versão comercial, ao menos à guisa de ter finalizado os testes, o que acontecerá com você? Terá que pagar mais, se já pagou pelo Windows XP? Qual o preço? Você terá alguma escolha? Vejamos o que diz a seção 6 da licença:
"6. Escopo da Licença. Este software é licenciado, e não vendido. Esse contrato lhe dá apenas alguns direitos para usar o software. Microsoft se reserva todos os outros direitos. A menos que lei aplicável lhe dê direitos além dos aqui limitados, você só pode usar o software conforme expressamente permitido por este contrato. Ao usá-lo, voce deve respeitar as limitações técnicas no software que só lhe permite usá-lo de certas formas. Você não pode
· revelar resultados de nenhum teste comparativo entre esse software e qualquer softwares de outro fornecedor sem autorização prévia e por escrito da Microsoft;
· valer-se de qualquer atalho em torno de limitações técnicas desse software;
· fazer engenharia reversa, descompilar ou desmontar [disassemble] esse software, exceto apenas até onde a lei vigente expressamente permita, apesar desta limitação;
· fazer cópias desse software em quantidade acima da especificada nesse contrato ou permitida por lei aplicável, apenas desta limitação;
· publicar esse software de forma que outros possam copiá-lo;
· alugar, emprestar ou arrendar esse software;
· transferir esse software ou a titularidade desse contrato a terceiros; ou
· usar esse software para serviços comerciais de software hospedado."
["6. Scope of License. The software is licensed, not sold. This agreement only gives you some rights to use the software. Microsoft reserves all other rights. Unless applicable law gives you more rights despite this limitation, you may use the software only as expressly permitted in this agreement. In doing so, you must comply with any technical limitations in the software that only allow you to use it in certain ways. You may not
· disclose the results of any benchmark tests of the software to any third party without Microsoft’s prior written approval;
· work around any technical limitations in the software;
· reverse engineer, decompile or disassemble the software, except and only to the extent that applicable law expressly permits, despite this limitation;
· make more copies of the software than specified in this agreement or allowed by applicable law, despite this limitation;
· publish the software for others to copy;
· rent, lease or lend the software;
· transfer the software or this agreement to any third party; or
· use the software for commercial software hosting services."]
Pois então que mude
Estamos contemplando, aqui, uma transição ao futuro. Nesse futuro, software de uso geral será serviço, e o que será possível obter serão licenças para usá-los na forma permitida. Certamente a Microsoft, neste seu Admiravel Mundo Novo, encontrará meios de checar se o licenciado está cumprindo com todas as cláusulas, e se o usuário está entendendo o que ela quer que ele entenda. Parece claro, também, que quem permanecer com seus produtos terá que concordar em repartir com ela seu computador. Que sua privacidade estará na mão dela, e que ela poderá controlar seu computador, com ou sem seu conhecimento ou consentimento. Ela não irá lhe informar detalhes do que está fazendo nele ou com ele, a julgar por este incidente, ou talvez nem mesmo avisá-lo de nada, como menciona na licença associada ao WGA.
Nunca é demais repetir algo cuja incompreensão fica cada vez mais difícil de ser sustentada, estimulada, manipulada, racionalizada, camuflada, fetichizada ou fingida, mesmo com toda a ajuda da grande mídia: Adquirir software não é como comprar produto. Mesmo que esteja assim em editais, não se trata de comprar, digamos, Windows XP, Vista ou MS Office como se compra sabonete, para usá-lo como aprouver. As licenças da Microsoft -- a do XP na última cláusula, e essa na abertura da 6ª -- explicam com todas as letras: o produto não é vendido, é licenciado. A Microsoft deixará o "comprador" usar seus (dela) softwares apenas sob as condições e limitações que ela determinar. Condições e limitações que, como se vê, podem mudar com o vento. Condições hoje muito aquém das garantias oferecidas por Lei, inclusive as de direito autoral, especialmente no que tange à produção intelectual do licenciado. E limitações artificiais, técnicas ou contratuais que atingem, por exemplo, como o usuário poderá gravar seus (dele!) arquivos, como e quando seu acervo digital poderá ser acessado, através de que tipo de licença, software ou serviço.
Tais licenças constituem uma espécie de contrato, através do qual uma parte abdica de direitos garantidos por Lei. Nas licenças ditas proprietárias (em que o licenciado tem o objeto contratual sob custódia), como as da Microsoft, essa parte é você, se quiser usar legalmente o software. No caso da licença associada ao WGA, de difícil compreensão até mesmo para especialistas, a licença está lhe sendo oferecida muito tarde para ser recusada de forma significativa, ou sem considerável risco. Será esta sua única escolha? Num artigo entitulado "Windows anti-piracy program causes shock for doing its job," o jornalista Stan Beer se surpeende com a reação negativa que o WGA causou, dizendo que a Microsoft está sendo bastante franca a respeito. Quem não gostar, diz ele, que mude para o Linux.
Sua cópia é sua
A reação do jornalista Stan Beer ilustra como este incidente representa, de fato, uma boa oportunidade para se pôr em perspectiva distintos modelos contratuais para licenciamento de bens simbólicos. Oportunidade para se entender o que está em jogo, o porquê de movimentos como o do software livre e do creative commons, o como de suas filosofias e práxis, que oferecem soluções sadias e eficazes contra o mal da pirataria digital. O Linux é um núcleo de sistema operacional, usado em mais de duzentas distribuições de sistemas livres. A licença do Linux é conhecida pela sigla GPL (GNU Public License), e essa licença não se importa com a forma como você usa o software licenciado.
A GPL não se importa como você usa, instala, copia, empresta, aluga ou compartilha uma versão executável do software licenciado, em quantos computadores queira. Não se importa que você compare o software com outros, que o teste e publique resultados, que o adapte para suas necessidades (via acesso ao código-fonte), ou que o use para fins comerciais. Você pode conhecer, estudar e discutir tanto os programas quanto a licença, antes de decidir aceitá-la recebendo, mesmo de graça, uma cópia do software. Para instalações da sua cópia, você pode contratar suporte e serviço de quem julgar competente, de quem quiser, ou de ninguém.
Você pode fazer tudo isto sem violar a GPL, pois sua cópia é sua, mesmo não sendo você o autor. Os autores lhe cederam de antemão a propridade dela, da cópia que porventura chegue às suas mãos. Por isso ninguém precisa, nem terá pela GPL o direito, de espioná-lo para saber como você a usa ou configura, se a licença dela está válida, em que HD ela mora, onde mora você ou com que endereço IP você se torna identificável no ciberespaço.
Sufocante hipocrisia
Na licença GPL, a parte que abdica de direitos garantidos por Lei é o autor do software, em benefício de todos os interessados. Dos que querem usá-lo, e dos que querem ganhar dinheiro com o conhecimento do software. Em benefício principalmente dele, autor, por ser ele quem melhor conhece sua obra, a menos que seu principal objetivo seja controle (do mercado, dos usuários, da evolução do software, etc.). A revolução digital pode, sim, dar um nó na lógica material da ganância, a que atribui propriedade a bem imaterial e confunde monopólio com sucesso ou paraíso (vide Veja ed. 1963: "Os santos do capitalismo"). Pode, porque não é facil controlar valores simbólicos, e porque a hiperconectividade transforma, de maneira ainda mal compreendida, as relações que agregam valor simbólico, especialmente na produção colaborativa de bens imateriais. Pense nisso, para ter a opção de perguntar a si mesmo: o que prefiro?
O mundo chegou, pela revolução digital, numa encruzilhada onde há uma opção realmente importante a ser feita. Você não é obrigado a aceitar os termos cada vez mais abusivos e degradantes de licenças como as da Microsoft. Seja você a personificação duma empresa, dum órgão público ou um simples cibernauta, saiba que, com ou sem marketing, você tem escolha. Se não tivesse, não teríamos sub-revoluções como a do computador pessoal (sem o downsizing, continuaríamos nos mainframes) e a do código aberto (não teríamos a Internet, a solução LAMP, etc.). Não haverá dinheiro ou ambição ou medo, manipuláveis na demonização de alternativas, capaz de sufocar a atual. Se você optar pela inércia, reagindo com chavões tipo assim "não me venha com ideologia e rancores, quero uma solução técnica!", o progresso da não-malícia lhe ajudará a se fazer vítima da síndrome de Estocolmo, pela qual poderá racionalizar até a morte seus motivos para continuar refém.
Mas se você deseja remover o WGA, qualquer que seja o motivo, aproveite a ocasião e valorize o momento. Erga a cabeça avestruza da areia digital (onde licenças não são vistas) e contemple a pergunta que a sigla, insidiosa qual esfinge, lhe propõe: será que o Windows é mesmo, genuinamente, vantajoso para você? Será que a sua segurança digital, e a do modelo negocial da fornecedora do sistema, são a mesma coisa? Ou a sua, genuína ou pirata que seja sua cópia, deve ser apenas mais um item de marketing no negócio dela? Se você, honestamente, não sabe, só há um jeito honesto de saber: vá em frente e faça o serviço completo. Instale uma plataforma GNU/Linux, GNU/Herd ou BSD de sua escolha em hardware seu. Planeje sua migração, com a cautela exigida pelos grilhões do seu legado informático. Você poderá descobrir como é bom se sentir tratado com respeito e dignidade. Dono do seu cibernariz. E respirar livre, ao menos dessa sufocante hipocrisia.